sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A LUZ E A VERDADE: AS (SUB)VERSÕES DE LÚCIFER E JUDAS ISCARIOTES

Resumo
O presente estudo apresenta uma comparação entre os contos Três versões de Judas,
de Jorge Luis Borges, e O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia. Pretende-se
enfocar os mecanismos estéticos de construção do discurso herético em ambos os
textos, analisando os aspectos convergentes e, mormente, os divergentes. A dissonância
consubstanciada nos referidos textos respeita a uma releitura crítica da tradição
bíblica que atribui a Judas Iscariotes a marca do traidor de Jesus Cristo, e a Lúcifer, o
protagonismo da degenerescência humana.
Palavras-chave: teologia, literatura, Jorge Luis Borges, Arturo Gouveia.
Introdução
Antonio Candido (2000, p. 22-23) divide a arte, mormente a da palavra, em dois
grupos: arte de agregaƒ„o e arte de segregaƒ„o. A primeira categoria abarca as formas e
express…es  j†  cristalizadas,  filiando-se  ‡  tradiƒ„o;  ou  seja,  fulcra-se  na  experincia
coletiva, e, por isso, ˆ mais acess‰vel. A outra atualiza o sistema, instaurando a novidade
mediante a  criaƒ„o  de  procedimentos  e  mecanismos  estˆticos; logo,  destina-se  a  uma
parcela reduzida da sociedade.
A  literatura,  haja  vista seu  car†ter  essencialmente  mimˆtico,  constitui-se  como
poiese, (re)criaƒ„o da realidade. Portanto, ˆ capaz de estabelecer pontos de contato com
a referida, bem como pode distanciar-se, seja desfigurando-a ou negando-a (CANDIDO,
2000,  p.  12).  Para  corroborar  a  afirmaƒ„o  acima  acerca  da  natureza  da  arte  liter†ria,
citamos AristŠteles (1997, p. 48) que leciona: “Quando plaus‰vel, o imposs‰vel se deve
preferir a um poss‰vel que n„o convenƒa”. Essa liƒ„o diz respeito ‡ quest„o da qualidade
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intr‰nseca da obra que deve suplantar os aspectos da verossimilhanƒa externa e nortear a
an†lise liter†ria.
A narrativa Três versões de Judas, de Jorge Luis Borges, destaca-se por sua forma
ensa‰stica. Ela apresenta  vis…es acerca da figura de Judas Iscariotes, desmistificando o
seu car†ter de traidor de Cristo e apontando a sua relevncia para o plano salv‰fico da
humanidade.
Por  sua  vez,  o  conto  Evangelho Segundo Lúcifer,  de  Arturo  Gouveia,  exp…e  a
perspectiva de LŽcifer, que contraria toda a tradiƒ„o b‰blica. A partir de sua prŠpria voz,
o “Anjo de Luz” imputa a Deus o papel de algoz da humanidade, responsabilizando-o
por todo o mal que a aflige. Para o narrador-personagem o verdadeiro "Usurpador" ˆ o
prŠprio Deus.
Como  se  pode  depreender  tais  textos  s„o  subversivos e  podem  ser  tidos  como
herˆticos, tomando como parmetro a b‰blia e a exegese crist„ consolidada ao longo do
tempo.  Eis  o  aspecto  que,  dentre  outros, motivou  o  desenvolvimento  deste  estudo.
Baseando-nos  principalmente  nas  consideraƒ…es  de Antonio  Candido sobre  a  arte  de
segregaƒ„o,  analisamos  os  contos  e  estabelecemos  os  aspectos  convergentes  e
divergentes.
Revelando outro Judas: a decifração do enigma
O conto de Borges em tela est† inserido no livro Ficções, publicado em 1944. A
narrativa  estrutura-se a  partir  das trs  teses  do  gnŠstico Nils  Runeberg  sobre  Judas
Iscariotes1.
A narraƒ„o  ˆ  m‰nima,  mas  a  discuss„o,  a  exposiƒ„o das  ideias  e  os  coment†rios
que constituem a ficƒ„o e entrelaƒam os fatos s„o o centro, consubstanciam o conflito
principal2. O texto constitui-se como artigo, em consonncia com as palavras do prŠprio
narrador-ensa‰sta (BORGES, p. 573).
