A religião diz: Acreditai e compreendereis. A ciência vem vos
dizer: Compreendei e acreditareis. "Então, toda a ciência mudará de fisionomia;
o espírito, por muito tempo destronado e esquecido, retomará seu lugar; será
demonstrado que as tradições antigas são inteiramente verdadeiras; que o
paganismo não passa de um sistema de verdades corrompidas e deslocadas; que
basta limpá-las, por assim dizer, e recolocá-las em seu lugar, para vê-las
brilhar com todo o esplendor. Em uma palavra, todas as idéias mudarão; e, uma
vez que, de todos os lados, uma multidão de eleitos clama em concerto: "Vinde,
Senhor, vinde!", por que reprovaríeis os homens que se lançam nesse futuro
majestoso e se glorificam de adivinhá-lo?"
Os espíritos humanos têm a vertigem do mistério. O mistério é o
abismo que atrai, sem cessar, nossa curiosidade inquieta por suas formidáveis
profundezas.
O maior mistério do infinito é a existência de Aquele para quem
e somente para Ele - tudo é sem mistério.
Compreendendo o infinito, que é essencialmente incompreensível,
ele próprio é o mistério infinito e externamente insondável, ou seja, ele é, ao
que tudo indica, esse absurdo por excelência, em que acreditava Tertuliano.
Necessariamente absurdo, uma vez que a razão deve renunciar
para sempre a atingi-lo; necessariamente crível, uma vez que a ciência e a
razão, longe de demonstrar que ele não é, são fatalmente levadas a deixar
acreditar que ele é, e elas próprias a adorá-lo de olhos fechados.
É que esse absurdo é a fonte infinita da razão, a luz brota
eternamente das trevas eternas, a ciência, essa Babel do espírito, pode torcer e
sobrepor suas espirais subindo sempre; ela poderá fazer oscilar a Terra, nunca
tocará o céu.
Deus é o que aprenderemos eternamente a conhecer. É, por
conseguinte, o que nunca saberemos.
O domínio do mistério é um campo aberto às conquistas da
inteligência. Pode-se andar nele com audácia, nunca se reduzirá sua extensão,
mudar-se-á somente de horizontes. Todo saber é o sonho do impossível, mas ai de
quem não ousa aprender tudo e não sabe que, para saber alguma coisa, é preciso
resignar-se-a estudar sempre!
Dizem que para bem aprender é preciso esquecer várias vezes. O
mundo seguiu esse método. Tudo o que se questiona em nossos dias havia sido
resolvido pelos antigos; anteriores a nossos anais, suas soluções escritas em
hieróglifos não tinham mais sentido para nós; um homem reencontrou sua chave,
abriu as necrópoles da ciência antiga e deu a seu século todo um mundo de
teoremas esquecidos, de sínteses simples e sublimes como a natureza, irradiando
sempre unidade e multiplicando-se como números, com proporções tão exatas quanto
o conhecimento demonstra e revela o desconhecido. Compreender essa ciência é ver
Deus. O autor deste livro, ao terminar sua obra, acreditará tê-lo
demonstrado.
Depois, quando tiverdes visto Deus, o hierofante vos dirá:
Virai-vos e, na sombra que projetais na presença desse sol das inteligências,
ele fará aparecer o Diabo, o fantasma negro que vedes quando não olhais para
Deus e quando acreditais ter preenchido o céu com vossa sombra, porque os
vapores da terra parecem tê-la feito crescer ao subir.
Pôr de acordo, na ordem religiosa, a ciência com a revelação e
a razão com a fé, demonstrar em filosofia os princípios absolutos que conciliam
todas as antinomias, revelar enfim o equilíbrio universal das forças naturais,
tal é a tripla finalidade desta obra, que será, por conseguinte, dividida em
três partes.
Mostraremos a verdadeira religião com caracteres tais que
ninguém, crente ou não, poderá desconhecê-la, será o absoluto em matéria de
religião. Estabeleceremos, em filosofia, os caracteres imutáveis dessa
verdade, que é, em ciência, realidade, em julgamento,
razão e, em moral, justiça. Enfim, faremos conhecer estas leis da
natureza cujo equilíbrio é o sustento e mostraremos o quanto são vãs as
fantasias de nossa imaginação diante das realidades fecundas do movimento e da
vida. Convidaremos também os grandes poetas do futuro para refazerem a divina
comédia, não mais de acordo com os sonhos do homem, mas segundo as matemáticas
de Deus.
Mistério dos outros mundos, forças ocultas, revelações
estranhas, doenças misteriosas, faculdades excepcionais, espíritos, aparições,
paradoxos mágicos, arcanos herméticos, diremos tudo e explicaremos tudo. Quem
pois nos deu esse poder? Não tememos revelá-lo a nossos leitores.
Existe um alfabeto oculto e sagrado que os hebreus atribuem a
Henoch, os egípcios a Tot ou a Mercúrio Trismegisto, os gregos a Cadmo e a
Palamédio. Esse alfabeto, conhecido pelos pitagóricos, compõe-se de idéias
absolutas ligadas a signos e a números e realiza, por suas combinações, as
matemáticas do pensamento. Salomão havia representado esse alfabeto por setenta
e dois nomes escritos em trinta e seis talismãs e é o que os iniciados do
Oriente denominam ainda de as pequenas chaves ou clavículas de Salomão. Essas
chaves são descritas e seu uso é explicado num livro cujo dogma tradicional
remonta ao patriarca Abraão, é o Sepher Yétsirah, e, com a inteligência
do Sepher Yétsirah, penetra-se o sentido oculto do Zohar, o grande
livro dogmático da Cabala dos hebreus. As clavículas de Salomão, esquecidas com
o tempo e que se dizia estarem perdidas, nós as encontramos, e abrimos sem
dificuldade todas as portas dos antigos santuários, onde a verdade absoluta
parecia dormir, sempre jovem e sempre bela, como aquela princesa de um conto
infantil que espera durante um século de sono o esposo que deve despertá-la.
Depois de nosso livro, ainda haverá mistérios, mas mais alto e
mais longe nas profundezas infinitas. Esta publicação é uma luz ou uma loucura,
uma mistificação ou um monumento. Lede, refleti e julgai.
I. Demonstrar de uma maneira certa e absoluta a existência de
um Deus e dela dar uma idéia satisfatória para todos os espíritos.
II. Estabelecer a existência de uma verdadeira religião de
maneira a torná-la incontestável.
III. Indicar o alcance e a razão de ser de todos os mistérios
da religião única, verdadeira e universal.
IV. Transformar as objeções da filosofia em argumentos
favoráveis à verdadeira religião.
V. Traçar o limite entre a religião e a superstição e dar a
razão dos milagres e dos prodígios.
