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Demonologia é o estudo sistemático dos demônios. Quando envolve os estudo de textos bíblicos, é considerada um ramo da Teologia. Por geralmente se referir aos demônios descritos no Cristianismo, pode ser considerada um estudo de parte da hierarquia bíblica. Também não está diretamente relacionada ao culto aos demônios.


terça-feira, 4 de agosto de 2015

Entre Deus, os santos e o Diabo

"Para o homem do século XVIII, o mundo era um espaço dominado por forças sobrenaturais que interferiam na existência cotidiana. Estas forças podiam ter divinas, caso partissem de Deus e dos santos, ou malignas, caso viessem do Demônio ou fossem acionadas por seus agentes terrenos. As desgraças podiam ser imputadas à malignidade de Satã ou à ira divina que recaía sobre os pecadores. Mas, na maior parte das vezes, Deus e os santos estavam associados à busca de proteção contra infortúnios. Entretanto, o Demônio não se dedicava somente a espalhar o mal pelo mundo, pois a ele recorriam indivíduos em busca de solução para problemas amorosos, financeiros, etc. Às forças divinas também eram feitos pedidos semelhantes, porém, estes não representavam, de acordo com a interpretação das autoridades eclesiásticas, uma comunicação com o sobrenatural detentora de uma natureza considerada maligna.

Nas Minas, muitas pessoas transitavam entre forças divinas e malignas como se a distinção entre elas desaparecesse por instantes. Buscava-se o sobrenatural que fosse mais eficiente para a resolução do problema que afligia o corpo e a alma. Joseja Doce tinha fama de ser feiticeira no arraial da Capela de Santa Ana onde residia, usando “de vários ingredientes e superstições para que os homens lhe queiram bem e lhe dêem dádivas”. Já o indeciso pardo forro João Batista, morador na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Mato Dentro, Comarca do Serro do Frio, não sabia se recorria ou não às forças consideradas demoníacas e, no momento derradeiro, voltou atrás e recorreu ao plano divino. Batista foi convencido pelo pardo Paulo Gil a ter uma mandinga “para ninguém poder com ele”. Em uma noite, Paulo Gil levou Batista para “um caminho de umas encruzilhadas”. Chegando lá, Batista foi dominado pelo medo. Logo que Paulo Gil disse que “havia de [lhe] dar forças que ninguém havia de poder com ele”, Batista “respondeu que não queria tais amigos e logo ele viu levantar-se um redemoinho de vento”. Ficando “tão cheio de medo”, Batista “entrou a chamar por Santa Ana”.

Outras pessoas tendo suas vidas invadidas por desgraças e não obtendo resultados em suas preces dirigidas a Deus, pareciam ficar desacreditadas, pelo menos por um momento, com o sobrenatural católico. Nas Cartas Chilenas, um preso não havia perdido a esperança na justiça divina, mesmo sofrendo castigos na enxovia, e pedia a Deus, “o justo acusador”, que lhe desse a liberdade e punisse seus algozes. Já um tal Fernando Ribeiro, morador na freguesia de Catas Altas, blasfemava contra Deus pelas ruas do arraial onde vivia dizendo para quem quisesse ouvir que “já Deus não tinha parte nele e que já era do demônio por se ver perseguido de muitas dívidas e que lho tomam todos os bens”. Este comportamento contraditório era vivenciado com naturalidade pelos habitantes das Minas, não representando qualquer problema o trânsito entre sobrenaturais de naturezas tão destoantes.

Na época moderna, muito mais que em momentos anteriores, o mundo viu-se tomado pelas forças demoníacas de uma maneira avassaladora. No politeísmo, o mal assumia fluidez na medida em que era atribuído a deidades rivais. Todavia, no monoteísmo, havia necessidade de dar uma outra explicação para a presença do mal no mundo. Se Deus era a pura bondade e misericórdia, como também o justo algoz para os pecadores, restou a Satã incorporar em si todo o mal que vagava pela terra. Entre os séculos VI e XV o demônio foi ganhando espaço no imaginário cristão. Mas foi a partir do século XVI que abriu-se uma dura concorrência entre a orda infernal, chefiada por Satã, e Deus pelo monopólio sobre as almas humanas. O exército de satanás era formado por diabos ígneos, aéreos, terrestres, aquáticos, subterrâneos e lucífugos que habitavam as geleiras, penetravam nos corpos de animais e causavam desastres naturais, principalmente tempestades. Esta investida do Diabo estava inserida num processo do qual a Igreja católica participava construindo novos sentidos, agora demoníacos, para, por exemplo, crenças e cultos de origem pagã que ainda sobreviviam pela Europa afora e desafiavam, já nos séculos XVI e XVII, a presença da fé católica.

