domingo, 3 de janeiro de 2016

O Ritual Proibido

Yuki olhou através da pequena janela do quarto ao perceber que a lua voltara a aparecer. Não conseguia lembrar quando foi a última vez que vira uma lua cheia tão grande como aquela. A forte luz que brilhava nas águas escuras só deixava a vista dali mais incrível. Se realmente tinha que ficar isolada para a purificação aquele definitivamente era o melhor lugar. Tudo que se ouvia naquela região era o som das ondas do mar batendo nas rochas. Yuki gostava, mas não escutava mais nada há dias e já estava começando a se irritar.
Um dos sacerdotes acabara de deixar sua refeição, mas ela nem conseguiu tocar na comida. Não conseguia parar de pensar na sua irmã, que não via há dias. Se Miya estivesse ali provavelmente iria obriga-la a comer, mas não tirava da cabeça as palavras de seu pai. “O futuro da nossa comunidade agora depende inteiramente de vocês, esse será o destino das duas.” Seu pai era o Sacerdote Chefe da vila, e ele próprio um Remanescente. Ele havia realizado o Ritual do Sacrifício com seu irmão gêmeo há quase 25 anos e ele mesmo tivera a ideia de oferecer as filhas para o próximo, após o ritual dos irmãos Miura ter fracassado. Para ele e para quase todos da vila era uma honra. Uma glória eterna para a família. Mas Yuki e Miya Kimura pensavam diferente. Yuki achava extremamente cruel e desnecessário e nunca iria conseguir estrangular a própria irmã.
O novo ritual era dentro de apenas alguns minutos, mas Yuki e Miya tinham armado um plano com o irmão Miura Remanescente. Akira Miura havia orientado as irmãs que quando fossem ser levadas para o ritual elas deveriam correr o mais rápido que puder até o Grande Carvalho, que ficava ao sul da vila. Lá ele iria deixar as irmãs aos cuidados do seu amigo folclorista da cidade, que concordou em ajudar. Akira foi tomado por uma profunda angústia após ter estrangulado seu irmão gêmeo no Ritual do Sacrifício anterior e não queria aquele mesmo destino para suas amigas Yuki e Miya. Yuki sabia que aquele era o único jeito. Não queria mais fazer parte daquele lugar. Teria que se despedir de todos para sempre e iniciar uma nova vida com sua irmã.
Yuki vestiu o quimono branco que havia sido deixado para ela pela manhã e esperou. O Senhor Kimura, pai de Yuki, destrancou a porta minutos depois e entrou no quarto. Yuki pôde ver os Sacerdotes Velados do lado de fora, alguns seguravam tochas e outros carregavam varais budistas de metal.
-Está pronta, minha criança? – disse o pai de Yuki, quebrando o silêncio.
Ela apenas o encarou com seus olhos negros, deixando seu medo transparente. Seu pai forçou um sorriso cínico e estendeu a mão para ela. Como ele podia deixar a filha nessa situação? Como ele podia obrigar que sua própria filha estrangulasse a irmã em um ritual sem sentido? Yuki naquele momento desejou que seu pai estivesse morto.
- As Trevas não irão tolerar outro ritual fracassado. Nós precisamos de vocês – disse com calma.
Yuki nunca entendeu o que seu pai queria dizer com essas tais “Trevas”. Ele também costumava dizer às filhas que gêmeos tinham um poder espiritual muito grande e que elas um dia, assim como ele, iriam participar de uma cerimônia importante.
Yuki andou em direção aos sacerdotes, deixando seu pai com a mão estendida. Os sacerdotes usavam um manto todo preto com apenas um cinto de corda vermelho, o que era incomum para sacerdotes tradicionais. Porém o que era mais incomum era o véu que encobria seus rostos completamente. Yuki não entendia para o que servia aquilo e esperou o sinal de Akira, enquanto seu pai andava em sua direção.
De repente um forte estrondo rugiu. Os sacerdotes olharam surpresos para o clarão. Yuki soube imediatamente que Akira havia conseguido explodir alguma coisa e sabia que aquela era sua única chance. Então, ela começou a correr rapidamente para o sul da vila com seu coração quase escapando pela boca. Ela olhou para trás e viu seu pai gritar alguma coisa, enquanto apontava furioso para ela. Imediatamente vários sacerdotes arrancaram o véu do rosto e correram atrás dela. O local todo estava muito escuro e talvez fosse fácil despista-los. Yuki iria encontrar com Miya no Grande Carvalho se tudo tivesse dado certo pra ela.