1 Borges trata da figura de Judas, de forma tambˆm diversa do cnone b‰blico, em outro conto chamado
“A  seita  dos  trinta” (BORGES,  1999).  Indicamos  ainda  a  leitura  de  KASSER,  R.  et  al  (orgs). O
Evangelho segundo Judas: do cŠdice tchacos. S„o Paulo: Prest‰gio, 2006.
2 Neste mesmo sentido ver GOUVEIA, A. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges,
Guimar„es Rosa e a  teoria do conto).  In: ________ (org.). Machado de Assis desce aos infernos. Jo„o
Pessoa: Idˆia, 2009, p. 44.
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Para  o  filŠsofo  alem„o  T.  W.  Adorno  (2003,  p.  37),  “A  conscincia  da  n„o-
identidade  entre  o  modo  de  exposiƒ„o  e  a  coisa  imp…e  ‡  exposiƒ„o um esforƒo  sem
limites.  Apenas  nisso  o  ensaio  ˆ  semelhante  ‡  arte;  no  resto,  ele  necessariamente  se
aproxima da teoria, em raz„o dos conceitos que nele aparecem [...]”.
A construƒ„o textual do escritor argentino transcende os limites da separaƒ„o entre
as formas, n„o sŠ relativizando-os, mas quebrando-os. Misturando elementos, citaƒ…es,
noƒ…es, construtos teŠricos, autores ora fict‰cios3, ora “reais”, o narrador desmistifica a
“verdade”  crist„,  atravˆs  de  uma  construƒ„o  lŠgica  e,  portanto,  racional.  Todavia,
dialeticamente, essa racionalizaƒ„o ˆ engendrada pela mediaƒ„o poˆtica que expressa o
tom ficcional ‡ matˆria tratada4.
A primeira  tese de  Runeberg,  explicitada  pelo  narrador, encontra-se  presente  no
livro  Kristus och Judas (“Cristo  e  Judas”)  do  aludido  heresiarca.  Segundo  o seu
entendimento a traiƒ„o de Judas configura-se como fato predeterminado na “economia
da  redenƒ„o”  (BORGES,  p.  574).  A  construƒ„o  argumentativa  erige-se  da  noƒ„o de
encarnaƒ„o de Jesus, o que pode ser compreendido como degenerescncia. Sendo assim,
o disc‰pulo do Verbo – Judas Iscariotes – seguindo o seu Mestre, tambˆm deve rebaixar-
se.  Entretanto  o  rebaixamento  d†-se  na  condiƒ„o  de delator.  Por  esse  prisma  Judas
reflete,  de  certa  maneira,  Jesus. Consoante  apurou  o  narrador  inŽmeras  foram  as
refutaƒ…es por parte dos teŠlogos de todos os credos ‡ argumentaƒ„o do heresiarca: a)
reflete  ignorncia  da  dupla  natureza  de  Cristo (uni„o  hispost†tica); b) trata-se  de uma
heresia; c) entra em contradiƒ„o com o evangelho de Lucas (cap‰tulo XXII).
Os  questionamentos  e  as  cr‰ticas  repercutem  na  doutrina  runeberguiana.  O
gnŠstico  reescreve parcialmente seu  livro,  “abandonando  o  terreno  teolŠgico  e
adotando, agora, obl‰quas raz…es morais” (BORGES, p. 575). Ele reconhece que Jesus
“n„o  necessitava  de  um  homem  para  redimir  todos  os  homens”  (BORGES, p.  575).
Contudo, fundamentando-se em passagens da B‰blia, passa a defender que Judas, como
um dos apŠstolos, “merece de nŠs a melhor interpretaƒ„o dos seus atos” (BORGES, p.
575). De acordo com o  autor de  Kristus och Judas,  a traiƒ„o  deve ser  reinterpretada,
3 Por exemplo, a nota de nŽmero 3 do conto-ensaio remonta a uma observaƒ„o sobre  a obra Vindicação
da eternidade,  de  Jaromir  Hladik,  protagonista  de  outra  narrativa  de  J. L.  Borges,  que  se  intitula O
milagre secreto.Este conto integra o livro Ficƒ…es assim como Trs vers…es de Judas. Logo, a verdade n„o
passa de uma construƒ„o, ˆ ficƒ„o.
4 Nos termos de Davi Arrigucci, poder‰amos dizer que ocorre, concretamente, em “Trs vers…es de Judas”
a  ficcionalizaƒ„o  do  ensaio  (vide ARRIGUCCI,  D. Borges ou do conto filosófico.  In:  BORGES,  J.  L.
Ficções. 6. ed. S„o Paulo: Globo, 1995).
