DUAS POSIÇÕES EXTREMADAS devem ser evitadas no
que diz respeito ao demônio. A primeira consiste em negar sua existência ou,
senão, qualquer influência na História e na vida dos homens (o que, em termos
práticos, equivale a negar que exista). Esta é a oposição de agnósticos,
racionalistas e materialistas. Dentre estes alguns procuram colorir sua
descrença com tintas de ciência: o demônio seria simplesmente a
personificação de nossos próprios defeitos...
A segunda posição errada está em atribuir-lhe um
papel exagerado nos acontecimentos, conferindo-lhe poderes excessivos, quase
como se fosse um deus com sinal negativo. E a posição de satanistas e ocultistas,
bem como daqueles que, sem chegar a esse extremo, se entregam entretanto a
práticas mágicas e supersticiosas, como ocorre em muitas das religiões de
povos primitivos, hoje tão em voga mesmo em círculos cultos...
O demônio não é nem uma coisa nem outra: nem uma
simples personificação do mal, nem uma espécie de divindade maligna. Ele é
simplesmente um anjo decaído, que conserva os poderes (e as limitações) da
natureza angélica, porém só pode fazer uso deles na medida que Deus o
permita. E Deus só permite sua atuação quando ela redunde na glória divina,
ou contribua para a salvação dos homens ou, ainda, sirva para o castigo
destes, quando merecedores
O problema do mal
“E Deus viu
todas as coisas que
tinha feito, e
eram muito boas".
(Gen 1,31)
ANTES DE ESTUDARMOS a queda de uma parte dos
anjos, assim como a figura e a ação do demônio, parece conveniente deter-nos,
ainda que rapidamente, no exame do problema do mal. Pois evidente que, se o
mal não existisse, não haveria possibilidade de existirem seres malignos, que
não visam senão o mal: os demônios.
Natureza e origem do mal
De onde procede o mal? Como se podem conciliar a
bondade a onipotência de Deus com a existência do mal? Se Deus podia impedir
o mal, e não o quis impedir, onde está a sua bondade? E se Deus queria
impedir o mal e não o pôde, onde está a sua onipotência? Em ambos os casos,
onde está a sua Providência?
Esse foi um dos problemas que mais angustiaram a
Humanidade em todos os tempos, e que só encontra uma solução satisfatória com
o Cristianismo. Os povos pagãos antigos, premidos por duas realidades
aparentemente inconciliáveis — de um lado, a bondade e a onipotência de Deus;
do outro, a existência do mal —, procurando evitar o absurdo de atribuir ao
ser bom por excelência (Deus) a origem do mal, caíram em outro absurdo, que é
o de supor a existência de dois um deuses:um deus bom, criador do bem, ao
lado do um deus mau, que seria o criador do mal. Essa concepção — conhecida
em filosofia como dualismo - é tão absurda como se, para explicar a noite e o
frio se admitisse a existência de um sol negro e gélido, distinto do sol
radioso e quente, fonte do dia e do calor. Como é evidente, é o mesmo e único
sol que dá origem ao dia quando nasce e provoca a noite quando se esconde;
que aquece quando está próximo da terra e faz com que surja o frio quando
dela se afasta. Assim também, não é necessário imaginar dois princípios
antagônicos — ou seja, dois deuses — para explicar a origem do mal. O que é
preciso, antes de tudo, é determinar a natureza do mal, para depois indagar
qual a sua origem. O dualismo erra não somente ao conceber duas causas
primeiras, contraditórias entre si, para o Universo - uma originando o bem e
outra o mal — mas também ao tomar o mal como se fosse um ser, uma coisa que
existe por si mesma. Ora, como ensinou Santo Agostinho: “O mal não tem uma
natureza: aquilo que é chamado mal é mera falta de bem. “(De Civ. Dei 11,9.)
Ou, no dizer de São Tomás de Aquino: "Nisto consiste a essência do mal:
a privação do bem".(Suma Teológica, 1, q. 14, a. 10.)
O mal não é, portanto, uma coisa, e sim a falta
de alguma coisa. Por isso, o mal não
existe por si mesmo, mas apenas como deficiência, como privação de algo.
Logo, não foi criado por ninguém. Não é, porém, qualquer privação que dá
origem ao mal, mas somente privação de algo que é próprio, necessário por
natureza à integridade de um determinado ser. Por exemplo, a privação da
capacidade de voar não constitui um mal para o homem, uma vez que não é
próprio á sua natureza; já a privação da vista é um mal para ele pois
enxergar é próprio à natureza humana. De onde procede essa possibilidade de a
criatura sofrer a privação do bem que é próprio à sua natureza? Em outros
termos, qual é a raiz primeira, a origem, aquilo que toma possível o mal?
Deus fez boas todas as criaturas, porém não as
poderia ter dotado de uma perfeição infinita, absoluta, pois a perfeição
absoluta só é possível no ser infinito, ou seja, no próprio Deus. Para fazer
criaturas dotadas de uma perfeição absoluta, Deus teria que criar outros
deuses, o que é absurdo; logo, só podia criar seres finitos, limitados;
portanto, imperfeitos, sujeitos a privações. É nessa limitação inerente à
condição de criatura que os filósofos, seguindo Santo Agostinho, vêem a raiz
primeira do mal. Daí decorre que a única maneira de evitar o mal seria Deus
não ter feito a criação, pois toda criatura é necessariamente limitada.
O mal pode ser considerado sob diversos aspectos,
de acordo com a privação a que se refere.
Se ocorre privação de um bem físico ou da
natureza inanimada, temos o mal físico ou natural; se a privação se refere a
um bem moral ou uma perfeição espiritual, estamos diante do mal moral.
O mal físico compreende todas as desordens da
natureza inanimada: terremotos, inundações, incêndios; e em particular as
desordens das criaturas sensíveis: o sofrimento, as doenças e a morte. O mal
moral compreende as desordens da vida moral: o pecado, o vício, a injustiça,
a violação das leis estabelecidas por Deus.
Por que Deus
permite o mal?
Por que Deus permite as catástrofes mais ou menos
freqüentes, as doenças, a morte, enfim? Como pode um pai deixar sofrer assim
os seus filhos? Não tem Ele poder para impedir o mal? E se não Lhe falta
poder, onde está a sua bondade, se não o impede?
