quarta-feira, 15 de junho de 2011

O que aconteceu depois da Páscoa

Para criar uma religião mundial, o Jesus libertador do povo judeu foi transformado no Filho de Deus e ganhou o nome de Cristo

Três tempos
Paulo (acima, no quadro Monte de Marte, de Rafael) prega sua mensagem sobre Jesus (no centro, no mosaico Ressurreição, da Igreja da Transfiguração, em Massachusetts), que permanece até hoje sob a orientação do Vaticano (abaixo)
A religião cristã não começou com Jesus. Segundo estudos recentes feitos por historiadores e teólogos cristãos, a imagem desse homem como Filho de Deus surgiu alguns anos após sua morte em Jerusalém por volta do ano 30 do que hoje chamamos Era Cristã. Mais ainda: a versão de que Jesus teria sido condenado pelo povo judeu passou a ser construída muito depois de sua morte, com a elaboração dos evangelhos. Diante de um mundo dominado pelos romanos, o cristianismo evitou complicações políticas e se distanciou de sua origem: uma seita judaica formada por homens contrários à dominação estrangeira. Liderada por Tiago, irmão de Jesus, a seita praticamente desapareceu no massacre de Jerusalém pelos romanos na revolta que terminou no ano 70. Para seus integrantes, Jesus era o Messias, descendente do rei Davi que nascera para libertar o povo judeu da opressão e fora morto sob acusação de rebelião. Fora da Palestina o trabalho iniciado pelo apóstolo Paulo prosseguiu, com a mensagem de um Cristo divino e descomprometido com a política.
Por muito tempo, a versão aceita pela tradição cristã fez do ato de terror do Império Romano um crime dos judeus
"Vendo Pilatos que nada conseguia, mas, ao contrário, a desordem aumentava, pegou água e, lavando as mãos, na presença da multidão, disse: "Estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa". (Mateus, 27, 24-25)

O julgamento
Cristo perante Pilatos, quadro de 1566-1567 de Tintoretto
Até cerca de 50 anos atrás, nas missas católicas da Sexta-Feira Santa, os padres diziam aos fiéis para orar pelos "pérfidos judeus", para que Deus tivesse piedade deles. Essa expressão discriminatória, que foi retirada da liturgia católica durante o papado de João 23 (1958-1963), se originou da versão sobre a Paixão de Cristo consagrada pelos evangelhos. Estudos críticos da Bíblia, mais freqüentes nas últimas décadas – por parte de estudiosos ateus, judeus e até cristãos – rejeitam a versão que mostra Pôncio Pilatos comovido com Jesus e inconformado com a suposta multidão que teria pedido sua morte.
Baseados em diversos relatos, como os de Flávio Josefo (35-100 d.C.), autor de A Guerra Judaica, e nos princípios do Direito Romano, esses historiadores estão convencidos de que a condenação de Jesus foi apenas mais uma entre as milhares realizadas pelos romanos na Palestina. "Foi basicamente um ato oficial de terrorismo. Roma não tolerava rebeliões em seus domínios", afirma o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. A morte na cruz era a pena imposta pelos romanos para os delitos contra o império.


A cidade da execução
Jerusalém, onde hoje vivem israelenses e palestinos, teve seu antigo Templo destruído e, no Gólgota (local do suposto sepultamento de Jesus), está hoje a Igreja do Santo Sepulcro


Ameaça ao grupo
A acusação contra Jesus por parte dos judeus se restringiu aos saduceus, a facção que apoiava a dominação romana e controlava a nomeação dos sumos sacerdotes. Jesus teria sido uma ameaça para eles, segundo o teólogo Hermínio Andrés Torices, professor da PUC de Campinas e do Instituto Teológico de São Paulo. "Tudo indica que houve um complô desse grupo restrito, mas não uma vontade coletiva dos judeus de Jerusalém", diz Torices. O judaísmo na época de Jesus era muito diversificado, mas apesar das muitas facções, o sentimento contra a dominação estrangeira era geral e muito forte na população local.

"Os evangelhos falam pouco sobre os atos dos romanos na Palestina. Seria o mesmo que contar a história da França de 1940 a 1945 sem falar nos alemães."