Quando o conde Joseph de Maistre, este grande lógico
apaixonado, disse com desespero: O mundo está sem religião, assemelhou-se
àqueles que dizem temerariamente: Deus não existe.
O mundo, com efeito, está sem a religião do conde Joseph de
Maistre, assim como é provável que Deus, tal qual o concebe a maioria dos ateus,
não exista.
A religião é uma idéia apoiada num fato constante e universal;
a humanidade é religiosa: a palavra religião tem, portanto, um sentido
necessário e absoluto. A própria natureza consagra a idéia que representa essa
palavra e a eleva à altura de um princípio.
A necessidade de crer liga-se estreitamente à necessidade de
amar: é por isso que as almas têm necessidade de comungar com as mesmas
esperanças e com o mesmo amor. As crenças isoladas não passam de dúvidas: é o
laço da confiança mútua que faz a religião ao criar a fé.
A fé não se inventa, não se impõe, não se estabelece por
convicção política; manifesta-se, como a vida, com uma espécie de fatalidade. O
mesmo poder que dirige os fenômenos da natureza estende e limita, além de todas
as previsões humanas, o domínio sobrenatural da fé. Não se imaginam as
revelações, elas se impõem, e nelas se crê. Por mais que o espírito proteste
contra as obscuridades do dogma, está subjugado pela atração dessas mesmas
obscuridades, e freqüentemente o mais indócil dos pensadores coraria em aceitar
o título de homem sem religião.
A religião ocupa um espaço bem maior entre as realidades da
vida do que pretendem crer aqueles que dispensam a religião ou que têm a
pretensão de dispensá-la. Tudo o que eleva o homem acima do animal, o amor
moral, a abnegação, a honra são sentimentos essencialmente religiosos. O culto
da pátria e do lar, a religião do juramento e das lembranças são coisas que a
humanidade jamais abjurará sem se degradar completamente, e que não saberiam
existir sem a crença em alguma coisa maior do que a vida mortal, com todas as
suas vissicitudes, suas ignorâncias e suas misérias.
Se a perda eterna no nada tivesse de ser o resultado de todas
as nossas aspirações às coisas sublimes que sentimos serem eternas, a fruição do
presente, o esquecimento do passado e a displicência para com o futuro seriam
nossos únicos deveres, e seria rigorosamente verdadeiro dizer, com um sofista
célebre, que o homem que pensa é um animal degradado.
Por isso, de todas as paixões humanas, a paixão religiosa é a
mais poderosa e a mais vivaz. Produz-se seja pela afirmação seja pela negação,
com igual fanatismo, uns afirmando com obstinação o deus que fizeram à sua
imagem, outros negando Deus com temeridade, como se tivessem podido compreender
e devastar por um único pensamento todo o infinito que está ligado a seu grande
nome.
Os filósofos não refletiram suficientemente sobre o fato
fisiológico da religião na humanidade: a religião, com efeito, existe além de
toda discussão dogmática. É uma faculdade da alma humana, da mesma forma que a
inteligência e o amor. Enquanto houver homens, a religião existirá. Considerada
assim, ela não é outra coisa que a necessidade de um idealismo infinito,
necessidade que justifica todas as aspirações ao progresso, que inspira todas as
abnegações, que sozinha impede a virtude e a honra de serem unicamente palavras
que servem para iludir a vaidade dos fracos e dos tolos em proveito dos fortes e
dos hábeis.
É a essa necessidade inata de crença que se poderia dar o nome
de religião natural, e tudo o que tende a diminuir e limitar o impulso dessa
crença está, na ordem religiosa, em oposição à natureza. A essência do objeto
religioso é o mistério, uma vez que a fé começa no desconhecido e abandona todo
o resto às investigações da ciência. A dúvida é, aliás, mortal à fé; ela sente
que a intervenção do ser divino é necessária para cobrir o abismo que separa o
finito do infinito e afirma essa intervenção com todo o ímpeto de seu coração,
com toda a docilidade de sua inteligência. Fora desse ato de fé, a necessidade
religiosa não encontra satisfação e transmuta-se em ceticismo e em desespero.
Mas, para que o ato de fé não seja um ato de loucura, a razão quer que ele seja
dirigido e regulado. Pelo quê? Pela ciência? Vimos que nesse caso a ciência é
impotente. Pela autoridade civil? É absurdo. Colocai guardas para vigiar as
orações!
Resta, pois, a autoridade moral, única que pode constituir o
dogma e estabelecer a disciplina do culto de comum acordo, dessa vez, com a
autoridade civil, mas não conforme às suas ordens; é preciso, em uma palavra,
que a fé dê à necessidade religiosa uma satisfação real, inteira, permanente,
indubitável. Para tanto, é preciso a afirmação absoluta, invariável, de um dogma
conservado por uma hierarquia autorizada. É preciso um culto eficaz que dê, com
uma fé absoluta, uma realização substancial aos signos da crença.
A religião, assim compreendida, sendo a única que satisfaz a
necessidade natural de religião, deve ser chamada de a única verdadeiramente
natural. E chegamos por nós mesmos a esta dupla definição: a verdadeira religião
natural é a religião revelada, é a religião hierárquica e tradicional, que se
afirma absolutamente acima das discussões humanas pela comunhão da fé, da
esperança e da caridade.
Ao representar a autoridade moral e ao realizá-la pela eficácia
de seu ministério, o sacerdote é santo e infalível, enquanto a humanidade está
sujeita ao vício e ao erro. O padre, ao agir como padre, é sempre o
representante de Deus. Pouco importam as faltas ou mesmo os crimes do homem.
Quando Alexandre VI fazia uma ordenação, não era o envenenador que impunha as
mãos aos bispos, era o papa. Ora, o papa Alexandre VI nunca corrompeu nem
falsificou os dogmas que o condenavam, os sacramentos que, em suas mãos,
salvavam os outros e não o justificavam. Houve sempre e em todos os lugares
homens mentirosos e criminosos; mas, na Igreja hierárquica e divinamente
autorizada, nunca houve e nunca haverá nem maus papas nem maus padres. Mau e
padre são palavras que não se ajustam.
Falamos de Alexandre VI e acreditamos que esse nome baste, sem
que nos oponham outras lembranças justamente execradas. Grandes criminosos
puderam duplamente desonrar-se, por causa do caráter sagrado de que estavam
revestidos; mas não lhes foi dado desonrar esse caráter, que continua sempre
radiante e esplêndido acima da humanidade que cai.
Dissemos que não há religião sem mistérios; acrescentemos que
não há mistérios sem símbolos. Sendo o símbolo a fórmula ou a expressão do
mistério, ele só exprime sua profundidade desconhecida por imagens paradoxais
emprestadas do conhecido. Devendo caracterizar o que está acima da razão
científica, a forma simbólica deve necessariamente encontrar-se fora dessa
razão: daí, a palavra célebre e perfeitamente justa de um Pai da Igreja: Creio,
porque é absurdo, credo quia absurdum.