Ensina São Tomás que Deus não permite o mal
físico senão de um modo inteiramente acidental, como ocasião para os justos
exercerem a virtude da constância, praticarem a caridade para com os menos
favorecidos ou doentes, etc. Por outro lado, ele deseja alguns males físicos
como pena devida ao pecado, como forma de restabelecer a justiça ultrajada
pelas faltas voluntárias. Com relação à morte, longe de ser o termo da vida,
ela é a passagem para uma nova vida, onde a felicidade é completa, sem
mesclar de sofrimento e onde se atinge o Sumo Bem, que é o próprio Deus.
Quanto ao mal moral ou pecado, Deus não pode querê-lo nem mesmo
indiretamente; mas ele pode tirar, corno do mal físico, algum bem, como por
exemplo, do pecado do perseguidor a manifestação da constância dos mártires.
A possibilidade do mal moral — ensinam os filósofos — é ao mesmo tempo a
conseqüência de um grande bem, a liberdade; e a condição de um bem ainda
maior, o mérito.
As criaturas racionais (os anjos e os homens),
por serem dotados de inteligência, possuem o livre arbítrio, a liberdade de
escolher entre bens possíveis. A capacidade de livre escolha decorre da
natureza inteligente desses seres, do conhecimento que eles têm de várias
ações, de seus fins últimos e dos meios para chegar a eles. A liberdade mesmo
imperfeita, é a mais bela prerrogativa do ser racional; é pois digno da
bondade divina tê-la concedido.
Deus não podia suprimir no anjo e no homem a
possibilidade de fazerem o mal, a não ser recusando-lhes a liberdade ou
dando-lhes liberdade incapaz de falhar; na primeira hipótese, eles ficariam
rebaixados ao nível dos irracionais, o que seria indigno de criaturas
espirituais; na segunda, eles se tornariam iguais a Deus, o que é um absurdo.
Deus quer que a criatura racional observe suas leis, não como o animal
desprovido de razão, que age seguindo os meros instintos, mas moralmente e
meritoriamente; ora, sem a possibilidade do mal moral, não haveria mérito na
prática do bem, pois não há mérito senão se faz o bem podendo não fazê-lo.
Deus quis que os anjos e os homens fossem os agentes de sua própria
felicidade ou se tornassem responsáveis pela própria desgraça, escolhendo por
si mesmos se colaboravam ou não com a
graça divina. Quando os anjos pecaram e quando os homens pecam, fazem um uso
desviado de sua liberdade; Deus, porém, não tolhe a liberdade de suas
criaturas racionais em razão do seu uso desviado, porque é próprio a Ele
criar e não destruir; seria contrariar-se a si mesmo fazer criaturas livres e
depois tolher-lhes a liberdade quando a usam mal. Por outro lado, a existência de seres
racionais não-livres é absurda.
O mal,
conseqüência do pecado
A estas considerações de ordem filosófica, o
Cristianismo acrescenta os dados revelados por Deus. Estes não somente
confirmam as descobertas da razão, conferindo-lhes uma certeza absoluta, mas,
indo além, nos dão os meios de saber ao certo aquilo que de outro modo não
passaria de mera suposição: corno o mal manifestou concretamente entre os
anjos e os homens. O Cristianismo rejeita toda e qualquer forma de dualismo:
tudo quanto existe provém de um só e único princípio, puro e bom. Sendo Deus
substancialmente bom e santo, tudo quanto provêm dele tem que ser,
necessariamente, bom em si mesmo. Por
isso, todas as criaturas, em si mesmas, são boas e aptas para propósitos do
Criador. Assim, lemos no primeiro livro da Bíblia: “E Deus viu toas as coisas
que tinha feito. e eram muito boas” (Gen 1, 31). O livro do Eclesiástico completa:
“Todas as obras do Senhor são boas e cada uma delas, chegada a sua hora, fará
seu serviço" (Ecli 39, 39). E o livro da Sabedoria explicita: “Deus não
fez a morte, nem se alegra com a perdição dos vivos. Porquanto criou Êle
criou todas as coisas para que subsistissem e não havia nelas nenhum veneno
mortífero, nem o domínio da morte existia sobre a terra” (Sal, 1, 13-14).
Diz ainda a Escritura que “foi na soberba que
teve início a perdição” (Tob 4, 14; Vulgata).
Parte dos anjos se revoltou contra Deus, e foram
expulsos do Céu, transformando-se em demônios; do mesmo modo, nos primeiros
pais desobedeceram o Criador com o pecado original perderam o estado de
inocência e de integridade, sendo expulsos do Paraíso terrestre. Como
decorrência do pecado original, houve uma debilitação da natureza humana,
tornando-se o homem mais vulnerável às paixões e às seduções do demônio, e
mais inclinado ao pecado; em castigo desse mesmo pecado, Deus permitiu que o
sofrimento se abatesse sobre o homem e a terra se lhe tomasse ingrata. No
Gênesis, depois da narração da primeira desobediência, vêm as palavras do
Criador ao primeiro homem: “Porque deste ouvidos à voz de tua mulher e
comeste da árvore de que eu te tinha ordenado que não comesses, a terra será
maldita por tua causa; tirarás dela o sustento com trabalhos penosos todos os
dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos” (Gen 3, 17-18). E o
inspirado autor do Eclesiástico escreve, numa alusão ao pecado original: “Da
mulher nasceu o princípio do pecado e por causa dela é que todos
morremos" (Eccli 25, 33).
O Apóstolo São Paulo resume magnificamente essa
doutrina sobre o pecado original, nos seguintes termos: “Assim como por um só
homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim também a morte
atingiu todos os homens, porque todos pecaram...Pois o salário do pecado é a
morte” (Rom 5, 12, 23). Em virtude da Redenção operada por Jesus Cristo,
entretanto, o sofrimento e a morte podem ser aproveitados pelo homem como
meio de aperfeiçoamento moral, de santificação. É assim que o mesmo São Paulo
exclama: “A morte foi tragada na vitória ( de Cristo). Morte, onde está a tua
vitória? Morte, onde está teu aguilhão?” E prossegue: “Sejam dadas graças a
Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, meus
irmãos amados, sêde firmes, constantes, progredi sempre na obra do Senhor,
sabendo que o vosso esforço não é inútil no Senhor (1 Cor 15, 54-58). Está
esperança que nos dá a força para lutar contra a ação do mal em nós mesmos e
no mundo. E é a doutrina a respeito do pecado original que nos esclarece
quanto á origem histórica do mal e quanto ao verdadeiro sentido da presença
do mal no mundo. Do contrário, o problema do mal ficaria insolúvel e nos
atiraria no desespero da incompreensão e da revolta.