Yuki começou a atravessar a ponte de madeira que separava os participantes do ritual do resto da vila. Ela rapidamente pulou o guarda-corpo e se pendurou para fora segurando nas tábuas de madeira. Os sacerdotes cruzaram a ponte sem perceber Yuki e entraram na vila. Ela fez força nas mãos, subiu de volta e foi na outra direção.
Yuki viu Miya de costas para ela aos pés do Grande Carvalho e a chamou. Miya virou-se e pareceu que Yuki estava diante de um grande espelho. Além de gêmeas, Miya parecia ter a mesma expressão doce e suave no rosto. Apesar de ser mais nova Miya sempre cuidou de sua irmã, as vezes quase sendo uma segunda mãe. As duas irmãs se abraçaram forte.
-Você está bem, irmã? – disse Yuki enquanto uma lágrima escorria do seu rosto até cair no ombro de Miya.
-Estou... – Miya olhou para a irmã e continuou – Akira foi capturado, eles o descobriram. Ele disse que o amigo folclorista da cidade estará a nossa espera à beira do lago. Temos que ir pra lá rápido!
-Vocês estão cientes do erro que estão cometendo?
Yuki e Miya gelaram ao verem o Senhor Kimura diante delas e vários sacerdotes atrás dele carregando tochas. As duas começaram a correr rapidamente, adentrando a floresta.
-Peguem-nas! – gritou o Senhor Kimura para os sacerdotes. Eles prontamente obedeceram as ordens e começaram a perseguir as garotas.
Miya era mais ágil e estava deixando Yuki para trás. A floresta era muito densa e nenhuma das duas conseguia enxergar mais que um palmo à frente. Yuki virou-se e viu a luz das chamas das tochas dos sacerdotes se aproximar.
-Miya! Espera! Não me deixa para trás!
-Vem rápido! – virou-se para Yuki enquanto corria.
Miya mesmo assim apressou o passo enquanto tentava lembrar qual era o caminho do lago, mas estava muito escuro... E silencioso de repente. Não conseguia mais ouvir Yuki ofegante. Miya parou e virou-se. Sua irmã não estava mais lá, não tinha mais ninguém.
-Yuki?! Yuki!
Miya começou a tremer, voltou um pouco pelo lado que veio, mas não havia sinal algum de Yuki.
Yuki estava a poucos metros dali e pôde ouvir sua irmã. Ela tentou gritar de volta, mas sua voz não saiu ao virar-se e dar de cara com os sacerdotes. Ela tentou recuar, mas os sacerdotes a agarraram. Ela se debateu com fúria e tentou chuta-los, mas eles começaram a leva-la de volta a vila. Yuki viu alguns sacerdotes irem atrás de Miya.
Yuki foi levada até a casa de um dos moradores. Ela sentou no chão quase soluçando enquanto ouvia os sacerdotes e residentes da vila ao seu redor tentando decidir como eles realizariam o ritual agora. Seu pai estava entre eles.
-Não temos mais tempo, Miya não voltará! O ritual deve ser realizado hoje ou as Trevas reinarão sob nossa comunidade! – disse o Sacerdote Chefe, o Senhor Kimura.
-Pai, por favor... Não faz isso! – Yuki soluçou.
O Senhor Kimura curvou-se para Yuki e limpou suas lágrimas do rosto.
-Não chore, minha criança. Há sacrifícios que devem ser feitos para um bem maior.
Yuki não percebeu nenhuma emoção na frase dele. Ela e sua irmã haviam sido criadas por seu pai com mãos de ferro. Ele sempre fora severo e duro, mas ela não imaginaria que um dia iria implorar por sua vida a ele. O Senhor Kimura ordenou que levassem Yuki até o Abismo Oco.
Yuki andou no meio dos Sacerdotes Velados até uma parte da vila onde nunca tinha ido antes. Ela viu uma corda improvisada amarrada em uma parte de madeira do telhado de uma casa próxima. A ponta da corda estava atada de modo a formar um
círculo, onde sua cabeça podia entrar facilmente. Yuki sentiu um frio maior percorrer sua espinha ao ver o Abismo Oco. Era um enorme buraco que estranhamente formava um quadrado perfeito de mais ou menos 8 metros em cada lado e com a lua cheia posicionada exatamente em cima. Yuki foi guiada até a corda, enquanto os sacerdotes começaram a rodear o abismo. Ela, a essa altura, já não acreditava mais que sua irmã voltaria para salva-la.