Se a ciência afirmasse o que não sabe, destruiria a si própria.
A ciência não pode, portanto, realizar a obra da fé, tanto quanto a fé não pode
decidir em matéria de ciência. Uma afirmação de fé com que a ciência tenha a
temeridade de ocupar-se será apenas um absurdo para ela, da mesma forma que uma
afirmação de ciência que nos fosse dada como artigo de fé seria um absurdo na
ordem religiosa. Crer e saber são dois termos que nunca se podem confundir.
Tampouco poderiam opor-se um ao outro num antagonismo qualquer.
É impossível, com efeito, crer no contrário do que se sabe sem deixar, por isso
mesmo, de o saber, e é igualmente impossível chegar a saber o contrário do que
se crê sem deixar imediatamente de crer.
Negar ou mesmo contestar as decisões da fé, e isso em nome da
ciência, é provar que não se compreende nem a ciência nem a fé: com efeito, o
mistério de um Deus em três pessoas não é um problema de matemática; a
encarnação do Verbo não é um fenômeno que pertença à medicina; a redenção escapa
à crítica dos historiadores. A ciência é absolutamente impotente para decidir se
se tem ou não razão de se acreditar ou não no dogma; ela pode constatar somente
os resultados da crença e, se a fé torna evidentemente os homens melhores, se,
aliás, a fé em si mesma, considerada como um fato fisiológico, é evidentemente
uma necessidade e uma força, será preciso que a ciência o admita e tome o sábio
partido de contar sempre com a fé.
Ousemos afirmar agora que existe um fato imenso, igualmente
apreciável pela fé e pela ciência, um fato que torna Deus visível de algum modo
sobre a terra, um fato incontestável e de alcance universal; esse fato é a
manifestação, no mundo, a partir da época em que começa a revelação cristã, de
um espírito desconhecido pelos antigos, de um espírito evidentemente divino,
mais positivo que a ciência em suas obras, mais magnificamente ideal em suas
aspirações que a mais elevada poesia, um espírito para o qual era preciso criar
um nome novo, completamente inaudito nos santuários da Antigüidade. Assim, esse
nome foi criado, e demonstraremos que esse nome, que essa palavra é, em
religião, tanto para a ciência quanto para a fé, a expressão do absoluto; a
palavra é caridade e o espírito de que falamos chama-se o espírito de
caridade.
Diante da caridade, a fé prosterna-se e a ciência, vencida,
inclina-se. Há evidentemente aqui alguma coisa maior do que a humanidade; a
caridade prova por suas obras que não é um sonho. É mais forte do que todas as
paixões; triunfa sobre o sofrimento e a morte; faz que Deus seja compreendido
por todos os corações e parece já preencher a eternidade pela realização
iniciada de suas legítimas esperanças.
Diante da caridade viva e atuante, que Proudhon ousará
blasfemar? Que Voltaire ousará rir?
Empilhai, um sobre os outros, os sofismas de Diderot, os
argumentos críticos de Strauss, as Ruínas de Volney - tão bem nomeadas,
pois esse homem não poderia fazer senão ruínas -, as blasfêmias dessa revolução
cuja voz extingue-se uma vez no sangue e outra no silêncio do desprezo;
acrescentei a isso o que o futuro pode nos reservar de monstruosidades e
devaneios; depois, que venha a mais humilde e a mais simples de todas as irmãs
da caridade, o mundo abandonará todas as suas tolices, todos os seus crimes,
todos os seus devaneios doentios, para inclinar-se diante dessa realidade
sublime.
Caridade! palavra divina, palavra que, por si, leva à
compreensão de Deus, palavra que contém uma revelação inteira! Espírito de
caridade, aliança de duas palavras que são toda uma solução e todo um futuro!
Que pergunta, com efeito, essas duas palavras não podem responder?
O que é Deus para nós senão o espírito de caridade? o que é a
ortodoxia? não é o espírito de caridade que não discute sobre a fé a fim de não
alterar a confiança dos pequenos e de não perturbar a paz da comunhão universal?
Ora, o que é a Igreja universal senão a comunhão em espírito de caridade? É pelo
espírito de caridade que a Igreja é infalível. O espírito de caridade é a
virtude divina do sacerdócio.
Dever dos homens, garantia de seus direitos, prova de sua
imortalidade, eternidade de felicidade iniciada para eles na terra, objetivo
glorioso dado a sua existência, fim e meio de seus esforços, perfeição de sua
moral individual, civil e religiosa, o espírito de caridade abrange tudo,
aplica-se a tudo, tudo pode esperar, tudo empreender e tudo cumprir.
Era pelo espírito de caridade que Jesus, expirando na cruz,
dava a sua mãe um filho na pessoa de São João e, triunfando sobre as angústias
do mais horrível suplício, soltava um grito de libertação e de salvação ao
dizer: "Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito."
Foi pelo espírito de caridade que doze artesãos da Galiléia
conquistaram o mundo; amaram a verdade mais do que suas vidas; e foram sozinhos
dizê-la aos povos e aos reis; provados pela tortura, foram considerados fiéis.
Mostraram às multidões a imortalidade viva em sua morte e regaram a terra com um
sangue cujo calor não podia extinguir-se, pois neles ardia a chama da
caridade.
Foi pela caridade que os apóstolos constituíram seus símbolos.
Disseram que acreditar juntos é melhor do que duvidar separadamente;
constituíram a hierarquia sobre a obediência, tornada tão nobre e tão grande
pelo espírito de caridade, que servir assim é reinar; formularam a fé de todos e
a esperança de todos e puseram esse símbolo sob a guarda da caridade de todos.
Ai do egoísta que se apropria de uma só palavra dessa herança do Verbo, pois é
um deicida que quer desmembrar o corpo do Senhor.
O símbolo é a arca sagrada da caridade, quem quer que o toque é
atingido pela morte eterna, pois a caridade retira-se dele. É a herança sagrada
de nossos filhos, é o preço do sangue de nossos pais.
Era pela caridade que os mártires se consolavam nas prisões dos
césares e atraíam para sua crença seus guardas e mesmo seus carrascos.
Era em nome da caridade que São Martinho de Tours protestava
contra o suplício dos priscilianos e separava-se da comunhão do tirano que
queria impor a fé pela espada.
Foi pela caridade que tantos santos consolaram o mundo dos
crimes cometidos em nome da própria religião e dos escândalos do santuário
profanado.
Foi pela caridade que São Vicente de Paulo e Fenelon
impuseram-se à admiração dos séculos, mesmo aos mais ímpios, e fizeram calar de
antemão o riso dos filhos de Voltaire diante da seriedade imponente de suas
virtudes.
