terça-feira, 26 de abril de 2011

SOB O SIGNO DO DEMÔNIO (Bruxaria, sexualidade e feminino no Malleus Maleficarum)

Em 1484, os monges dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger deram termo aos
trabalhos de elaboração do que seria, a partir daquele momento, o grande instrumento de
ensino e sistematização do combate às heresias, bruxarias e a toda ordem de males que afligia
o ocidente católico. O resultado desse trabalho foi a publicação do grande manual da
inquisição católica em fins do século XV, o livro Malleus Maleficarum. Este livro foi
avaliado e consagrado pelo Papa Inocêncio VIII – através da Bula Papal de 1484 –, que
proferiu autoridade inquisitorial aos dois monges supracitados, determinando a legitimidade de
seus processos. Segundo está registrado na referida Bula Papal:
“haverá de ameaçar a todos os que vierem a dificultar ou impedir a ação dos
Inquisidores, a todos os que lhes opuserem, a todos os rebeldes, de qualquer
categoria, estado, posição, proeminência, dignidade ou de qualquer condição que
seja – não importando o privilégio de que disponha – haverá de ameaçá-los com a
ex-comunhão, a suspensão, a interdição, e inclusive com as mais terríveis penas, as
piores censuras e os piores castigos, como bem lhe aprouver, e sem qualquer direito
de apelação, e se assim o desejar poderá, pela autoridade que lhe concedemos,
agravar e renovar tais penas quantas vezes for necessário, recorrendo, se assim
convier, ao auxílio do braço secular” .(KRAMER & SPRENGER, 1991: 45-46)
O Malleus Maleficarum, portanto, deve ser compreendido como um discurso
paradigmático no sentido de configurar um grande esforço normativo sobre os procedimentos
e métodos a serem adotados pela inquisição nos diversos locais em que ela existiu no período
moderno.
O livro é disposto de três partes principais. Na primeira os autores promovem uma
exaltação ao demônio e o liga à questão da bruxaria, através da ideologia inquisitorial; na
segunda o Malleus Maleficarum ensina a reconhecer, no cotidiano da população, uma bruxa e
a neutralizá-la; na terceira, e última, são dispostos os julgamentos e as sentenças a que são
submetidas as, assim classificadas, bruxas.
A historiografia sobre o tema proposto é ampla. Os trabalhos de Carlo Ginzburg, Keith
Thomas, Julio Caro Baroja e Francisco Bethencourt fornecem importantes painéis
interpretativos tanto sobre a questão da inquisição quanto ao problema da bruxaria enquanto
temas da história social e religiosa moderna. No trabalho de Francisco Bithencourt, O Imaginário da Magia, o autor retrata a mentalidade da população portuguesa no século XVI, e
nos permite observar certas peculiaridades intrínsecas ao cotidiano popular. Neste sentido,
ganha força a estreita relação existente entre o homem e as totalidades cósmica e social. O
homem se vê envolto a uma rede de dependências em relação à natureza, onde os ritmos
espontâneos dos astros e das estrelas passam a influenciar e determinar de forma crucial sua
vida em sociedade.
Também de Francisco Bithencourt é a obra História das Inquisições: Portugal,
Espanha e Itália. Séculos XV-XIX que, no amplo painel das inquisições em Espanha, Portugal
e Itália, permite-nos relacionar processos sociais específicos com questões intelectuais
relevantes sobre a forma como se percebia a mulher e seus significados relacionados à magia e
ao diabólico no universo ibérico, demarcando as diferenças para o problema na Inglaterra e na
França. Esta afirmação é ratificada ao percebermos que a inquisição espanhola, em especial,
expandiu seus Autos de Fé para além mar, exportando seus modelos inquisitoriais para a
América hispânica. Segundo o autor, a Espanha terá sua inquisição datada de 1478 a 1834 e
este é um dos maiores exemplos da magnitude que se pode conferir às práticas inquisitoriais