Hyam Maccoby, da Universidade de Leeds, na Inglaterra, em entrevista ao documentário O Verdadeiro Jesus Cristo, produzido pelo Channel 4
Um outro tema tratado nos evangelhos, a libertação de Barrabás, serviu para temperar essa suposta vontade coletiva dos judeus de condenar Jesus à morte. O privilégio de os judeus poderem pedir durante a Páscoa a libertação de um condenado não passa de uma lenda, segundo diversos estudiosos, como Paul Winter (1904-1969), em seu livro póstumo Sobre O Processo de Jesus, de 1974.
Acredita-se que, escritos a partir da grande revolta dos judeus contra Roma (66-70 d.C.), os evangelhos evitaram acusar o Império pela morte de Cristo. "Há uma nítida tendência para amenizar as tensões entre romanos e cristãos, até mesmo nos séculos seguintes", afirma Torices. Essa tendência só termina no ano 313, quando o imperador Constantino decreta o Edito de Milão, estabelecendo uma política de liberdade religiosa. Por pouco, segundo Winter, Pilatos não foi canonizado, assim como aconteceu com sua mulher pela Igreja Grega por ter sido advertida em um sonho que Jesus era inocente (Mateus, 27,19).
Após se converter, Paulo prega fora da Palestina para os não-judeus; começam as brigas com Tiago, irmão de Jesus
As pesquisas das últimas décadas mostram como a pequena seita judaica criada por Jesus conseguiu sobreviver de maneira surpreendente à guerra de 66-70 d.C., em que os romanos praticamente massacraram os judeus. Isso ocorreu por obra de um homem que havia sido um implacável perseguidor desse povo convertido: o apóstolo Paulo, nascido em uma família israelita de Tarso, na atual Turquia, com o nome de Saulo. Segundo os Atos dos Apóstolos, após presenciar de forma cúmplice o apedrejamento de Estevão em Jerusalém, Saulo "devastou a Igreja: entrando pelas casas arrancava homens e mulheres e metia-os na prisão".
Isso ocorreu até que, em uma viagem a Damasco, Jesus teria aparecido após uma luz intensa vinda do céu tê-lo cegado, fazendo-o cair no chão. Depois da visão, ele deixa de lado o nome judaico e passa a se chamar Paulo, da língua do Império Romano, o latim. E começa sua missão com os gentios (não-judeus) em viagens a Chipre, à Ásia Menor e à Grécia.



Ruptura entre facções
No ano 48 d.C. , realiza-se o Concílio de Jerusalém. Nessa reunião, Paulo conseguiu convencer Tiago, irmão de Jesus e líder da seita que continuou na Palestina após a crucificação, a permitir que pagãos convertidos fossem dispensados de seguir a Lei judaica, que estabelecia, entre outras obrigações, a circuncisão e os princípios de seleção e preparação de alimentos. Paulo prossegue com sua missão, mas a doutrina pregada por ele já não era a mesma da Igreja de Jerusalém.
Para Tiago e seus seguidores, Jesus era o Messias, que teria vindo ao mundo para livrar o povo judeu da opressão. Era o escolhido para implantar o Reino de Deus, isto é, governar Israel conforme a Lei. Paulo, porém, apresentava Jesus sob o nome grego Cristo, cujo significado era o mesmo de Messias em hebraico: "Ungido". O Cristo anunciado por ele era o Filho de Deus. Tiago e os outros apóstolos o tinham conhecido em vida, mas Paulo alegava ter visto o Cristo celestial. Em sua Primeira Epístola aos Coríntios (15,8), ele se declara como o último dos que viram o Filho de Deus ressuscitado. Paulo ensina que o cristão é livre do pecado pelo seu amor a Cristo e que a Lei era obsoleta. "Vamos pecar porque não estamos mais debaixo da Lei mas sob a graça? De modo algum!" (Romanos, 6,15).

"Este (Paulo) é o primeiro cristão, o inventor do cristianismo. Até então havia apenas alguns sectários judeus."

Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, em Aurora
As desconfianças se agravam. Paulo faz uma violenta acusação na Epístola aos Gálatas (2,4) aos "falsos irmãos que se infiltraram para espiar a liberdade que temos em Cristo Jesus, a fim de nos reduzir à escravidão". Ele segue para um encontro com Tiago em Jerusalém, possivelmente no ano 58. Reconhecido no Templo como aquele que pregava o abandono da Lei, é ameaçado de morte, apela para sua cidadania romana e escapa do linchamento ao ser preso pelos soldados. Tiago é morto por apedrejamento quatro anos depois. Paulo é decapitado em Roma depois por ordem de Nero. Mas o mundo conhecerá somente o Cristo de Paulo.
O Cristo celestial de Paulo obscurece o Jesus histórico, cresce com o Império Romano e se expande para o mundo
Segundo o que se conhece sobre aqueles tempos turbulentos, a Igreja cristã de Jerusalém praticamente morreu com o massacre comandado por Tito no ano 70. Tiago e seus seguidores teriam sido judeus de origem humilde, talvez com modesta formação intelectual, afirma Robert Eisenman, diretor do Instituto de Estudos das Origens Judaico-Cristãs, da Universidade do Sul da Califórnia, em Long Beach, nos EUA. O sofisticado Paulo, ao contrário, tivera sólida formação na cultura greco-romana e preparou o caminho para que a expansão cristã pudesse prosseguir após sua morte. "Além de fazer uma peregrinação missionária original, criando vínculos em cidades importantes, ele soube escolher pessoas para multiplicar seu trabalho", afirma o teólogo Fernando Altemeyer Júnior. "Se fosse nos dias de hoje, ele usaria a internet." Paulo permaneceu 18 meses em Corinto, na Grécia, pregando aos trabalhadores do porto e marinheiros, que passaram a difundir sua mensagem. "Paulo enxergava a direção que tomava o mundo e agiu para fazer o cristianismo crescer no futuro", diz o teólogo Hermínio Andrés Torices.
A intuição do apóstolo faz com que ele apresente a fé cristã com uma dramatização comovente e arrebatadora para os homens de um mundo sob domínio político opressivo. Paulo, que conhecera os filósofos estóicos, como o romano Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.), cria uma doutrina semelhante em alguns aspectos ao pensamento deles. O estoicismo, que esvaziava da filosofia o conteúdo político em favor da moral e da realização subjetiva, surgira a partir da perda da liberdade política das cidades-estado gregas para os conquistadores macedônios no século 4 a.C. A liberdade do cristão, diz Paulo, é a salvação obtida somente por meio da fé e do amor em Cristo.
Traição aos judeus