A queda dos
anjos maus
"Tu,
desde o principio, quebraste o meu
jugo, rompeste
os meus laços e
disseste: —
Não servirei!”
(Jer 2,20)
DEUS CRIOU OS ANJOS num alto estado de perfeição
natural e além disso os elevou à ordem sobrenatural. É de fé que todos os
espíritos angélicos foram criados bons.*
*Essa é
uma conseqüência obrigatória da verdade de fé, de que todos os espíritos
angélicos foram criados por Deus, atestada pelo símbolo
niceno-constantinopolitano (o Credo da Missa), o qual proclama: “Creio em Deus Pai Todo-poderoso,
criador... das coisas visíveis e invisíveis”; essa verdade foi ainda definida
nos Concílios IV de Latrão e I Vaticano.
A Sagrada Escritura, com efeito, chama-os “filhos
de Deus" (Jó 38, 7), “santos” (Dan 8, 13), “anjos de luz” (2 Cor 11,
14). Entretanto, os próprios Livros Sagrados se referem a “espírito imundos”
(Lc 8, 29); “espíritos malignos” (Ef 6, 12); “espíritos piores" (Lc 11,
26); e outras expressões análogas.
Isto indica que certos anjos tornaram-se maus,
tiveram sua vontade pervertida. Em suma: pecaram.
A batalha no
Céu
“Tu, desde o princípio, quebraste o meu jugo,
rompeste os meus laços e disseste: — Não servirei!” (Jer 2, 20).
Este versículo do Profeta Jeremias sobre a
revolta do povo eleito contra Deus tem sido aplicado à revolta de Lúcifer.
Mas ao brado de rebelião de Lúcifer “Não servirei!” — respondeu São Miguel
com o brado de fidelidade: “Quem é como Deus!” (significado do nome Miguel em
hebraico). No apocalipse, São João descreve essa misteriosa batalha que então
se travou no céu:
"E houve no céu uma grande batalha: Miguel e
os seus anjos pelejavam contra o dragão, e o dragão com os seus anjos
pelejavam contra ele; porém estes não prevaleceram e o seu lugar não se achou
no céu. E foi precipitado aquele grande dragão, aquela antiga serpente, que
se chama o Demônio e Satanás, que seduz todo o mundo; e foi precipitado na
terra e foram precipitados com ele os seus anjos” (Apoc 12,7-9). O próprio
Jesus dá testemunho dessa queda: “Eu via Satanás cair do céu como um
relâmpago” (Lc 10, 18). “(O Demônio) foi homicida desde o principio, e não
permaneceu na verdade" (Jo 8,44).
Os anjos podiam
pecar
Como poderia o anjo ter pecado, uma vez que ele
não está sujeito às paixões ou ao erro no entendimento, como nós homens?
"Como compreender semelhante opção e
rebelião a Deus em seres de tão viva inteligência?” — pergunta João Paulo II.
O Pontífice responde: “Os Padres da Igreja e os teólogos não hesitam em falar
de cegueira, produzida pela supervalorização da perfeição do próprio ser,
levada até o ponto de ocultar a supremacia de Deus, a qual exigia, ao
contrário, um ato de dócil e obediente submissão. Tudo isto parece expresso
de maneira concisa nas palavras: "Não servirei" (Jer 2, 20), que
manifestam a radical e irreversível rejeição de tomar parte na edificação do
reino de Deus no mundo criado. Satanás, o espírito rebelde, quer seu próprio
reino, não o de Deus, e se levanta como o primeiro adversário do Criador,
como opositor da Providência, antagonista da sabedoria amorosa de Deus” (Apud Mons.C. BALDUCCI, El díablo, p. 20.)
E o Papa explica que os anjos, por serem
criaturas racionais, são livres, isto é, têm a capacidade de escolher a favor
ou contra aquilo que conhecem ser o bem: “Também para os anjos a liberdade
significa possibilidade de escolha a favor ou contra o bem que eles conhecem,
quer dizer, o próprio Deus”. (João Paulo II, Mcm, ibidem). Criando os anjos
racionais e livres, quis Deus que eles - com o auxílio da graça — fossem os
agentes de sua própria felicidade ou de sua perda, caso cooperassem ou
resistissem à graça. Para que merecessem a felicidade eterna, submeteu-os a
uma prova.
É de fé que todos os espíritos angélicos foram
submetidos a uma prova. Entretanto, não sabemos qual teria sido essa prova.
Os teólogos procuram excogitar qual teria sido.
O pecado dos anjos
maus
Qual teria sido a prova a que foram submetidos os
anjos? E qual teria sido o pecado dos que sucumbiram à prova?
Um pecado de soberba
Acredita-se comumente que tenha sido um pecado de
orgulho, de soberba, pois a Escritura
diz que “foi na soberba que teve início toda a perdição” (Tob 4, 14).
Santo Atanásio (séc. IV) o afirma explicitamente:
"O grande remédio para a salvação da alma é a humildade. Com efeito,
Satanás não caiu por fornicação, adultério ou roubo, mas foi o seu orgulho
que o precipitou ao fundo do inferno.
Porque ele falou assim: "Eu subirei e colocarei meu trono diante
de Deus e serei semelhante ao Altíssimo" (Is 14, 14). E é por essas
palavras que ele caiu e que o fogo eterno se tornou sua sorte e sua
herança”.(Apud Card. P. GASPARRI, Catechisme Catholique pour Adultes. p.
345.)
Em que teria consistido essa soberba?
Segundo São Tomás de Aquino, essa soberba
consistiu em que os anjos maus desejaram diretamente a bem-aventurança final,
não por uma concessão de Deus, por obra da graça, e sim por sua virtude
própria, como mera decorrência de sua natureza. Desse modo, quiseram
manifestar sua independência em relação a Deus; eles recusaram assim a
homenagem que deviam a Deus como seu criador e desejaram substituir-se a Ele
e ter o domínio sobre todas as coisas: ser como deuses (cf.Gen 3,5).