Foi pela caridade, enfim, que a loucura da cruz tornou-se a
sabedoria das nações, porque todos os nobres corações compreenderam que é mais
elevado acreditar ao lado dos que amam e devotam-se do que duvidar ao lado dos
egoístas e dos escravos do prazer!
Deus só pode ser definido pela fé; a ciência não pode negar nem
afirmar que ele existe.
Deus é o objeto absoluto da fé humana. No infinito, é a
inteligência suprema e criadora da ordem. No mundo, é o espírito de
caridade.
Será o Ser universal uma máquina fatal que tritura eternamente
as inteligências ocasionais ou uma inteligência providencial que dirige as
forças para a melhoria dos espíritos?
A primeira hipótese repugna à razão, é desesperadora e
imoral.
Ciência e razão devem, portanto, inclinar-se diante da
segunda.
Sim, Proudhon, Deus é uma hipótese, mas é uma hipótese tão
necessária que, sem ela, todos os teoremas tornam-se absurdos ou duvidosos.
Para os iniciados da cabala, Deus é a unidade absoluta que cria
e anima os números.
A unidade da inteligência humana demonstra a unidade de
Deus.
A chave dos números é a dos símbolos, porque os sintomas são as
figuras analógicas da harmonia que vem dos números.
As matemáticas não saberiam demonstrar a fatalidade cega, uma
vez que são a expressão da exatidão que é o caráter da mais suprema razão.
A unidade demonstra a analogia dos contrários; é o princípio, o
equilíbrio e o fim dos números. O ato de fé parte da unidade e retorna à
unidade.
Vamos esboçar uma explicação da Bíblia pelos números, porque a
Bíblia é o livro das imagens de Deus.
Perguntaremos aos números a razão dos dogmas da religião
eterna, e os números responderão sempre, reunindo-se na síntese da unidade.
As poucas páginas que se seguem são simples apanhados das
hipóteses cabalísticas; são externas à fé e as indicamos somente como pesquisas
curiosas. Não nos cabe inovar em matéria de dogma, e nossas asserções como
iniciado estão inteiramente subordinadas à nossa submissão como cristão.
A unidade é o princípio e a síntese dos números, é a idéia de
Deus e do homem, é a aliança da razão e da fé.
A fé não pode ser oposta à razão, é exigida pelo amor, é
idêntica à esperança. Amar é acreditar e esperar, e esse triplo ímpeto da alma é
chamado virtude, porque é preciso coragem para realizá-lo. Mas haveria coragem
nisso se a dúvida não fosse possível? Ora, poder duvidar é duvidar. A dúvida é a
força equilibrante da fé e tem todo o seu mérito.
A própria natureza nos induz a crer, mas as fórmulas de fé são
constatações sociais das tendências da fé numa época dada. É o que dá a
infalibilidade à Igreja, infalibilidade de evidência e de fato.
Deus é necessariamente o mais desconhecido de todos os seres,
uma vez que só é definido em sentido inverso de nossas experiências, é tudo o
que não somos, é o infinito oposto ao finito por hipótese contraditória.
A fé e, por conseguinte, a esperança e o amor são tão livres
que o homem, longe de impô-los aos outros, não os impõe a si mesmo.
São graças, diz a religião. Ora, será concebível que se exija a
graça, isto é, que se queira forçar os homens ao que vem livre e gratuitamente
do céu? É preciso desejar-lhes isso.
Raciocinar sobre a fé é disparatar, uma vez que o objeto da fé
é externo à razão. Se me perguntam: "Existe um Deus?", eu respondo: "Acredito
que sim." "Mas o senhor tem certeza disso?" "Se tivesse certeza, não acreditaria
nele, eu o saberia."
Formular a fé é admitir termos da hipótese comum.
A fé começa onde a ciência acaba. Ampliar a ciência é
aparentemente suprimir a fé, e, na realidade, é ampliar igualmente seu domínio,
pois é ampliar sua base.
Só se pode adivinhar o desconhecido por suas proporções
supostas ou passíveis de serem supostas do conhecido.
A analogia era o dogma único dos antigos magos. Dogma
verdadeiramente mediador, pois é metade científico, metade hipotético, metade
razão e metade poesia. Esse dogma foi e será sempre o gerador de todos os
outros.
O que é o Homem-Deus? É o que realiza na vida mais humana o
ideal mais divino.
A fé é uma adivinhação da inteligência e do amor dirigidos
pelos índices da natureza e da razão.
Faz parte, portanto, da essência das coisas de fé serem
inacessíveis à ciência, duvidosas para a filosofia e indefinidas para a
certeza.
A fé é uma realização hipotética dos fins últimos da esperança.
É a adesão ao signo visível das coisas que não se vê.
Sperandarum substantia rerum
Argumentum non apparentium
Para afirmar sem disparate que Deus existe ou não, é preciso
partir de uma definição sensata ou insensata de Deus. Ora, essa definição para
ser sensata deve ser hipotética, analógica e negativa do finito conhecido.
Pode-se negar um Deus qualquer, mas o Deus absoluto não se nega tanto quanto não
se prova; é sensatamente suposto e nele se acredita.
Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus,
disse o Mestre; ver com o coração é acreditar e, se essa fé se relaciona ao
verdadeiro bem, não pode ser enganada contanto que não procure definir muito
seguindo as induções arriscadas da ignorância pessoal. Nossos julgamentos, em
matéria de fé, aplicam-se a nós mesmos, será para nós como tivermos acreditado.
Isto é, nós próprios nos fazemos à semelhança de nosso ideal.
Quem faz os deuses torna-se semelhante a eles, assim como todos
aqueles que lhes dão sua confiança.
O ideal divino do velho mundo fez a civilização que acabou, e
não se deve desesperar ao ver o deus de nossos bárbaros pais tornar-se o diabo
de nossos filhos mais esclarecidos. Fazem-se diabos com deuses de refugo, e Satã
só é assim tão incoerente e tão disforme porque é feito com todos os retalhos
das antigas teogonias. É a esfinge sem palavra, é o enigma sem solução, é o
mistério sem verdade, é o absoluto sem realidade e sem luz.
O homem é o filho de Deus, porque Deus, manifestado, é chamado
o filho do homem.
Foi depois de ter feito Deus em sua inteligência e seu amor que
a humanidade compreendeu o verbo sublime que disse: Faça-se a luz!
O homem é a forma do pensamento divino, e Deus é a síntese
idealizada do pensamento humano.
Assim, o Verbo de Deus é o que revela o homem, e o Verbo do
homem é o que revela Deus.
O homem é o Deus do mundo, e Deus é o homem do céu.
Antes de dizer: Deus quer, o homem quis.