O apóstolo Paulo, em um mosaico no Arcebispado de Ravena, Itália
Para os judeus seguidores de Jesus, no entanto, política e religião eram uma coisa só. Diante da ameaça de serem massacrados pelos romanos, eles consideravam o cristianismo de Paulo como uma traição. Entre os círculos judaicos mais radicais a Roma, ele chegou a ser apontado em sua época como um herodiano, segundo Robert Eisenman em seu artigo "Paul as a Herodian", publicado em 1996 no Journal of Higher Critical Studies. Eram assim chamados, em alusão a Herodes e sua família, todos aqueles considerados cúmplices da dominação romana e de seus governantes fantoches por usufruírem benefícios ou simplesmente por não adotarem uma atitude contrária, de acordo com Eisenman.
Além de não se opor aos dominadores, o cristianismo teria desvirtuado a imagem de facções judaicas, como o farisaísmo, que apregoava a rigorosa observação da Lei, e criticava tanto os saduceus, cúmplices dos romanos, como os zelotas, que pegavam em armas contra eles. "Na tradição cristã, a palavra ‘fariseu’ tornou-se sinônimo de ‘hipócrita’, ou se aplica àqueles que se atêm a minúcias sem atender ao que importa", diz Winter.

"Eu vos faço saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo."

Paulo, Epístola aos Gálatas, 1, 11
Outros pesquisadores, como Geza Vermes, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, vão mais além na crítica às origens cristãs. "No relato de João da vida de Jesus, eles (os judeus) são um bando sedento de sangue que desde o início procurou matá-lo e não desistiu até ter sucesso em seus planos nefandos", diz Vermes no livro A Religião de Jesus, o Judeu. "Eis a origem da tendência cristã de demonizar os judeus, a origem do antijudaísmo religioso, tanto moderno quanto medieval, que direta ou indiretamente conduz ao Holocausto."
Exageros nas críticas


A cristianização de Jesus
O Jesus humano e judeu (acima, em A Crucificação Amarela, de Chagal) sai de cena para dar espaço ao Cristo celestial (à dir., em Ressurreição, de Grunewald)

Embora não discordem dessas afirmações, muitos estudiosos esclarecem que é preciso cautela para evitar uma injusta redução da obra de Paulo. Alguns historiadores, como da Universidade de Leeds, na Inglaterra, afirmam em várias obras que ele fez um trabalho sistemático de construir uma religião conveniente para o momento, e o responsabiliza pelos evangelhos oficiais. "Isso é um exagero. Paulo é quem mais fala da cruz romana como uma garantia histórica do personagem que foi o filho de José", diz Altemeyer. "Em cada uma de suas cartas ele tratou de assuntos específicos, sendo sempre muito enfático com o tema central", afirma Ana Flora Anderson, professora da Escola Dominicana de Teologia, em São Paulo. "Por isso, não é justo fazer conclusões gerais e sintéticas da obra paulina."

Apesar de todas essas críticas, o Novo Testamento continua sendo a fonte mais rica e mais detalhada das origens cristãs. Mas, felizmente, o cristianismo passou nos últimos 50 anos, a partir de João 23, a rever seus procedimentos no dia-a-dia. "As barreiras de desconfiança mútua se dissolveram. Nunca houve tantos encontros oficiais de católicos com a comunidade judaica visando caminhar para uma verdadeira fraternidade", diz o rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista, em São Paulo. "Esse é um caminho para valer, sem volta."

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