São Tomás faz igualmente referência à seguinte
passagem de Isaías — referente ao rei de Babilônia, mas geralmente aplicada a
Satanás — para ilustrar o pecado dele e dos anjos maus que o acompanharam na
revolta: “Como caíste do céu, ó astro brilhante [em latim: “Lúcifer”J, que,
ao nascer do dia brilhavas? ... Que dizias no teu coração: ... serei
semelhante ao Altíssimo” (Is 14, 13-14).
O pecado de Lúcifer e dos anjos que se revoltaram
com ele teria sido, pois, um pecado de soberba, ou seja de complacência na
própria excelência, com menoscabo da honra e respeito devidos a Deus.
Estes elementos se encontram em todo pecado —
explica o Pe. Bujanda — pois quem ofende a Deus prefere a própria vontade, em
vez da vontade divina, e nela se compraz.
Revelação da
Encarnação
Não está formalmente revelado no que consistiu
exatamente a prova dos anjos; os teólogos fazem hipóteses teológicas, como a
de São Tomás, exposta acima. Francisco Suárez, teólogo jesuíta do século
XVII, levanta outra hipótese: a prova dos anjos teria consistido na revelação
antecipada por Deus, da Encarnação do Verbo. Os anjos maus se teriam
revoltado contra a submissão em que ficariam em relação à natureza humana do
Verbo Encarnado, a qual, enquanto natureza, seria à natureza angélica. Uma
variante dessa hipótese é a que afirma que Lúcifer e os anjos revoltados não
quiseram submeter-se à Mãe do Verbo Encarnado, pela sua dignidade ficaria
colocada acima dos próprios anjos, embora inferior a eles por natureza. Essa
hipótese, entretanto, está ligada a uma outra questão: se o Verbo se teria
encarnado mesmo sem o pecado de Adão. Suárez, com algumas adaptações, segue a
opinião de Duns Escoto e de Santo Alberto Magno, a qual sustenta que sim; São
Francisco de Sales também participa dessa opinião. São Tomás, porém, é de
outro parecer. Argumenta ele: "Seguindo a Sagrada Escritura, que por
toda a parte apresenta como razão da Encarnação o pecado do primeiro homem, é
conveniente dizer-se que a obra da Encarnação está ordenada por Deus como
remédio contra o pecado. De tal modo que, se não existisse o pecado não teria
havido a Encarnação, embora a potência divina não esteja limitada pelo
pecado, podendo, pois, Deus encarnar-se, mesmo que não houvesse o
pecado” (Suma Teológica, 3, q. 1, a. 3.)
São Boaventura reconhece que a opinião tomista é
mais consoante com a Fé, enquanto a outra favorece mais a razão. (In III
Sent., Dist.I,a.2,q.2.) Embora ambas as opiniões sejam sustentáveis, o comum
dos Doutores acha que a hipótese tomista é mais provável, sendo predominante
entre os Santos Padres.
Santo Agostinho afirma: “Se o homem não tivesse
caído não se teria feito carne” (Serm. 174,2.)
Em favor dela fala igualmente o Símbolo dos
Apóstolos, isto é, o Credo, quando
proclama: “O Qual [o Verbo], por nós homens, e por nossa salvação, desceu dos
céus “. Também a liturgia pascal, que canta: “Ó culpa feliz, que nos mereceu
um tal Redentor!"
O Pe. Christiano Pesch S.J. diz que a posição
tomista de tal modo se tornou comum, que hoje há poucos defensores da
esposada por Suárez, quanto à Encarnação do Verbo. Daí decorreria que a
hipótese de Suárez com relação ao pecado dos anjos ficaria também
prejudicada. (C. PESCH 53, De Angelis, III, p. 71; cf. também Mons. P.
PARENTE. Incarnazioni, col 1.751; I. SOLANO, De Verbo incarnato, pp. 15-24).)
A obstinação
dos demônios
Nós homens temos certa dificuldade psicológica em
compreender que os demônios, por um só pecado, tenham sido condenados
eternamente, enquanto Adão e Eva puderam ser perdoados. Por isso, desde os
primeiros tempos do Cristianismo, não faltaram autores que sustentaram a
possibilidade de reconciliação dos anjos decaídos com Deus. Essa doutrina foi
condenada pela Igreja e São Tomás explica a razão pela qual isso não é
possível: em primeiro lugar porque a prova a que os anjos foram submetidos, a
fim de merecerem a bem-aventurança eterna, teve para eles o mesmo efeito que
tem para nós homens a morte; ou seja, encerra o período em que podemos
adquirir méritos, e nos introduz na vida eterna, imutável por natureza. Os
anjos bons, tendo sido fiéis, passaram a gozar da bem-aventurança eterna; os
anjos maus ou demônios foram precipitados no inferno por toda a eternidade.
Em segundo lugar, por causa da natureza angélica: os anjos, uma vez feita uma
escolha, não podem voltar atrás, seja para o bem, seja para o mal. Porque
eles não estão sujeitos à mobilidade das paixões humanas, sua inteligência é
perfeita, de modo que eles não podem fazer escolhas provisórias, como o
homem. Antes de fazer uma escolha, o anjo é perfeitamente livre; feita esta,
sua vontade adere a ela para sempre, pois todas as razões que o levaram a
fazer essa escolha já estavam perfeitamente claras para ele antes que a
fizesse.
O lugar de
condenação dos demônios
O Inferno
A tremenda realidade do inferno, como lugar
criado para os demônios e os malditos, é atestada pelo Divino Salvador ao
falar do Juízo Final: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que
foi preparado para o Demônio e para os seus anjos” (Mt 25,41). São Pedro
ensina que Deus não perdoou aos anjos que pecaram prepitou-os no tártaro,
para serem atormentados (2 Ped 2, 4).
E São Judas escreve que Deus “prendeu em cadeias
eternas, no seio das trevas “, os anjos prevaricadores (Jud v. 6). Assim como
o lugar para os anjos bons é o Céu, para os demônios é o inferno. Mas os
demônios têm dois lugares de tormento: um em razão de sua culpa, que é o
inferno; outro, em função das tentações a que submetem os homens: a atmosfera
tenebrosa, pelo menos até terminar o mundo.
Os demônios dos
ares
A doutrina de que os demônios vagueiam pelos ares
para tentar os homens é claramente afirmada por São Paulo na Epístola aos
Efésios: “O príncipe que exerce o poder sobre este ar... os dominadores deste mundo tenebroso, os
espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 2,2; 6, 12).