Para compreender e honrar Deus todo-poderoso, é preciso que o
homem seja livre.
Obedecendo e abstendo-se por temor ao fruto da ciência, tendo
sido inocente e estúpido como o cordeiro, curioso e rebelde como o anjo de luz,
o homem cortou o cordão de sua ingenuidade e, caindo livre sobre a terra,
arrastou Deus em sua queda.
E é por isso que, do fundo dessa queda sublime, revela-se
glorioso com o grande condenado do calvário e entra com ele no reino do céu.
Pois o reino do céu pertence à inteligência e ao amor, ambos
filhos da liberdade!
Deus mostrou ao homem a liberdade como uma amante, e, para pôr
seu coração à prova, fez passar, entre ela e ele, o fantasma da morte.
O homem amou e sentiu-se Deus; deu por ela isto que Deus
acabava de nos dar: a esperança eterna.
Lançou-se em direção de sua noiva através da sombra da morte e
o espectro desapareceu.
O homem possuía a liberdade; tinha abraçado a vida.
Expia agora tua glória, ó Prometeu!
Teu coração devorado sem cessar não pode morrer; é o teu abutre
e Júpiter que morrerão.
Um dia despertaremos enfim dos sonhos penosos de uma vida
atormentada, a obra de nossa provação terá acabado, seremos fortes o bastante
contra a dor para sermos imortais.
Então viveremos em Deus, numa vida mais abundante, e desceremos
às suas obras com a luz de seu pensamento, seremos levados ao infinito pelo
sopro de seu amor.
Seremos, sem dúvida, os primogênitos de uma nova raça; anjos do
porvir.
Mensageiros celestes, vogaremos na imensidão e as estrelas
serão nossas brancas naus.
Transformar-nos-emos em doces visões para acalmar os olhos dos
que choram; colheremos lírios resplandecentes em prados desconhecidos e
espargiremos seu orvalho sobre a terra.
Tocaremos a pálpebra da criança que dorme e alegraremos
docemente o coração de sua mãe com o espetáculo da beleza de seu filho
bem-amado.
O binário é mais particularmente o número da mulher, esposa do
homem e mãe da sociedade.
O homem é o amor na inteligência, a mulher é a inteligência no
amor.
A mulher é o sorriso do criador contente de si próprio, e foi
depois de tê-la feito que ele descansou, diz a parábola celeste.
A mulher está antes do homem, porque é mãe e tudo lhe é
perdoado de antemão porque dá à luz com dor.
A mulher foi quem primeiro se iniciou na imortalidade pela
morte; o homem, então, a viu tão bela e a compreendeu tão generosa, que não quis
sobreviver a ela, e amou-a mais do que sua vida, mais do que sua felicidade
eterna.
Feliz proscrito! já que lhe foi dada como companheira de seu
exílio.
Mas os filhos de Caim revoltaram-se contra a mãe de Abel e
escravizaram sua mãe.
A beleza da mulher tornou-se uma presa para a brutalidade dos
homens sem amor.
Então, a mulher fechou seu coração como um santuário
desconhecido e disse aos homens indignos dela: "Sou virgem, mas quero ser mãe, e
meu filho ensinar-vos-á a me amar."
Ó Eva! sê saudada e adorada em tua queda!
Ó Maria! sê abençoada e adorada em tuas dores e em tua
glória!
Santa crucificada que sobrevivia a teu Deus para enterrar teu
filho, sê para nós a última palavra da revelação divina!
Moisés chamava Deus de Senhor, Jesus chamava-o de meu Pai, e
nós, pensando em ti, diremos à Providência: "Sois nossa mãe!"
Filhos da mulher, perdoemos a mulher decaída.
Filhos da mulher, adoremos a mulher regenerada.
Filhos da mulher, que dormimos em seu seio, que fomos embalados
em seus braços e consolados por seus carinhos, amemo-la e amemo-nos entre
nós!
O ternário é o número da criação.
Deus criou a si próprio eternamente e o infinito que ele
preenche com suas obras é uma criação incessante e infinita.
O amor supremo contempla-se na beleza como em um espelho, e
experimenta todas as formas como enfeites, pois é o noivo da vida.
O homem também afirma e cria a si próprio: enfeita-se com suas
conquistas, ilumina-se com suas concepções, reveste-se com suas obras como que
com vestes nupciais.
A grande semana da criação foi imitada pelo gênio humano
divinizando as formas da natureza.
Cada dia forneceu uma revelação nova, cada rei progressivo do
mundo foi por um dia a imagem e a encarnação de Deus! Sonho sublime que explica
os mistérios da Índia e justifica todos os simbolismos!
A elevada concepção do homem-Deus corresponde à criação de
Adão, e o cristianismo, à semelhança dos primeiros dias do homem típico no
paraíso terrestre, foi apenas uma aspiração e uma viuvez.
Esperamos o culto da esposa e da mãe, aspiramos às núpcias da
nova aliança.
Então os pobres, os cegos, todos os proscritos do velho mundo
serão convidados para o festim e receberão um traje nupcial; e olhar-se-ão uns
aos outros com uma grande doçura e um inefável sorriso, porque terão chorado
muito tempo.
O quaternário é o número da força. É o ternário completado por
seu produto, é a unidade rebelada reconciliada à trindade soberana.
No ardor primeiro da vida, o homem, tendo esquecido sua mãe,
compreendeu Deus apenas como um pai inflexível e cioso.
O sombrio Saturno, armado com sua foice parricida, põe-se a
devorar seus filhos.
Júpiter teve cenhos que abalaram o Olimpo, e Jeová, trovões que
ensurdeceram as solidões do Sinai.
E, no entanto, o pai dos homens, embriagado às vezes como Noé,
deixava o mundo perceber os mistérios da vida.
Psiquê, divinizada por suas aflições, tornava-se esposa do
Amor; Adônis ressuscitado reencontrava Vênus no Olimpo; Jó, vitorioso ao mal,
recuperava mais do que tinha perdido.
A lei é uma prova de coragem. Amar a vida mais do que se teme
as ameaças da morte é merecer a vida.
Os eleitos são os que ousam; ai dos tímidos!
Assim, os escravos da lei que se fazem os tiranos das
consciências, e os servidores do temor, e os avaros de esperança, e os fariseus
de todas as sinagogas e de todas as igrejas, estes são os réprobos e os malditos
do Pai!
Cristo não foi excomungado e crucificado pela sinagoga?
Savonarola não foi queimado por ordem de um pontífice da
religião cristã?
Os fariseus não são hoje o que eram no tempo de Caifás?
Se alguém lhes fala em nome da inteligência e do amor,
escutá-lo-ão?
Foi arrancando os filhos da liberdade à tirania dos Faraós que
Moisés inaugurou o reino do Pai.