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afinal, tem como teleologia a maior glŠria de Deus, da‰ o envilecimento e mortificaƒ„o
do  esp‰rito,  caracter‰sticos  do  ascetismo.  Num  gesto  extremado  de  humildade, Judas
premeditou a culpa (fez-se delator), buscando, assim, deliberadamente o inferno, visto
que a felicidade do Senhor lhe era suficiente.
Nils Runeberg, com o desiderato de ratificar que a atitude de Judas ˆ fundamental
para  a  realizaƒ„o  da  remiss„o  dos  pecados  e  salvaƒ„o da  humanidade  por  Jesus,  faz
menƒ„o  ‡  I Epístola de Paulo aos Coríntios,  1,  31:  “O  que  se  gloria,  glorie-se  no
Senhor”. Vale sublinhar, ainda, que o narrador-ensa‰sta em nota de rodapˆ constrŠi um
elo entre a postura de Judas e as palavras de Antnio Conselheiro – a virtude era “uma
quase impiedade” (personagem heresiarca do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha);
remonta,  ainda,  ‡s  passagens  da  obra de  Almafuerte,  e,  por Žltimo  o  articulista traz  ‡
tona  o  poema  simbolista A Água Secreta.  Este,  conforme  reforƒa  o  narrador,  termina
assim “A †gua da selva ˆ feliz; podemos ser maldosos e dolorosos”5. Estas associaƒ…es
dialogam  com  a  convicƒ„o  gnŠstica  de  que  Judas  cumpriu  seu  papel  na  redenƒ„o  do
gnero  humano,  independentemente  do  julgamento  que  as  pessoas  poder„o  fazer.  A
alegria  reside  no  cumprimento  da  miss„o  dada  pela  divindade.  Nesta  Štica, podemos
concluir: sem traiƒ„o, n„o h† salvaƒ„o.
A Žltima tese de Runeberg, que est† plasmada no livro Den Hemlige Frälsaren6,
configura-se  como  “pervers„o” ou  “exasperaƒ„o” de  sua  obra  anterior. A  conclus„o
edificada  por  ele ˆ  a  seguinte: “Deus  se  fez  totalmente  homem, porˆm  homem  atˆ  a
infmia, homem atˆ a reprovaƒ„o e o abismo. Para nos salvar, pde escolher qualquer
dos destinos que tramam a perplexa rede da histŠria; pde ser Alexandre ou Pit†goras
ou Rurik ou Jesus; escolheu um ‰nfimo destino: foi Judas (p.577).”
Do exposto, deflui-se que o gnŠstico sustenta que o sacrif‰cio de Judas foi maior
que o  de  Cristo; portanto o  “Žltimo dos  homens”,  o  “var„o de  dores”,  prefigurado no
livro de Isa‰as, n„o ˆ o crucificado; ˆ aquele que est† despojado da graƒa e da glŠria, o
que  entregou  o  Mestre, para  que  este  pudesse  realizar  a  salvaƒ„o da  humanidade,  ou
seja,  o  prŠprio  Judas. Ciente  da  condenaƒ„o,  ainda  assim, entregou-se  ‡  miss„o,
propiciando vida ‡  humanidade.  Eis  a  revelaƒ„o  de  Runeberg.  A  recepƒ„o  desta em
5 “A †gua da selva ˆ feliz consiste numa met†fora. A †gua pode ser entendida como o  prŠprio Judas que
segue seu curso, consoante a liberdade concedida pela prŠpria natureza. A parte final do verso destacado
(“podemos ser maldosos e dolorosos”) aponta para a leitura cr‰tica que nos ˆ poss‰vel ser feita desse fato.
6 Interessante que o t‰tulo em portugus indica a tese runeberguiana: O Salvador Oculto, que ˆ o prŠprio
Judas.
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Estocolmo e Lund (ambas as cidades situadas na  Suˆcia) n„o encontrou eco, apenas  a
indiferenƒa. A reaƒ„o, para o gnŠstico, tem uma explicaƒ„o divina: “Deus ordenava essa
indiferenƒa;  Deus  n„o  queria  que  se  propagasse  na  terra  Seu  terr‰vel  segredo”
(BORGES, 1998, p. 577).