E é confirmada pela Igreja, por exemplo, na
oração a São Miguel Arcanjo, que o Papa Leão XIII compôs e mandou recitar ao
fim da Missa, na qual invoca o Príncipe da milícia celeste, para que — pelo
divino poder — precipite no inferno " a Satanás e aos outros espíritos
malignos que andam pelo mundo para perder as almas”.
A “hierarquia”
entre os demônios
Entre os demônios existe urna “hierarquia”, que
decorre do fato de, sendo anjos, uns terem a natureza mais perfeita do que
outros. Por isso se diz que Satanás é o príncipe, o chefe dos demônios.
Não que exista entre eles uma submissão por amor
ou respeito, como na verdadeira hierarquia; os demônios se odeiam mutuamente
e só se unem circunstancialmente para atormentar os homens. É o mesmo que —
explica São Tomás — se dá entre os homens maus: eles formam quadrilhas e se
submetem a um chefe, apenas como meio de melhor cometerem seus roubos ou
homicídios contra os homens honestos (Suma Teológica, 1,Q. 109, A.1-2.)
Os nomes dos
demônios
Os judeus não tinham uma palavra específica para
indicar os espíritos malignos; a designação geral de demônio para os anjos
decaídos vem da versão grega do Antigo Testamento. A palavra daimon, entre os
gregos, designava os seres com forças sobre-humanas, especialmente os
maléficos. A palavra hebráica sâtân significa adversário, acusador; Satanás,
o chefe dos demônios, é também conhecido nas Escrituras como Diabo (do grego diábolos, que quer dizer caluniador).
Nas Sagradas Escrituras aparecem os nomes de vários demônios: Azazel, demônio
que habita o deserto (Lev 16, 8-10, 26); Asmodeu, que matou os sete maridos
de Sara (Tob 3, 8); o nome Belzebu (ou Beelzebul, cuja significação parece
ser “deus do esterco”, nome com que os rabinos indicariam os sacrifícios
oferecidos aos ídolos ) é apresentado como sinônimo para Satanás ou príncipe
dos demônios (Mt 12, 14; Mc 3, 22-26); Lúcifer foi palavra escolhida na
Vulgata* para traduzir para o latim a expressão “astro brilhante"
ou “estrela brilhante”, da profecia de
Isaías (Is 14, 12), que costuma ser interpretada como uma referência à queda
do Demônio; em geral esse apelativo é utilizado igualmente como sinônimo de
Satanás.
Psicologia do demônio
"Ele foi
homicida desde o princípio e não permaneceu
na verdade é
mentiroso e pai da mentira".
(Jo 8,44)
Com base nas Sagradas Escrituras e em outras
fontes, poderíamos ressaltar alguns aspectos da psicologia de Satanás e seus
anjos malignos. Embora os demônios sejam diferentes entre si, assemelham-se
em seu desejo de fazer o mal e em sua natureza decaída; por isso o que é dito
a respeito de Satanás, seu chefe, pode-se dizer dos outros demônios.
Uma vontade
pervertida
Os demônios, puros espíritos, como anjos que são,
não têm as fraquezas e as debilidades dos homens; de onde, sua revolta contra
Deus ser permanente, imutável, eterna. Sua vontade, deixando de ter como
objeto o Sumo Bem, tornou-se uma vontade pervertida fixada no mal. Dessa
forma, os demônios não desejam senão o mal em todos os seus atos voluntários,
e mesmo quando fazem algum bem (como, por exemplo, restituir a saúde a
alguém, obter-lhe riquezas ou ensinar-lhe algo), fazem-no apenas para dai
tirar o mal, conduzir a pessoa à perdição eterna, que é a única coisa que
almejam para os homens. Tendo sido criados bons por Deus, sua natureza ainda
continua boa em si mesma; porém, eles se tornaram seres pervertidos em sua
vontade, buscando não mais seu fim último, que é o serviço e a glória de
Deus, mas justamente o contrário, isto é, tudo fazer para impedir que Deus
seja glorificado. Não podendo atingi-Lo diretamente, eles procuram agir sobre
as criaturas de Deus, na medida em
que Ele o permite.
Homicida e
mentiroso— Astuto, falso, enganador
O divino Redentor resumiu em poucas palavras essa
psicologia diabólica: “Ele foi homicida desde o princípio, e não permaneceu
na verdade; porque a verdade não está nele; quando ele diz a mentira,fala do
que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira" (Jo 8, 44). O
demônio é homicida e o pai da mentira, o mentiroso por excelência que odeia a
verdade, porque a verdade nos conduz a Deus: "Eu sou o caminho, a
verdade, a vida” (Jo 14, 5); ele odeia o Criador e, tendo-se separado de
Deus, separou-se para sempre da verdade e da vida. E através da mentira que
ele dá a morte, a morte espiritual. Santo Agostinho, a respeito da afirmação
de Jesus de que o demônio é homicida e mentiroso, comenta: “Perguntamos de
onde veio ao diabo o ser homicida desde o princípio, e respondemos que matou
o primeiro homem, não enterrando-lhe o punhal ou infligindo-lhe qualquer
outro dano no corpo, senão persuadindo-o a que pecasse precipitando-o da
felicidade do paraíso”. (Apud J. MALDONADO S.J., Comentarios a los Cuatro
Evangelios, p. 563)
Pe. João Maldonado, erudito exegeta jesuíta do
século XVI, observa sobre essa mesma frase -
“Porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44): “A maior parte dos
autores entendem isto daquelas palavras que o diabo disse a Eva: ‘Sereis como
deuses, conhecendo o bem e o mal.’ (Gen 3, 5); palavras em que evidentemente
mentiu; quer dizer, uniu a mentira com o homicídio (espiritual), perpetrando
os dois crimes ao mesmo tempo. ... Chama-se ao diabo pai da mentira porque é
ele o autor e inventor da mesma, de tal modo que pode dizer-se que deu à luz
a ela” (J. MALDONADO S.J., op. cit.,
pp. 564-566). Quando tenta o homem, procurando afastá-lo de Deus, ele mente
apresentando uma falsa imagem da realidade, escondendo seus verdadeiros fins
e enredando sua vítima no engano, no sofisma e na falsidade.