Entre os séculos XVI e XVII, apareceram em vários países da Europa obras que procuravam esclarecer a opinião pública acerca das forças satânicas. Eram apresentadas descrições detalhadas sobre a personalidade, os poderes e os rostos do inimigo do gênero humano. Em torno de 1600, a ciência demonológica atingia seu apogeu.

Fortalecido pela Reforma Protestante e pelas lutas religiosas do século XVI, momento em que católicos e protestantes degladiavam-se e heréticos (dissidentes religiosos) eram caçados por estarem compactuando com Satã, o Diabo aparecia nos discursos católicos e protestantes como detentor de uma força nefasta e desorganizadora. Os homens da Igreja esquadrinhavam o demônio levantando um inventário dos males que ele seria capaz de produzir e uma lista de seus agentes: turcos, judeus, heréticos e mulheres. Desmascarando as forças do mal, a Igreja transformou uma “ameaça global de morte” em “segmentos de medo, seguramente temíveis, mas no meados e explicados, porque refletidos e aclarados pelos homens da Igreja”. Satã provocava, como afirmava o discurso eclesiástico, “ventos fortes e trovões com relâmpagos terríveis”, como também servia de explicação para crimes sem motivo ou para o sucesso incomum.

Os personagens divinos também provocavam infortúnios e, por isso, eram temidos. No entanto, os males causados por Deus e pelos santos tinham uma singularidade, pois não eram impulsionadas pelo exercício do mal em si, como acontecia com as ações de Satã, mas eram motivadas pelo pecado cometido. Era, desse modo, justa a punição contra os pecadores. Não só na Europa, como na América portuguesa, acreditava-se que a doença era, muitas vezes, percebida como uma prova da ira de Deus. Descontentar santos suficientemente poderosos podia também resultar no aparecimento de enfermidades. No Ocidente, durante a época moderna, eram conhecidas e temidas cerca de quarenta doenças designadas pelo nome de um santo. Fenômenos meteorológicos eram, com freqüência, associados à ira divina. Nas poesias do padre Domingos Simões da Cunha, nascido nas Minas do Paracatu, escritas por volta de 1755, encontramos referências à relação entre a ira de Deus e as tempestades. O homem “virtuoso” não temia tanto o “pavoroso trovão” quanto o “mortal desabusado”. O pecador nunca estava em paz, pois receava “que o raio punir venha seu pecado” e “ouvindo a voz de Deus ... quando troveja o céu” o pecador recorria “para a mão poderosa que o socorre”, pois Deus era misericordioso. Em 1769, na região de Paraopeba, nas Minas, os moradores de uma fazenda situada no sítio de Santa Ana viram os céus desabaram sob a forma de uma grande chuva. Era o fim da tarde num domingo de maio quando “choveu uma tempestade” e homens, mulheres e crianças “na sua vida o não viram maior [tempestade] e o gado cair pelo chão berrando e os cavalos da mesma forma e [as] galinhas”. Apavorados, “a gente toda pedindo misericórdia que parecia o dia do juízo”.

A associação entre grandes tempestades e o dia do juízo era alimentada por vários pregadores. Livros de sermões diziam que na hora da fúria da natureza só restava aos fiéis implorar a misericórdia divina, pois tais fenômenos eram decorrentes da vontade de Deus que, em sua suprema justiça, punia os homens pelos pecados cometidos. O padre português Antônio das Chagas, em seu 11º. “Sermão do Juízo”, pregava que o final dos tempos seria conhecido por certos sinais como, por exemplo, “sinais horrendos ... [como] as nuvens carregadas de coriscos, o fogo em um derramado exército de raios e cometas”.

Em 1756, D. José I comunicou ao Governador e Capitão General do Rio de Janeiro que “o Santo Padre, por súplica minha, mandou ... que São Francisco de Borja da Companhia de Jesus, seja tido, invocado e venerado, como patrono e protetor dos meus reinos e domínios, contra terremotos”. Missas deviam ser rezadas em prol do referido santo para “que Deus pela sua intercessão os defenda de terremotos”. O terremoto que assolou Lisboa em 1755, como acreditava Manoel Correia de Souza, morador das Minas, fora uma vingança de Deus contra os pecados da população. Souza deixou registrado numa correspondência, datada de 1756, que o contrato que administrava estava dando muitos prejuízos e dizia não querer “que o contrato receba prejuízo e como se perdeu Lisboa pelos nossos pecados também vai chegando por cá”. Os santos também poderiam funcionar de intermediários entre Deus e os mortais no sentido de requerer, perante o Salvador, a misericórdia divina para as pobres almas humanas. O mundo divino era temido e, ao mesmo tempo, apelava-se à sua misericórdia. Nem todos temiam os castigos divinos, pois nem todos conviveriam com o estigma do pecado e, afinal, tudo dependia da consciência que julgava a si própria, seus atos e pensamentos, mas norteada pelos ensinamentos divulgados pelo clero.