O seu fim estava prenunciado, assim como aqueles que revelaram a Verdade ou a
encontraram  n„o  passam  incŠlumes.  A  dŽvida,  a  certeza,  o  castigo,  a  blasfmia,  o
del‰rio tomaram sua vida. Suplicando em gritos a graƒa de compartilhar com o Redentor
(Judas)  o  Inferno,  Nils  Runeberg  faleceu.  O  desfecho  do  conto-ensaio  retoma  a  sua
contribuiƒ„o herˆtica7: “[...] acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as
complexidades do mal e do infortŽnio” (BORGES, 1998, p. 577).
Segundo Adorno (2003, p. 45), “a lei formal mais profunda do ensaio ˆ a heresia.
Apenas  a  infraƒ„o  ‡  ortodoxia  do  pensamento  torna  vis‰vel,  na  coisa,  aquilo  que  a
finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invis‰vel”.
O  conto-ensaio estudado corporifica  a  compreens„o  adorniana  da  forma
ensa‰stica.  Versando  sobre  quest…es  teolŠgicas  e  filosŠficas,  trabalhando  conceitos,  e
marcado pela  construƒ„o  lŠgica, sedimenta  a  heresia sob  a  ˆgide da  arte,  contrariando
toda  a  tradiƒ„o  crist„  e  o  consenso  popular  acerca  de  Cristo  e  mais  propriamente  de
Judas, por um lado; de outra banda, reformula a noƒ„o de narrativa e ensaio.
O conto borgiano,  por  sua  construƒ„o,  ontologia e  tem†tica,  enquadra-se
perfeitamente como arte de segregaƒ„o, nos moldes de Antonio Candido.
A transgressão de AG: a notícia de Lúcifer
O evangelho segundo Lúcifer integra o livro que recebe o mesmo nome. Escrito
por Arturo Gouveia, renomado contista brasileiro, foi publicado em 2007.  interessante
ressaltar  que  o t‰tulo  do  conto  arturiano  j†  manifesta  seu  car†ter  subversivo.  Como
imaginar a boa not‰cia, ante o cnone b‰blico e  sua presenƒa  no inconsciente coletivo,
dada pelo Anjo deca‰do? A maestria da construƒ„o textual reside na vaz„o ao ponto de
7 A ep‰grafe em ingls do conto (atribu‰da a T. E. Lawrence) apresenta-nos antecipadamente a revelaƒ„o
de  Nils  Runeberg que  ˆ  dialˆtica:  “Parecia  haver  uma  certeza  na  degradaƒ„o”,  qual  seja:  a  traiƒ„o  ˆ  o
fundamento da salvaƒ„o dos seres humanos. Judas equipara-se ao Redentor.
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vista  de  LŽcifer,  para  ent„o  questionar  a  sua  condiƒ„o  de  cativo  e  inverter  o jogo:  a
culpa pelos males n„o ˆ sua e sim de Deus.
A aƒ„o ˆ m‰nima, o enredo desenvolve-se de modo truncado, porquanto reflete a
situaƒ„o  do  narrador-personagem. H†  uma  proeminncia  da  linguagem  e  da  reflex„o.
Nesse aspecto, a narrativa de AG apresenta um car†ter doutrin†rio e teolŠgico insŠlito.
“Minha pris„o ˆ do tamanho exato do meu esqueleto” (GOUVEIA, 2007, p. 317),
afirma LŽcifer. De fato, o tamanho diminuto do c†rcere limita a sua aƒ„o, no entanto, a
mente  trabalha  continuamente.  O  microcosmos  em  que  se  encontra  n„o  o  impede  de
fazer  elucubraƒ…es,  constatar  realidades e  tecer  cr‰ticas  ao  Usurpador,  que  ˆ  para  o
protagonista, Deus, que se apropriou da inteligncia no instante em que ia compartilh†-
la com este8. Desde ent„o foi emparedado9, e destitu‰do da glŠria, restando-lhe, apenas,
a  ingest„o  de  esterco  e  vermes,  sua  Žnica  forma  de  sobrevivncia,  a  recepƒ„o  de
oxignio  podre,  e  o  contato  com  as  escrituras  “mentirosas”. O  pensamento constitui
tambˆm a sua pris„o, seu mart‰rio. A maior tirania de Deus, segundo o prisioneiro, foi a
acusaƒ„o de ter feito o mal ‡ Criaƒ„o e a Ele.
As  pupilas  do  emparedado possuem pregos, portanto,  n„o  podem  ser  fechadas;
vislumbra as cat†strofes e a cegueira da humanidade, fruto do fanatismo institu‰do pela
B‰blia. Contraditoriamente sua lucidez corresponde ‡ escurid„o dos humanos.