Foi quebrando o jugo insuportável do farisaísmo mosaico que
Jesus convidou todos os homens à fraternidade do filho único de Deus.
Quando caírem os últimos ídolos, quando se quebrarem as últimas
correntes materiais das consciências, quando os últimos matadores de profetas,
quando os últimos sufocadores do Verbo forem confundidos, será o reino do
Espírito Santo.
Glória, pois, ao Pai, que enterrou o exército do Faraó no mar
Vermelho!
Glória ao Filho que rasgou o véu do templo e cuja cruz
extremamente pesada posta sobre a coroa dos Césares quebrou contra a terra a
fronte dos Césares!
Glória ao Espírito Santo que deve varrer da terra com seu sopro
terrível todos os ladrões e todos os carrascos para dar lugar ao banquete dos
filhos de Deus!
Glória ao Espírito Santo que prometeu ao anjo da liberdade a
conquista da terra e do céu.
O anjo da liberdade nasceu antes da aurora do primeiro dia,
antes mesmo do despertar da inteligência, e Deus o denominou estrela da
manhã.
Ó Lúcifer, tu te desligaste voluntária e desdenhosamente do céu
onde o sol te inundava com sua claridade, para sulcar com teus próprios raios os
campos agrestes da noite.
Brilhas quando o sol se põe e teu olhar resplandecente precede
o nascer do dia.
Cais para de novo levantar; experimentas a morte para melhor
conhecer a vida.
És, para as glórias antigas do mundo, a estrela da noite; para
a verdade renascente, a bela estrela da manhã!
A liberdade não é a licença: a licença é a tirania.
A liberdade é a guardiã do dever, porque ela reivindica o
direito.
Lúcifer, cujas idades das trevas fizeram o gênio do mal, será
verdadeiramente o anjo da luz quando, tendo conquistado a liberdade ao preço da
reprovação, fizer uso dela para se submeter à ordem eterna, inaugurando assim as
glórias da obediência voluntária.
O direito é apenas a raiz do dever, é preciso possuir para
dar.
Ora, eis como uma elevada poesia explica a queda dos anjos.
Deus tinha dado aos espíritos a luz e a vida, depois lhes
disse: Amai.
- O que é amar?, responderam os espíritos.
- Amar é dar-se aos outros, respondeu Deus. - Os que amarem
sofrerão, mas serão amados.
- Temos o direito de não dar nada, e nada queremos sofrer,
disseram os espíritos inimigos do amor.
- Estais em vosso direito, respondeu Deus -, e separemo-nos. Eu
e os meus queremos sofrer e morrer, mesmo para amar. É nosso dever!
O anjo caído é pois aquele que desde o princípio recusou amar;
não ama, e é todo o seu suplício; não dá, e é toda a sua miséria; não sofre, e é
seu nada; não morre, e é seu exílio.
O anjo caído não é Lúcifer, o porta-luz, é Satã, o caluniador
do amor.
Ser rico é dar; não dar nada é ser pobre; viver é amar, não
amar nada é estar morto; ser feliz é devotar-se; existir somente para si é
reprovar a si próprio, é seqüestrar-se no inferno.
O céu é a harmonia dos sentimentos gerais; o inferno é o
conflito dos instintos lassos.
O homem do direito é Caim, que matou Abel por inveja; o homem
do dever é Abel, que morre para Caim por amor.
E tal foi a missão do Cristo, o grande Abel da humanidade.
Não é pelo direito que devemos ousar em tudo, é pelo dever.
O dever é a expansão e a fruição da liberdade; o direito
isolado é o pai da servidão.
O dever é a obrigação, o direito é o egoísmo.
O dever é o sacrifício, o direito é a rapina e o roubo.
O dever é o amor, o direito é o ódio.
O dever é a vida infinita, o direito é a morte eterna.
Se é preciso combater pela conquista do direito, é somente para
adquirir a potência do dever: e por que seríamos livres se não fosse para amar,
devotarmo-nos e, assim, assemelharmo-nos a Deus?
Se é preciso infringir a lei, é quando ela submete o amor ao
medo.
Aquele que quiser salvar sua alma perdê-la-á, diz o livro
santo, e aquele que consentir em perdê-la salvá-la-á.
O dever é amar: pereça todo aquele que cria obstáculos ao amor!
Silêncio aos oráculos do ódio! Aniquilamento aos falsos deuses do egoísmo e do
medo! Vergonha aos escravos avaros de amor!
Deus ama os filhos pródigos!
O quinário é o número religioso, pois é o número de Deus
reunido ao da mulher.
A fé não é a credulidade estúpida da ignorância
maravilhada.
A fé é a consciência e a confiança do amor.
A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo, mesmo
diante do desconhecido.
A fé é um sentimento necessário à alma como a respiração à
vida: é a dignidade do coração, é a realidade do entusiasmo.
A fé não consiste na afirmação deste ou daquele símbolo, mas na
aspiração verdadeira e constante às verdades veladas por todos os
simbolismos.
Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas
falsas imagens, revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um
ateu?
Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros
cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula ou de Nero.
Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de
preferência a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso e
sublime ato de fé.
Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir da fé.
Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade a
qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.
Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que
nela se crê é reconhecer ignorá-la.
O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas:
acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.
A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos artigos
da crença.
Um dogma qualquer constitui apenas uma crença e pertence a uma
comunhão especial; a fé é um sentimento comum a toda a humanidade.
Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um
dogma a mais é uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma
maneira, à fé universal.
Deixemos os sectários fazerem e refazerem seus dogmas, deixemos
os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições, deixemos os mortos
enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos na verdade indizível,
no absoluto que a razão admite sem compreender, no que pressentimos sem
saber.
Acreditemos na razão suprema.
Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes
da escola e das barbáries da falsa religião.
Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales.
Rezas, jejuas, velas e crês que escaparás assim sozinho, ou
quase sozinho, à perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um
hipócrita e um ímpio.
Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és um
doente ou um insano.
Estás pronto a sofrer como os outros e pelos outros e esperas a
salvação de todos, és um sábio e um justo.
Esperar não é ter medo.
Ter medo de Deus! Que blasfêmia!
O ato de esperança é a oração.
A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor
eternos.
É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração
para a beleza suprema.
É o sorriso da criança para a mãe.
É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos de sua
bem-amada.
É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de
amor.
É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.
É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.
É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e
os filhos.
Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai
desconhecido um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação a
parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações
serão palavras de oração.
Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já
não sabe ele o que nos é necessário?
Se choramos, apresentemos-lhe as nossas lágrimas; se nos
regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso; se ele nos atinge, baixemos a
cabeça; se nos acaricia, adormeçamos em seus braços!
Nossa oração será perfeita, quando orarmos sem sequer saber que
oramos.