Ele é astuto,
falso, enganador
“Satanás se distingue por sua astúcia — escreve
Mons. Cristiani. O que quer dizer esta palavra? A astúcia é um artifício
enganador. O ser que age por astúcia tem más intenções. Se ele fala, não é
para dizer a verdade, mas para enganar, para conduzir ao erro, à inverdade.
Satanás é falso. Não se pode confiar nele. O que falta antes de tudo nele é a
eqüidade, a lealdade, a franqueza. Ele é equivoco, voluntariamente obscuro e
dissimulado” (Mgr L. CRISTIANI, Présence de satan dons le monde moderne, p.
306.)
Soberba
demencial, inveja mortal
Por detrás dessa dissimulação se esconde o seu
desejo oculto, assim expresso por Mons. Cristiani: “Ser como Deus! Este ato
de orgulho é o fundo mesmo da psicologia de Satanás! ... ‘Vós sereis como
deuses!’ Ele próprio, na sua queda, se considera como um deus. Seu orgulho
não está morto. O orgulho levado até à adoração de si mesmo é o que faz o
demônio voltar-se contra o Criador. É o orgulho que, tendo-o afastado de
Deus, fez dele o Adversário. No livro do Eclesiástico esta conseqüência do orgulho
é posta em evidência: ‘O princípio do orgulho é abandonar o Senhor e ter seu
coração afastado do Criador, porque o princípio do orgulho é o pecado, aquele
que se entrega a ele espalha a abominação.‘ (Ecli 10, 12-13). ...
Compreendemos, então, porque Jesus Cristo, que é a Via, a Verdade, a Vida,
tenha definido Satanás como o Pai da mentira,
o homicida desde o começo. E, para nós, este termo de homicida longe
de ser excessivo, não diz senão um aspecto da verdade total: Satanás é, com
efeito, acima de tudo, o DEICIDA!” (Mgr L. CRISTIANI, op. cit., p. 308.)
O orgulho de Satanás e seus anjos malignos não
conhece limites: "Que orgulho demencial — comenta ainda Mons. Cristiani
— nessa palavra de Satanás a Cristo, mostrando-lhe em espírito todos os
reinos da terra: ‘Tudo isto eu te darei se prostrado por terra me adorares!´O
fundo último da ambição satânica é este: Tirar de Deus seus adoradores, fazer
convergir as adorações dos homens para ele próprio!
"Resumamo-nos: o orgulho, a vontade de se
fazer deus, a astúcia, a inveja e o ódio do homem, tudo isto desembocando na
mentira, no homicídio, no deicídio: eis Satanás!”. (Mgr L.CRISTIANI, op.
cit., p. 308.)
Não lhe importam as derrotas que sofre
continuamente, nem mesmo a final e definitiva a que está condenado; sua
soberba se satisfaz com os pequenos triunfos que obtém, no esforço de levar
as almas à eterna perdição.
Comenta o Cardeal Lepicier: “Escudado na
satisfação de certas vitórias parciais e na esperança de grandes triunfos e,
ao mesmo tempo, não se preocupando com as vergonhosas derrotas sofridas,
Satanás prossegue loucamente na sua faina de tentar arrastar as almas para a
eterna perdição. O seu pendão está sempre erguido e o seu grito insensato de
desafio e revolta ouve-se por toda parte: ‘Eu não quero servir! ‘ (Jer 2,
20)”. (Card. A.LEPICIER. O Mundo invisível p. 240.)
O pai da
vulgaridade
Outro aspecto da psicologia maldita do demônio é
a vulgaridade. Odiando a Deus, ele odeia tudo aquilo que é verdadeiro, belo,
bom. Ele odeia a compostura, a dignidade, a seriedade, a serenidade.
O abade João Cassiano já observava no século V:
“É fora de dúvida que existe entre os espíritos impuros o que o vulgo chama
espíritos vagabundos, que são antes de tudo sedutores e bufões. Eles se
postam constantemente em certos lugares e se divertem em enganar, muito mais
do que em atormentar, aqueles que eles encontram. Eles se contentam em fatigá-los por seus
escárnios e suas ilusões..." (Apud Mgr L. CRISTIANI, op. cit., p. 311.). São os famosos demônios bufões, que fazem
talhar a manteiga, secam o leite das vacas, desencadeiam enxames de vespas ou
de abelhas, etc., tudo para fazre os homens perderem a paciência,
praguejarem, blasfemarem. Mons. F. M. Catherinet, demonólogo francês,
analisando a ação dos demônios segundo as narrações evangélicas, traça deles
o seguinte perfil: "Medrosos,
obsequiosos, poderosos, malfazejos, versáteis e mesmo grotescos...
(Mgr F. M. CATHERINET,
Les Démoniaques dans l´Évangile, P.319. )
Em carta a Mons. Cristiani, o Pe. Berger-Bergès,
famoso exorcista, escreve: "Vós
me perguntais ... qual é a psicologia de Satanás, quando ele está submetido à
ação dos exorcismos... É preciso definir e resumir a psicologia de Satanás
por estas palavras: ORGULHO, DESPREZO
DE SUA VÍTIMA, TENACIDADE!" | (Mgr L. CRISTIANI, op. cit., p. 312.)
"O
próprio Satanás se disfarça
em anjo de luz”.
(2 Cor 11, 14)
TUDO QUANTO DISSEMOS a respeito do poder e do
modo de agir dos anjos sobre a matéria aplica-se igualmente aos demônios, que
são anjos decaídos, mas que conservaram a natureza angélica e os poderes a
ela inerentes.
Poder dos demônios sobre a matéria
Já vimos anteriormente como a presença dos anjos
em um lugar não se dá fisicamente (contato físico), pois são seres
incorpóreos, e sim por meio de sua atuação (contato operativo): os anjos
estão onde atuam. Em virtude de sua natureza espiritual, eles podem exercer
sua atividade e tanto de fora dos corpos, como no interior deles, conforme
observa São Boaventura: “Os demônios, em razão de sua sutileza e
espiritualidade, podem penetrar em qualquer corpo e aí permanecer sem o menor
obstáculo e impedimento”. (In II Sent., Dist. 8, p.
2, a.
um., q. 1, apud Mons.
C. BALDUCCI, Gli Indemoniati, p.12.)
De um modo direto e imediato os demônios podem
produzir na matéria apenas movimentos locais, ou extrínsecos, transferindo
uma coisa de um lugar para outro, sem entretanto alterar a natureza ou
substância dessa coisa; de modo indireto, através desses movimentos locais,
eles podem agir sobre a própria substância da matéria, ao modificar a posição
ou a quantidade dos elementos constitutivos da mesma.