Fluidez  da  imaginaƒ„o  e  incapacidade  de  agir s„o,  por  conseguinte, as marcas
caracter‰sticas do cativo:
Minha mente n„o p†ra de trabalhar, ainda que meus olhos se esgotem
nessa  posiƒ„o  imut†vel.  Ele  acredita  em  minha  rendiƒ„o  para  a
destruiƒ„o  final. Que resposta  eficaz  poderei dar  ao  mais abomin†vel
dos seres? Basta lembrar que Deus ˆ o Žnico ser apŠcrifo, que sŠ tem
zelo  pelo  Inferno  e  por  essas  grades  que  me  destroƒam.  Sua  Žnica
meta  para  a  Humanidade, em dias  prŠximos,  ˆ  a  extinƒ„o. Da Žltima
vez  que  O  vi,  mesmo  Ele  desviando  o  olhar,  pude  identificar  com
sutileza  alguns  dos  Seus  crimes  futuros.  N„o  consigo  compreender
com precis„o o que vi, mas ter visto j† me ˆ uma imensur†vel alegria.
Vi  um  sˆculo  monstruoso  enterrando,  em  poucos  anos,  milh…es  de
pessoas;  vi um cogumelo  de  fogo  caindo  sobre uma cidade  indefesa,
incendiando  berƒos  e  geraƒ…es  futuras;  vi  crianƒas  convertidas  em
cinzas  e  jogadas  no  V‰stula;  vi  arsenais  poderosos,  de  destruiƒ„o
imponder†vel,  girando  em  torno  da  Terra;  vi  milh…es  de  esqueletos
trabalhando ‡ forƒa numa plan‰cie de gelo; vi seq‘ncias e seq‘ncias
de  guerras,  explodindo  aldeias  e  continentes  inteiros;  vi uma  menina
incendiada  nua;  vi umas  m„es  numa  praƒa clamando por  seus  filhos,
todos pisunhados de torturas. (GOUVEIA, 2007,  p. 320)
8 Dento desta perspectiva, LŽcifer apresenta-se como Criador.
9 O emparedamento do personagem faz-nos recordar o conto O gato preto, de Edgar Allan Poe.
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O trecho acima exprime a Štica luciferina, que contesta a divindade, invertendo os
pŠlos.  O  princ‰pio  da  Luz  ˆ  o  prŠprio  LŽcifer  (note-se um nexo etimolŠgico)  e  o  da
Treva ˆ Deus, art‰fice do mal e do pecado, que encaminha a humanidade para extinƒ„o.
Isto  sŠ  se  dar† quando o  Anjo  sucumbir ao  ultraje.  Aquele  consiste  num  ser apŠcrifo
(sem  autenticidade,  visto  que  n„o  se  manifesta  diretamente,  diferente  de  LŽcifer).   A
contemplaƒ„o parcial dos  olhos d’Ele indicam um per‰odo de caos. Se  analisarmos as
imagens  elencadas  teremos  alus…es  a  momentos  histŠricos de  extrema  violncia do
sˆculo XX.
A  conscincia do  prisioneiro ˆ  o  Žnico  reduto  imune  ‡  treva  divina.  Porˆm,  o
aludido sente que o Usurpador passa a manipul†-la, a partir do sonho. Logo, a coerƒ„o
passa  a  ser  por  dentro,  interna.  “Mesmo  com os  olhos  abertos, (....) consegui dormir,
submergir na  letargia” (GOUVEIA, 2007, p. 321). A descriƒ„o do sonho ˆ ontolŠgica,
pois  concretiza  um labirinto (fagulha  de  conscincia dentro  do  sonho). L†  h†  a
confluncia  da  conscincia e  do  inconsciente, do presente,  do futuro e do  passado  –
instante  da  criaƒ„o.  A  chance  de acordar  da  ilus„o  do  c†rcere e a  possibilidade  de
transfiguraƒ„o da realidade plasma-se. LŽcifer enquanto Criador poderia excluir o Žnico
desastre da criaƒ„o. Todavia, a devassa ‰ntima por meio da manobra on‰rica consolida-
se. A pris„o exsurge no momento fatal10.