A oração não é um ruído que fere os ouvidos, é um silêncio que
penetra no coração.
E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como
a fumaça dos incensos.
Fica-se tomado por um inefável amor a tudo o que é beleza,
verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida e não se teme mais morrer. Pois a
oração é a vida eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.
Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e
compreendei essa palavra.
E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures
mais, não duvideis mais, amai!
Não mais sejais sábios, não mais sejais eruditos, amai! Essa é
a doutrina da verdadeira religião; religião quer dizer caridade, e o próprio
Deus não é senão amor.
Eu já vos disse: amar é dar.
O ímpio é aquele que absorve os outros.
O homem pio é aquele que se expande na humanidade.
Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com o qual
Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se preenche de cinzas; se
ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de amor.
O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria; a pátria,
à humanidade.
O egoísmo do homem merece o isolamento e o desespero, o egoísmo
da família merece a ruína e o exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a
invasão.
O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei
a Deus, este se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não ama ao próximo
que vê, como amará a Deus que não vê?
É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não se deve recusar
mesmo a César o que é de César.
Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.
É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está dito no
livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.
Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede
livres!
Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os
primeiros inimigos da sua liberdade.
Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser
livre!
O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de
cadáveres.
O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso
escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.
Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel dos
suplícios: o ódio.
Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.
O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso,
quebrar-se-á, a fatalidade o quer.
Com os escombros do mundo, Deus refaz estrelas; com os
escombros da alma, refaz anjos
O senário é o número da iniciação pela prova; é o número do
equilíbrio, é o hieróglifo da ciência do bem e do mal.
Quem procura a origem do mal procura o que não é.
O mal é o apelativo da desordem do bem, é a tentativa
infrutífera de uma vontade inábil.
Cada um possui o fruto de suas obras, e a pobreza é somente o
aguilhão do trabalho.
Para o rebanho dos homens, o sofrimento é como o cão pastor que
morde a lã das ovelhas para recolocá-las no caminho.
É por causa da sombra que podemos ver a luz; é por causa do
frio que sentimos o calor; é por causa da dor que somos sensíveis ao prazer.
O mal é, portanto, para nós, a ocasião e o começo do bem.
Mas, nos sonhos de nossa inteligência imperfeita, acusamos o
trabalho providencial, por não o compreender.
Assemelhamo-nos ao ignorante que julga o quadro no começo do
esboço e diz, quando a cabeça está feita: "Então esta figura não tem corpo."
A natureza continua calma e realiza sua obra.
A relha não é cruel quando rasga o seio da terra, e as grandes
revoluções do mundo são a lavoura de Deus.
Tudo tem seu tempo: aos povos ferozes, senhores bárbaros; ao
gado, açougueiros; aos homens, juizes e pais.
Se o tempo pudesse transformar os carneiros em leões, eles
comeriam os açougueiros e os pastores.
Os carneiros nunca se transformam porque não se instruem, mas
os povos instruem-se.
Pastores e açougueiros dos povos, tendes razão, portanto, em
ver como inimigos aqueles que falam a vosso rebanho.
Rebanhos que conheceis ainda apenas vossos pastores e que
quereis ignorar seu comércio com os açougueiros, sois desculpáveis por apedrejar
aqueles que vos humilham e que vos inquietam ao falarem de vossos direitos.
Ó Cristo! Os grandes condenam-te, teus discípulos renegam-te, o
povo amaldiçoa-te e aclama teu suplício, somente tua mãe chora, Deus
abandona-te!
Eli! Eli! Lamma Sabachtani!
O setenário é o grande número bíblico. É a chave da criação de
Moisés e o símbolo de toda a religião. Moisés deixou cinco livros, e a lei
resume-se em dois testamentos.
A Bíblia não é uma história, é uma coletânea de poemas, é um
livro de alegorias e imagens.
Adão e Eva são somente tipos primitivos da humanidade; a
serpente que tenta é o tempo que põe à prova; a árvore da ciência é o direito; a
expiação pelo trabalho é o dever.
Caim e Abel representam a carne e o espírito, a força e a
inteligência, a violência e a harmonia.
Os gigantes são os antigos usurpadores da terra; o dilúvio foi
um imensa revolução.
A arca é a tradição conservada numa família: a religião, nessa
época, torna-se um mistério e a propriedade de uma raça. Caim é maldito por ser
seu revelador.
Nemrod e Babel são duas alegorias primitivas do désposta único
e do império universal sempre sonhado desde então; empreendido sucessivamente
pelos assírios, os medas, os persas, Alexandre, Roma, Napoleão, os sucessores de
Pedro, o Grande, e sempre inacabado por causa da dispersão de interesses,
figurada pela confusão das línguas.
O império universal não deveria realizar-se pela força, mas
pela inteligência e pelo amor. Por isso, a Nemrod, homem do direito selvagem, a
Bíblia opõe Abraão, homem do dever, que se exila para buscar a liberdade e a
luta numa terra estrangeira de que se apodera pelo pensamento.
Tem uma mulher estéril, é seu pensamento, e uma escrava
fecunda, é sua força; mas, quando a força produz seu fruto, o pensamento
torna-se fecundo, e o filho da inteligência exila o filho da força. O homem de
inteligência é submetido a duras provas; deve confirmar suas conquistas pelo
sacrifício. Deus quer que ele imole seu filho, isto é, a dúvida deve pôr à prova
o dogma e o homem intelectual deve estar pronto a tudo sacrificar diante da
razão suprema. Deus, então, intervém: a razão universal cede aos esforços do
trabalho, mostra-se à ciência e apenas o lado material do dogma é imolado. É o
que representa o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos. A história de
Abraão é pois um símbolo à moda antiga e contém uma elevada revelação dos
destinos da alma humana. Tomada ao pé da letra, é um relato absurdo e
revoltante. Santo Agostinho não tomava ao pé da letra o Asno de Ouro de
Apuleu! Pobres grandes homens!
A história de Isaac é uma outra lenda. Rebeca é o tipo de
mulher oriental, laboriosa, hospitaleira, parcial em suas afeições, astuta e
ardilosa em suas manobras. Jacó e Esaú são ainda os dois tipos reproduzidos de
Caim e Abel; mas aqui Abel se vinga; a inteligência emancipada triunfa pela
astúcia. Todo o gênio israelita está no caráter de Jacó, o paciente laborioso
suplantador que cede à cólera de Esaú, torna-se rico e compra o perdão de seu
irmão. Quando os antigos queriam filosofar, contavam, nunca se deve
esquecer.
A história ou lenda de José contém em germe todo o gênio do
Evangelho, e Cristo, desconhecido por seu povo, teve de chorar mais de uma vez
ao reler esta cena em que o governador do Egito lança-se ao pescoço de Benjamim
dando um grito e dizendo: "Eu sou José!"