Caso Deus o permitisse, os demônios, por sua
natureza angélica, poderiam causar toda espécie de transtornos físicos. O
Cardeal Lepicier afirma que se pode dizer que praticamente não há fenômeno no
mundo que não possa ser realizado, de um modo ou outro, pelos anjos; logo,
também pelos demônios. (Cardeal A. LEPICIER, O Mundo invisível, pp. 74.75.) E
não raro o fazem, provocando tempestades, cataclismos, incêndios e outros
desastres como também aparições fantasmagóricas, ruídos infernais e
perturbações de toda ordem.
Poder dos demônios sobre o homem
Em relação ao homem, os demônios só podem operar
de modo direto e imediato sobre aquilo que nele é matéria, ou está e
necessária dependência dela; podem agir nas funções da vida vegetativa,
enquanto ligadas à matéria, e sobre a vida sensitiva, porque esta depende de
órgãos corporais. No que se refere às funções próprias da vida intelectiva,
os demônios só podem chegar a elas indireta e mediatamente, quer dizer,
atuando sobre a parte corpórea e sobre a vida sensitiva, das quais a alma
deve servir-se para desenvolver suas atividades espirituais. Em outros
termos, os demônios podem agir diretamente sobre a parte corpórea do homem,
mas apenas indiretamente sobre sua inteligência e sua vontade. Conforme
ensina São Tomás,(Suma Teológico. 1-2, q. 80, a. 1-3.) o
entendimento, por inclinação própria só se move quando algo o ilumina em
ordem ao conhecimento da verdade. Ora, os demônios não querem conduzir o
entendimento à verdade, mas, pelo contrário, entenebrecê-lo como meio de
levar o homem ao pecado. Por isso, eles não conseguem mover diretamente a
inteligência do homem, e procuram então influir sobre ela indiretamente,
através de sua ação sobre a imaginação e a sensibilidade. Os demônios não
podem tampouco mover diretamente a vontade humana, pois isto só o próprio
homem ou Deus podem fazer; mesmo que o
Maligno, por permissão divina, se assenhoreie do corpo do homem e
entenebreça sua mente — como se dá na possessão — , ele não pode obrigá-lo a
pecar, pois a vontade não participaria dos atos maus assim realizados, os
quais seriam em conseqüência pecados apenas materiais. Para mover a vontade
do homem, os demônios precisam, de algum modo, convencê-lo, persuadi-lo a
praticar uma ação má, ainda que sob a aparência de um bem.
A ação persuasiva do demônio
"O
demônio não força; ele propõe, sugere, persuade, alicia”
O demônio não tem o poder de obrigar os homens a
fazer ou deixarem de fazer algo; por isso procura persuadi-los para que se
deixem conduzir pelo seu mal. "Ele não os força: ele propõe, sugere,
persuade, alicia” escreve o Pe. J. de Tonquédec S.J., exorcista e demonólogo
francês. E acrescenta: “No Éden, ele deu a Eva razões para ela transgredir a
ordem divina (Gen 3, 4-5, 13); no deserto, solicitou Nosso Senhor pela
atração de uma dominação universal (Mt 4, 26-27)”. (J. de TONQUÉDEC S.J.,
Quelques aspects de l´ation de Satan en ce monde, p. 495.)
São Tomás também se refere a essa obra de
persuasão do demônio, explicando que a vontade humana só se move internamente
por ação do próprio homem ou de Deus; externamente ela pode ser solicitada
pelo objeto que, entretanto, não força o homem a escolher o que não quer.
(Suma Teológico, 1-2, q. 80,
a. 1.)
O Pe. Cândido Lumbreras O.P., assim comenta essa
passagem do Doutor Angélico: “Que influência pode exercer o demônio nos
pecados dos homens? ... O demônio pode oferecer aos sentidos seu objeto,
falar à razão, seja interiormente, seja exteriormente; alterar os humores e
produzir imagens perigosas, excitar enfim as paixões que podem mover a vontade
e assenhorear-se do entendimento.” (C. LUMBRERAS O.P., Tratado de los vicios
y los pecados — Introducción. p. 766.)
Em
comentário a outra passagem de São Tomás, explica Pe. Jesus Valbuena O.P.:
“Que os anjos possam iluminar e de fato iluminem
o entendimento humano, é uma verdade que se atesta por uma multidão lugares
nas Sagradas Escrituras ... Também os anjos maus são capazes de produzir, com
sua virtude natural, falsas iluminações no entendimento dos homens, conforme
nos admoesta São Paulo para que estejamos alerta ´pois o próprio Satanás se
disfarça em luz’ (2 Cor 11, 14).
“Afirma São Tomás que nos sentidos do homem,
sejam internos, sejam externos, os anjos podem influir e agir a partir de
fora e a partir de dentro dos mesmos, quer dizer, extrínseca e
intrisecamente; mas, em relação ao entendimento e à vontade humanas, só os
podem mover e influir indireta e exteriormente, quer dizer propondo a estas
potências espirituais de uma maneira acomodada a elas seus objetos, que são a
verdade e o bem e influindo nelas indiretamente mediante os sentidos, as
paixões, as alterações corporais sensíveis, etc., embora não possam nunca
chegar a dobrar ou completamente a vontade do homem, se este se acha em
estado normal” (J. VALBUENA O.P., Tratado del Gobierno del Mundo—
Introduccion, p. 898.)
Nos casos de Eva e de Nosso Senhor, o demônio
“apresentou suas razões” tomando uma forma corpórea, produzindo sons e
articulando as palavras oralmente; no geral dos casos, entretanto, o demônio,
para persuadir o homem a pecar, conjuga sua ação sensibilidade, a memória e a
imaginação.
As doutrinas
perversas do demônio
O demônio tem
uma doutrina mentirosa, que opõe à doutrina de Cristo.