Miya finalmente havia achado o caminho de volta à vila. Tinha que salvar sua irmã. As duas eram unha e carne. Miya nos últimos dias tinha pensado como seria viver sem sua irmã e não conseguia suportar a ideia. A amava tanto que podia facilmente abandonar seu povo e não voltar nunca mais. Aquele ritual era sádico. Cruel. Desumano. Akira havia dito que para apaziguar as Trevas era preciso de jovens gêmeos idênticos. Ele mencionara que a energia liberada quando o irmão mais velho estrangulava o mais novo era tão forte que o povo da vila acreditava que era suficiente para acalmar as Trevas que viviam no Abismo Oco. Miya tentou afastar os pensamentos ruins e continuou correndo na esperança de encontrar o local do sacrifício.
O Senhor Kimura passou a corda sobre a cabeça de Yuki e em seguida apertou o nó no pescoço. Ela se equilibrava em pé em cima do corrimão da varanda no segundo andar da casa com as mãos atadas.
-Chegou a hora, filha – disse o Senhor Kimura antes de dar um beijo no rosto dela.
O Senhor Kimura a empurrou forte. Yuki gritou ao cair da varanda, seu corpo ficou suspenso pela corda em volta de seu pescoço. Ela começou a agitar as pernas histericamente e tentou soltar as mãos, mas nem sequer conseguia chorar mais. A corda balançava o tempo todo e seu corpo girava enquanto ela tentava desesperadamente respirar. Então Yuki começou a sentir sua visão escurecer, suas pernas vagarosamente acalmaram e a última coisa que pensou foi por que Miya não havia voltado por ela.
Após cortarem a corda, o corpo de Yuki foi levado pelos sacerdotes até a beira do abismo. O Senhor Kimura conduziu o processo de perto, enquanto alguns moradores murmuravam preces. Dois sacerdotes levantaram o corpo de Yuki e o mergulharam na escuridão infinita que habitava aquele lugar.
Miya atravessou a ponte de madeira em busca de Yuki quando de repente ouviu um estrondo enorme. Ela sentiu o chão tremer e ouviu um forte zumbido no ouvido. Miya seguiu o barulho até um grande portão no lado norte da vila. Ela viu alguns moradores e sacerdotes correrem desesperados para fora, gritando de pavor. Eles nem pareceram nota-la, só estavam preocupados em fugir dali.
Miya adentrou o local confusa e viu o Abismo Oco. O zumbido parara e o lugar parecia estar vazio. A lua encoberta pelas nuvens deixava tudo mais escuro. Miya andou em direção ao buraco quando de repente um relâmpago iluminou tudo. Vários corpos mutilados estavam espalhados em volta da área toda. Sacerdotes e moradores jaziam banhados em sangue. Miya gritou, recuando para trás e tropeçou. Ela virou e viu seu pai engasgando sangue na sua frente. Ele tentou dizer algo para ela, mas foi interrompido quando seu pescoço girou sozinho para o lado rapidamente. Miya gelou ao ouvir o estalo dos ossos. Ela rapidamente se levantou e ouviu uma risadinha.
Miya virou-se e deu de cara com Yuki de cabeça abaixada, em pé, à beira do abismo. Seu quimono branco estava encharcado de sangue. Yuki levantou seus longos cabelos negros expondo uma terrível marca vermelha em volta do pescoço e começou a gargalhar. Os risos agudos eram assustadores, não pareciam ser humanos. Miya percebeu que aquela não era mais sua irmã e sentiu uma forte onda de medo percorrer seu corpo. Ela virou-se rapidamente preparada para sair, mas de repente os risos cessaram. Então, Yuki apareceu de frente para Miya de repente. Ela caiu para trás e se pôs a recuar.
-Você vai me deixar de novo? – Yuki sussurrou numa voz medonha enquanto se aproximava rápido de Miya – Você vai me deixar pra trás de novo, irmã? Você deveria ter cuidado de mim – Yuki riu.

Miya gaguejou, mas não conseguiu dizer uma palavra. Ela virou-se para o abismo e viu uma onda negra de escuridão engolir toda a vila. Virou de volta para o que um dia foi sua irmã e, a última coisa que viu foram seus enormes olhos negros tomados pelas Trevas.

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