“Esse sono,  o  Žnico  a  que  tive  direito desde  a  sentenƒa,  alterou  para
sempre  minha  estima.  Apesar  de  ser  um  anjo  de  luz,  criador  do
Universo  e  da  Linguagem,  minha  eternidade  est†  com  os  dias
contados. N„o sinto apenas na carne esse final sinistro. Os terrores de
Deus tm conseguido penetrar em minha lucidez. [...] Com isso, Deus
substituir†  minha  perpetuidade  pela  perpetuidade  do  Mal.  Morrerei
sem  ter  operado  o  milagre:  corrigir  meu  prŠprio  erro.  Morrerei
sabendo  que  Deus  ˆ  a  alma  do  Inferno.  A  Humanidade  evite  o
cogumelo  de  fogo,  evite  as  cinzas  do  V‰stula,  evite  as  m„es
desesperadas.  Ainda  h†  tempo.    a  mensagem  que  deixo  para  uma
linda  criatura  que  um  dia  idealizei  e  foi  brutalmente  deturpada,
seduzida  pela  serpente  de Deus.  Os  homens,  se  ainda  tiverem  um
resqu‰cio da minha luz entendam, com carinho, os meus limites. Se j†
pressinto  meu  fim,  n„o  posso  resgatar  mais  ninguˆm (GOUVEIA,
2007, p. 323).
O encadeamento narrativo leva-nos, como vimos no excerto transcrito, do sono de
LŽcifer ‡ reflex„o sobre o dom‰nio pleno de Deus da sua conscincia, Žltimo resqu‰cio
10 O procedimento de construƒ…es dos sonhos faz-nos remeter  ‡ narrativa A escrita do deus, de Borges.
Ademais a possibilidade de deglutir as crianƒas no caminho aponta, ainda, para o mito de Chronos.
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de  independncia,  lucidez e  criticidade.  O  tom  dram†tico  do  conto  constrŠi-se,
justamente, na  desilus„o de  LŽcifer  face  ‡ capacidade  de  libertar-se,  resgatar  a  sua
imagem e  salvar  os  seres  humanos,  mostrando-lhes  a  verdade.  Encarcerado  em  si,
reconhece a sua finitude, sua limitaƒ„o. No desfecho da narrativa oferta uma advertncia
‡ humanidade. Por Žltimo, evocando a presenƒa de sua luz nela, ele acalenta a esperanƒa
de ganhar a compreens„o pela inaƒ„o.
Ainda  sobre  o  conto,  gostar‰amos  de  elucidar  alguns pontos.  O  sono  e  o  sonho
constituem a  met†fora  do  fim  do  narrador-personagem.  Tentando  compreender  o
significado  dos  sonhos,  LŽcifer  recupera  a  imagem  de  duas  crianƒas:  “A  primeira  se
chamava Is  e  tinha o nŽmero 14 selado  a  fogo  na  testa;  a  Žltima era  Rev  e  seu  corpo
triturado  trazia  o nŽmero 1220.  Das  outras,  lembro  apenas  de uma massa  amorfa, em
forma  de  vmito  e  excreƒ„o” (GOUVEIA,  2007,  p.  323). As  crianƒas  abortadas  que
surgem  em  del‰rios  on‰ricos  sequenciais,  avolumam-se  ‡  medida  que exsurgem  na
mente de LŽcifer. As marcas e as denominaƒ…es da primeira e da Žltima Is  14 e Rev
1220, respectivamente, s„o simbŠlicas.
O nome Is remete ao livro de Isa‰as11, presente no Antigo Testamento. O nŽmero
14  denota  o  cap‰tulo. Associando  essas  express…es, temos  Isa‰as  14.  Tal  passagem
apresenta uma  s†tira  contundente  a um oponente.  H† nos  vers‰culos b‰blicos  a
celebraƒ„o da certeza da queda e morte do rei opressor e tirnico. O rei, a‰ focalizado, ˆ,
provavelmente Nabucodonosor,  da  Babilnia.  Inobstante  isso, encontramos  uma
menƒ„o clara ‡ figura de Sat„:
Tua majestade desceu  ‡ morada dos mortos,
acompanhada do som de tuas harpas.
Jazes sobre um leito de vermes
e os vermes s„o a tua coberta.
Ent„o! Ca‰ste dos cˆus,
astro brilhante, filho da aurora!
(Is 14, 11-12)
Com fulcro nesses versos, temos a aƒ„o poderosa de Javˆ que arrasa o inimigo. 
o prenŽncio do que acontecer† a Nabucodonosor. A voz-poˆtica canta a humilhaƒ„o de
LŽcifer  (=  astro  brilhante).  Fazendo  isso,  profetiza  o  destino do  rei da Babilnia e  de
todos  os  que  se  insurgem  contra  Javˆ.  Logo,  o  referido  governante liga-se  a  Sat„.