Em sua introdução ao Tratado sobre os anjos, de
São de Aquino, comenta o Pe. Aureliano Martínez O.P.: “O demônio tem suas
doutrinas perversas, às quais o Apóstolo chama espírito do erro e
ensinamentos do demônio (1 Tim 4, 1), com as quais como deus deste mundo,
cega a inteligência dos homens para que não brilhe nelas a luz do Evangelho
(2 Cor 4, 4); doutrinas que propala mediante falsos apóstolos e operários
enganadores que se disfarçam em apóstolos de Cristo; e não é de espantar,
pois o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz (2 Cor 11, 13-14), tentando
os fiéis de incontinência (1 Cor 7, 5) e de ira (Ef 4, 27)”. (A MARTÍNEZ
O.P., Tratado de Los Angeles — Introducción, p. 511.)
Foi por essa razão que o Divino Salvador definiu
o demônio como aquele "que não permaneceu na verdade; porque a verdade
não está nele; quando ele diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é
mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44).
Por meio dessa ação de persuasão o demônio procura na tentação, não
apenas induzir-nos a cometer este ou aquele pecado, mas afastar-nos completamente
de Deus.
Limites à ação
do demônio
Por mais poderoso que seja, com uma capacidade de
ação superior à de qualquer outro ser criado, o demônio, entretanto, não é
onipotente. Sendo mera criatura, ele tem suas limitações, decorrentes de três
fatores: sua própria natureza, a condição particular de cada demônio e a
vontade permissiva de Deus.
Limites
impostos por sua própria natureza
Com toda criatura, o demônio está limitado em sua
atuação pela sua própria natureza: por mais elevado que seja seu poder, este
não pode ultrapassar os limites de sua natureza criada. Ele é um ser finito,
contingente. Não se deve pois de forma alguma julgar que ele é capaz de saber
tudo (onisciência), de poder tudo (onipotência) e estar em todo lugar
(onipresença): esses atributos são exclusivos de Deus. Sua inteligência,
embora se tenha mantido intacta, está privada de todo auxílio sobrenatural.
Os demônios perderam, com o pecado, toda forma de conhecimento sobrenatural;
enquanto os anjos bons vêem em Deus o estado de uma alma (se ela está na
graça divina ou em pecado), os demônios só podem fazer conjetura a respeito,
O mesmo se deve dizer quanto a certos acontecimentos futuros que Deus revela
aos anjos.
Por sua natureza, nem os anjos bons nem os
demônios podem conhecer o futuro livre ou futuro contingente isto é, aquele
que depende da vontade divina e do livre arbítrio humano mas apenas Deus, que
o pode revelar aos seus anjos. Outro limite natural à ação do demônio é, como
vimos, sua impossibilidade de agir diretamente sobre a inteligência e a
vontade humanas; ele tem de usar meios indiretos: a sensibilidade, a
imaginação, as paixões, e sobretudo a persuasão.
Limites devidos
à condição particular de cada demônio
Outro limite à atuação demoníaca vem da diversa
condição de cada demônio. Assim como existem desigualdades entre o homens,
também entre os anjos e os demônios não há dois iguais. Por isso, nem todos os demônios têm o mesmo
poder.
Outro fator de limitação é a posição relativa de
cada demônio na escala dos anjos decaídos, e as eventuais ordens e proibições
que existam entre eles.
Limites
impostos por Deus
O demônio só pode agir em detrimento do homem com
a permissão de Deus.
Ensina o Cardeal Lepicier: “É preciso que nos
lembremos sempre de que, por muito grande que seja o poder do demônio, tem
limites que lhe foram sabiamente determinados pelo Todo-Poderoso. Ele pode,
sem dúvida, fazer-nos mal, mas não além daquilo que lhe é permitido, e bem
conhece que o seu poder não pode durar muito. Pode ser que o conhecimento da
curta duração do seu reino contribua para que redobre a sua atividade nos
tempos que vão correndo; mas todos os seus esforços obedecem aos
impenetráveis desígnios da Providência que só permite que a sua influência
seja exercida até certo grau, de forma que nos possamos colocar debaixo da
proteção de Deus e ganhar, pelos nossos méritos, a vitória final e a coroa da
imortal glória que nos espera no Céu"
(Cardeal A. LÉPICIER, O.S.M., O Mundo invisível,
p.242.)
No livro de Jó, no qual é nomeado pela primeira
vez nas Escrituras, Satanás aparece como agente do mal, porém absolutamente
subordinado a Deus. Embora tenha inveja do justo Jó e queira pôr sua virtude
à prova, por meio da infelicidade, Satanás não pode agir senão com a
autorização divina. Ele tem
necessidade de uma permissão, ou até mesmo de uma delegação do Senhor. Sua
ação é estritamente limitada à vontade de Deus, que permite, primeiro atacar
seu servidor exclusivamente em seus bens e não em sua pessoa; depois em sua
pessoa, mantendo entretanto sua vida (Jó 1, 6-12; 2, 1-7). São Paulo nos
tranqüiliza: "Deus é fiel, o qual
não permitirá que sejais tentados além do que podem as vossas forças; antes,
com a tentação, vos dará as forças necessárias para sair dela e para
suportá-la" (1 Cor 10,13). Por que Deus permite que o demônio tente o
homem, como também o prejudique, muitas vezes, de tantos modos? Como fica
patente em tantas passagens da Escritura e ensinamentos do Magistério
eclesiástico, essa permissão divina tem como escopo santificar o homem por
meio de provações, puni-lo por alguma falta grave, servir de ocasião para que
se manifeste o poder divino de um modo visível, como no caso dos exorcismos
de possessos.
Poder dos anjos
bons sobre os demônios
Ensina São Tomás que os anjos bons, mesmo que por
natureza pertençam a uma hierarquia inferior à de algum demônio ( por exemplo
em ralação a Satanás), sempre têm um domínio sobre os anjos decaídos. Pois os anjos gozam de perfeição da amizade
de Deus, da qual estão privados os demônio; e esta perfeição é superior à
mera excelência natural, a única que permanecesse nos demônios (Suma
Teológica, 1,q. 109,a.4. )
Por isso
observa o Cardeal Lepicier: " A sabedoria de Deus torna-se ainda mais
manifesta , quando consideramos que ele colocou os espíritos malignos debaixo
do domínio dos anjos bons e deu a cada homem, neste mundo, um anjo bom que o
ilumina, guia os seus passos e o defende contra os seus inimigos. Por isso, os assaltos do inimigo das almas
são aniquilados pela intervenção daqueles espíritos que se conservam fiéis a
Deus, e o demônio acaba por contribuir para a maior glória do Criador".
(Cardeal A. LÉPICIER, op. cit., p. 241.)
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