no continente europeu, sem, no entanto, reduzir o papel desenvolvido pelos tribunais de
Portugal e Itália. Não cabe aqui concordar ou discordar dos Autos de Fé, das etiquetas e dos
ritos pertinentes a este mundo, mas sim compreender a forma como se classificava uma bruxa,
e perceber o que era a mulher para aquela sociedade.
Em História Noturna o autor Carlo Ginzburg, através de testemunhos fragmentados,
analisa os principais relatos a respeito da questão da bruxaria, levando em conta suas
particularidades e não deixando de apontar rastros de semelhança entre determinadas culturas.
Afim de responder a existência, ainda hoje,de estruturas pertinentes ao sabá, que sobreviveram
mesmo após este ter sido dissolvido, Ginzburg observa ser necessária uma viagem ao mundo
dos mortos, viagem esta cheia de folclores e rituais.
Mais recentemente o trabalho de Stuart Clark, Pensando com Demônios: A idéia de
bruxaria no princípio da Europa Moderna; fornece-nos importantes diálogos sobre questões
que pretendemos investigar. Este autor realiza uma moderna análise sobre bruxaria e
inquisição que dá conta de antigas questões a partir de um enfoque inovador. Desenvolve análises da bruxaria relacionada à linguagem empregada entre os séculos XV e XVIII e à
“história” de desenvolvimento do termo “bruxaria” frente às questões sociais vigentes.
As obras estudadas possuem estudos imbricados referentes à imagem do feminino e do
maligno. O manual inquisitorial Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras – aqui
exposto tem como idéia chave diagnosticar o ator desestabilizador da ordem litúrgica católica
e inquiri-lo1 a fim de expurgar o maleficium que nele se acomodara. É neste sentido que
encontravam nas bruxas e/ou feiticeiras as verdadeiras deturpadoras da estrutura social.
Entretanto, é importante ressaltar que a mentalidade desta sociedade é herança de uma
perspectiva patriarcal do mundo.
Conforme vimos, subjaz à idéia de mulher nesta época um significado a priori
negativo, relacionado ao maligno, ao demoníaco e à sensualidade. O termo mulher, inclusive,
segundo está registrado no Tesoro de la Lengua Catellana o Española, publicado em 1611, de
Sebastián de Covarrubias, expressa o ideal da mulher do Antigo Regime, como um ser honesto
e recatado: “a quiem consagran el recato, la honestidad y el recogimiento, que éstas han sido
crédito y lustre de naciones y monarquias”(COVARRUBIAS, 1943: 818). Desta forma, são
destacadas as virtudes possíveis de serem encontradas na mulher ideal, ou seja, a mulher
católica. Em contrapartida, logo após apontar as virtudes do feminino, Covarrubias desdobra
sua análise para o extremo oposto. Segundo o autor do dicionário, a má mulher é o tormento
da casa, o naufrágio do homem, uma fera doméstica. “Somos, dixo uma, para dar consejos
muy pobres, para acarrear daños...” (COVARRUBIAS, 1943: 818). Pode ser notado, então,
que se por um lado existe uma idéia de mulher aproximada com a perfeição, outras tantas são
classificadas a partir de laços estreitos com a idéia do mal, a mulher que será classificada por
bruxa, deturpadora da ordem “natural”.
Diante do aqui exposto, optei por investigar a concepção sobre o feminino, presente na
obra de Kramer e Sprenger, intitulada Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras. Nesta
obra pode ser verificada a estreita relação presente na idéia de mulher e malefício. Neste
sentido, a pesquisa analisa o lugar social da mulher no Antigo Regime, a partir da visão pejorativa que haverá sobre ela, buscando compreender a associação do feminino com o
universo do maligno, presente no imaginário do Antigo Regime. Para tal é de suma
importância entender a lógica “natural” de preservação da mulher em seu lugar ideal neste
período.

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