Ressaltamos, ainda, que a humilhaƒ„o do povo babilnico ˆ cruel: ru‰na e exterm‰nio do
11 Is ˆ a abreviatura usual de Isa‰as.
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seu povo, inclusive com o massacre de toda a descendncia (Is 14, 21-23). O vers‰culo
19 do livro de Isa‰as reforƒa, a partir de outra construƒ„o imagˆtica, o ultraje infligido
ao rei: “Todos os reis das naƒ…es, todos repousam com glŠria, cada um no seu tŽmulo; /
tu, porˆm, foste atirado para longe do teu sepulcro, como um aborto que causa horror”
(Is 14, 18-19).
J†  a  Žltima  crianƒa  do  sonho  do  “astro  brilhante” chama-se  Rev.  Ela  possui a
marca 1220. Rev, na  nossa  an†lise, ˆ a abreviatura de Revelaƒ„o, ou seja, Apocalipse,
mensagem reveladora. A numeraƒ„o 1220 pode ser desmembrada. Destarte, passamos a
ter 12  e  20,  que  s„o  dois  cap‰tulos  importantes  do  texto  de  Jo„o,  livro que  encerra  o
Novo Testamento. As mencionadas seƒ…es  do  Livro do Apocalipse  (ou da Revelaƒ„o)
tratam da derrota da Serpente (LŽcifer). Em Apo 12, deparamo-nos com a descriƒ„o de
um combate no cˆu, em que o Drag„o, que personifica o mal, tenciona lutar contra as
estrelas (Deus), bem  como aspira  a  devorar o  filho  da  Mulher12,  o  Messias, que  veio
para extermin†-lo. Contudo, as pretens…es daquele s„o frustradas. No cap‰tulo 20, Jo„o
narra a sorte da Serpente e a vitŠria definitiva de Deus.
Refletindo sobre as profecias do livro de Isa‰as (14) e a mensagem do Apocalipse
(12 e 20), notamos que elas se presentificam no sonho de LŽcifer. A Palavra Divina j†
invadia os recnditos da mente luciferina (as crianƒas abortadas e marcadas). Elas eram
o sinal da revelaƒ„o de Deus, anŽncio da derrota, pris„o, humilhaƒ„o e violncia, o fim
de LŽcifer.
Abrah„o  Costa  Andrade (2003,  p.  176),  afirma  que  Arturo Gouveia,  em  seus
contos, “desmantela certo esquema mental afeito a colocar em posiƒ„o de atrito linear o
bem  e  o  mal.” Com  efeito,  no  di†logo  entre  o  texto  ficcional analisado e  o  cnone
b‰blico, percebemos uma ruptura total, visto que a escolha de LŽcifer como narrador e
como  protagonista  manifesta  uma  atitude totalmente  inventiva e  questionadora,  que
causa impacto e incompreens…es para quem l (invers„o da origem do mal13), haja vista
a  forte  heranƒa  judaico-crist„  que  impera  no  Ocidente.    a  efetivaƒ„o  da  chamada
poˆtica do incmodo (ANDRADE, 2003, p. 177).
12 A Mulher estava prestes a dar ‡ luz a um menino, que era o alvo do Drag„o.
13 O  conto  materializa  a  transgress„o  dos  evangelhos  b‰blicos e, de  certa  maneira, a  compreens„o
agostiniana  sobre  o  mal (ver  SANTO  AGOSTINHO.  Confissões. S„o  Paulo:  Martin  Claret,  2002). A
narrativa, alˆm de recuperar o manique‰smo, isentando a humanidade, inverte a origem: o Mal provˆm de
Deus.
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Pela verificação que fizemos da narrativa arturiana, fica patente a sua
classificação no rol da arte de segregação.
As consonâncias e as dissonâncias: uma breve comparação
A aplicabilidade do conceito de arte de segregação nas narrativas Três versões de
Judas, de Jorge Luis Borges, e, O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia,
viabiliza a comparação destas.
Considerando que a segregação não é absoluta, enfocamos os aspectos que a
caracterizam, visto que prevalecem nos textos mencionados. A incursão comparatista
está radicada no engendramento da transgressão e subversão da forma e do conteúdo
que marcam os contos estudados.