Se para Manoel Correia de Souza, falando da segunda metade do setecentos, os castigos divinos ainda estavam por chegar às Minas que andavam tão cheias de pecados, já para o jesuíta padre Belchior de Pontes, paulista nascido entre 1640-1650, os castigos enviados por Deus contra os habitantes da terra do ouro já tinham chegado há bastante tempo. O conflito entre paulistas e emboabas, ocorrido entre 1708-1709, foi interpretado pelo jesuíta como “castigos com que havia [Deus] de castigar as Minas Gerais”. Em 1708, padre Belchior pregava sobre o “castigo [que] estava já por cair sobre as Minas porque irado Deus, com as insolências que nelas continuadamente se cometiam, o permitia”.

Se um pecado era cometido, a punição divina poderia recair, dependendo da natureza e da gravidade da falta, sobre toda a comunidade, um reino ou sobre o próprio mundo. A única saída era aplacar a ira divina negociando com Deus, isto é, oferecendo uma obra misericordiosa para compensar o mal desencadeado pelo pecado. A grandiosidade da obra devia coincidir com a grandiosidade do pecado. Entre 1549-1560, o jesuíta padre Manoel da Nóbrega fez um sermão no qual assinalava “as grandezas” de Nossa Senhora da Conceição e, frente a uma dificuldade, que os homens “soubessem negociar com Nosso Senhor por meio dela que não podia haver outro melhor negociar”.

Até agora temos falado do Deus barroco, isto é, aquele que punia as ovelhas desgarradas mas, acima de tudo, desejava tê-las de volta ao rebanho e, para isso, oferecia sua quase infinita misericórdia àquele que pecava. Não faltavam meios para que os devotos resgatassem suas faltas. Mas se o Salvador, pai, castigava os pecadores, filhos, estes deviam aceitar humildemente a incógnita que era a vontade divina que, acima de tudo, era puro amor e, assim sendo, qualquer castigo tinha uma natureza justa. Mesmo o fiel que não se afastava de Deus poderia sofrer privações e aceitá- las, pois a punição expressava a profunda sabedoria de Deus.

Invadido pela fé, o português Silvestre Silvério da Silveira Silva expressa, por volta de 1748, através de um dos personagens de sua obra, a confiança que o cristão devia ter na vontade divina. Mesmo que as dificuldades desabassem sobre sua vida, o devoto não podia desanimar. Os desígnios de Deus sempre tinham suas razões que, envolvidas em um véu de mistério, deviam ser aceitas com o coração aberto, pois o pai celestial sabia o que era melhor para seus filhos. Aos enfermos, Silvério aconselhava que se entregassem à vontade do Salvador e à ele se dirigissem com a alma dizendo: se sois servido que eu morra, quem há de impedir a vossa determinação? ... Se ordenais que eu padeça, quem pode ir contra a vossa vontade? Assas mostrara não conhecer quanto mereço ser castigado por minhas culpas, em não conformar-me com a correção de um pai amoroso ...! No estado em que me acho, só vos suplico useis de misericórdia com este miserável pecador”.

A justiça terrena devia estar atenta ao fato de que poderia inflingir os mais cruéis castigos ao corpo, porém, à alma estava reservada a possibilidade da misericórdia divina. Corpo e alma eram dois momentos distintos na figura do criminoso. Atenta à salvação dos presos, a Câmara de Vila Rica, em 1725, nomeou o padre Manoel Fernandes Seya como “capelão da capela de Santa Rita ereta para os presos nela ouvirem missa por tempo de um ano” e também para que “os enfermos e encarcerados presos desta cadeia” pudessem receber os sacramentos e fazerem confissões.

Num cenário onde às forças malignas eram imputadas as causas de uma gama de desgraças e mesmo a corte celestial poderia, a qualquer momento, voltar-se contra os pecadores, a Igreja assumia uma posição de destaque. A instituição eclesiástica funcionava, acreditava-se, como representante de Deus e dos santos entre os homens. Os padres, em sua atuação nos confessionários e na aplicação dos sacramentos, representavam uma prévia do julgamento divino, podendo perdoar pecados que ameaçariam a alma do devoto. A Igreja estava mais próxima de Deus do que as pessoas comuns. Entretanto, Igreja e Estado há muito caminhavam juntos, numa defesa mútua de interesses, não sem conflitos. Nesse sentido, a defesa da fé confundia-se com as tentativas régias de promover o “bom” governo dos povos. O súdito religioso parecia garantir a preservação do súdito fiel às leis do reino. Os colonos deviam obedecer às autoridades portuguesas pois este era o desejo de Deus, segundo pregava o clero."

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