Os personagens são distintos, mas compartilham o mesmo papel antagônico ante à
construção do reino celeste e da salvação dos homens por Cristo, e, por este motivo,
recebem o desprezo, a marginalidade, a periferia, seja na bíblia e em outros textos
literários, ao longo do tempo. As narrativas aqui estudadas, uma do século XX e outra
do XXI, estabelecem uma visão atípica sobre tais personagens, respectivamente, Judas e
Lúcifer, que são alçados à posição de centralidade. Mudando-se o ângulo, encontramos
nas narrativas a exposição de pontos de vista desmistificadores em relação a ambos,
efetivando-se, assim, a desconstrução da imagem que a tradição cristalizara. Judas, de
traidor passa a salvador, e, Lúcifer, a personificação do mal, fonte de todo pecado,
mostra-se como Criador, vítima da truculência de Deus, este sim, sob seu prisma, o
próprio mal. É a consagração da subversão temática, discurso herético por natureza.
A despeito dessa convergência, os aspectos estruturais são dissonantes e, ao
mesmo, transgressores. Três versões de Judas consiste em um misto de narrativa e
ensaio. Com esta configuração, o narrador-ensaista explicita as teses de um heresiarca,
chamado Nils Runeberg, acerca da figura de Judas Iscariotes. Há um adensamento da
hermenêutica sobre a temática da traição de Judas no decorrer da exposição. Os
argumentos de Runeberg, delineados pelo narrador, ganham mais corpo, isto é, ficam
mais elaborados na medida em que avançamos na leitura do conto, até redundarem na
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decifraƒ„o do enigma de Judas: o salvador da humanidade. Esta situaƒ„o leva Runeberg
a encontrar-se com a loucura e a morte. A narraƒ„o ˆ praticamente argumentaƒ„o.
O  evangelho  segundo  LŽcifer n„o  est†  pautado  numa  voz  pretensamente
“imparcial” como no texto borgiano.  o prŠprio LŽcifer que propaga a sua not‰cia, ou
seja, a “boa-nova” n„o ˆ revelada por terceiros (diferentemente do que ocorre no cnone
b‰blico).  O  “Anjo  de  Luz”  relata  sua  vers„o  sobre  os  fatos  da  Criaƒ„o,  da queda, do
cativeiro.  Imputando a  Deus  a  responsabilidade pelas  cat†strofes no  mundo, vocifera
que  Ele  ˆ  o  berƒo  do  mal  e  do  pecado  e que as  escrituras  n„o s„o  sacrossantas,  pelo
contr†rio,  constituem  alienaƒ„o e  obscurem a  verdade. A  sua  mensagem ˆ  para  que  a
humanidade  liberte-se  da  cegueira  divina,  evitando  assim  o  Mal  (Deus)  e  as  misˆrias
que lhe ser„o infligidas. A LŽcifer cabe resignar-se com o destino cruel e reconhecer-se
incapaz, clamando, humildemente, a compreens„o do gnero humano. Este instante ˆ o
reconhecimento da vitŠria de Deus, ou seja, o fim dos tempos. H† uma reinvenƒ„o do
evangelho, da b‰blia, de si e, consequentemente, de Deus. D†-se no conto uma complexa
e irnica construƒ„o textual, cujo tom subversor se acentua na circularidade de ideias,
na  resistncia de  LŽcifer e  na  dominaƒ„o  por  dentro  (matˆria  on‰rica)  e  por  fora
(emparedamento) de Deus sobre a conscincia e a aƒ„o da Serpente, o que reforƒa que
Ele ˆ o mal absoluto, desprovido da misericŠrdia. A narraƒ„o ˆ revelaƒ„o ‡s avessas.
Referências
ADORNO, T. W. Notas de literatura I. S„o Paulo: Duas Cidades; 34, 2003.
ANDRADE,  A.  C.  Angústia da concisão:  ensaios  de  filosofia  e  cr‰tica  liter†ria.  S„o
Paulo: Escrituras, 2003.
ARIST€TELES; HOR“CIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed. S„o Paulo: Cultrix,
1997.
BORGES, J. L. Obras completas. v.1. S„o Paulo: Globo, 1998.
_______. Obras completas. v. 3. S„o Paulo: Globo, 1999.
B”BLIA. Portugus. Bíblia sagrada. Traduƒ„o do Centro B‰blico CatŠlico. 86. ed. S„o
Paulo: Ave Maria, 1992. Ediƒ„o Claretiana.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histŠria liter†ria. 8. ed. S„o
Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
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GOUVEIA, A. O evangelho segundo Lúcifer. João Pessoa: Idéia, 2007.

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