Israel torna-se o povo de Deus, isto é, o conservador da idéia
e o depositário do Verbo. Essa idéia é a da independência humana e a da realeza
pelo trabalho, mas é ocultada com cuidado, como um germe precioso. Um signo
doloroso e indelével é imprimido nos iniciados, toda imagem da verdade é
proibida, e os filhos de Israel velam, segurando o sabre em torno da unidade do
tabernáculo. Hermor e Siquém querem introduzir-se pela força na família sagrada
e perecem com seu povo em conseqüência de uma falsa iniciação. Para dominar os
povos, é preciso que o santuário já esteja cercado de sacrifícios e terror.
A servidão dos filhos de Jacó prepara sua libertação: eles têm
uma idéia, e não se acorrenta uma idéia; têm uma religião, e não se violenta uma
religião; são por fim um povo, e não se acorrenta um verdadeiro povo. A
perseguição suscita vingadores, a idéia encarna-se num homem, Moisés levanta, o
Faraó cai e a coluna de nuvens e chamas que precede um povo livre avança
majestosamente no deserto.
O Cristo é o pai e o rei pela inteligência e pelo amor.
Recebeu a unção santa, a unção do gênio, a unção da fé, a unção
da virtude que é a força.
Ele vem quando o sacerdote está esgotado, quando os velhos
símbolos não têm mais virtudes, quando a pátria da inteligência está
extinta.
Vem para fazer Israel voltar à vida e, se não puder galvanizar
Israel, morto pelos fariseus, ressuscitará o mundo abandonado ao culto morto dos
ídolos.
Cristo é o direito do dever!
O homem tem o direito de cumprir o seu dever e não tem
outro.
Homem, tens o direito de resistir até a morte a quem quer que
te impeça de cumprir o teu dever!
Mãe! teu filho afoga-se; um homem impede-te de socorrê-lo;
feres esse homem e corres a salvar teu filho!... Quem ousará condenar-te?...
Cristo veio para opor o direito do dever ao dever do
direito.
O direito para os judeus era a doutrina dos fariseus. E, com
efeito, pareciam ter adquirido o privilégio de dogmatizar; não eram eles os
legítimos herdeiros da sinagoga?
Tinham o direito de condenar o Salvador, e o Salvador sabia que
seu direito era o de resistir-lhes.
O Cristo é a protestação viva.
Mas protestação de quê? Da carne contra a inteligência?
Não!
Do direito contra o dever? Não!
Da atração física contra a atração moral? Não! não!
Da imaginação contra a razão universal? Da loucura contra a
sabedoria? Não, mil vezes não, ainda uma vez!
O Cristo é o dever real que protesta eternamente contra o
direito imaginário.
É a emancipação do espírito que quebra a servidão da carne.
É a devoção revoltada contra o egoísmo.
É a modéstia sublime que responde ao orgulho: Eu não te
obedecerei!
O Cristo é viúvo, o Cristo é só, o Cristo é triste: por quê? É
que a mulher prostituiu-se.
É que a sociedade é acusada de roubo.
É que a felicidade egoísta é ímpia.
Cristo é julgado, condenado, executado, e nós o adoramos!
Isso se passou num mundo talvez tão sério quanto o nosso.
Juizes do mundo em que vivemos, sede atentos e pensai naquele
que julgará vossos julgamentos.
Mas, antes de morrer, o Salvador legou a seus filhos o símbolo
imortal da salvação: a comunhão.
Comunhão! União comum! Última palavra do Salvador do mundo.
O pão e o vinho repartidos entre todos, disse ele, é minha
carne e meu sangue!
Ele deu sua carne aos carrascos, seu sangue à terra que quis
bebê-lo: e por quê?
Para que todos repartam o pão da inteligência e o vinho do
amor. Ó signo da união dos homens! Ó mesa comum! Ó banquete da fraternidade e da
igualdade! quando enfim serás melhor compreendido?
Mártires da humanidade, vós que destes a vida para que todos
tivessem o pão que alimenta e o vinho que fortifica, também não dizeis ao impor
a mão sobre esses símbolos da comunhão universal: Isso é nossa carne e nosso
sangue!
E vós, homens do mundo inteiro, vós a quem o Mestre chama
irmãos: oh, não sentis que o pão universal é Deus!
Devedores do crucificado.
Vós todos que não estais prontos para dar à humanidade vosso
sangue, vossa carne e vossa vida não sois dignos da comunhão do Filho de Deus!
Não o façais derramar seu sangue sobre vós, pois faria nódoas sobre vossa
fronte!
Não aproximeis vossos lábios do coração de Deus, ele sentiria
vossa mordedura.
Não bebais o sangue do Cristo, queimaria vossas entranhas; já é
suficiente que ele o tenha derramado inutilmente por vós!
O octonário é o número da reação e da justiça equilibrante.
Toda ação produz uma reação.
É a lei universal do mundo.
O cristianismo devia produzir o anticristianismo.
O anticristo é a sombra, é o contraste e a prova do Cristo.
O anticristo já se produzia na Igreja na época dos apóstolos:
Aquele que resiste agora resiste até a morte, dizia São Paulo, e o filho da
iniqüidade manifestar-se-á.
Os protestantes disseram: O anticristo é o papa.
O papa respondeu: Todo herege é um anticristo.
O anticristo não é mais o papa do que Lutero: o anticristo é o
espírito oposto ao do Cristo.
É a usurpação do direito pelo direito; é o orgulho da dominação
e o despotismo do pensamento.
É o egoísmo pretensamente religioso dos protestantes da
mesmíssima maneira que a ignorância crédula e imperiosa dos maus católicos.
O anticristo é o que divide os homens ao invés de os unir; é o
espírito de disputa, é a teimosia dos doutores e dos sectários, o desejo ímpio
de se apropriar da verdade e dela excluir os outros, o de forçar todo o mundo a
sofrer a estreiteza de nossos julgamentos.
O anticristo é o pai que amaldiçoa ao invés de abençoar, que
afasta ao invés de aproximar, que escandaliza ao invés de edificar, que condena
ao invés de salvar.
É o fanatismo odioso que desencoraja a boa vontade.
É o culto da morte, da tristeza e da fealdade.
Que futuro daremos a nosso filho? disseram os pais insensatos;
ele é fraco de espírito e de corpo e seu coração não dá ainda sinal de vida:
faremos dele um padre, a fim de que viva do altar. E não compreenderam que o
altar não é uma manjedoura para os animais preguiçosos.
Por isso, olhai os padres indignos, contemplei esses pretensos
servidores do altar. O que é que dizem a vossos corações esses homens gordos ou
cadavéricos, de olhos inexpressivos, de lábios cerrados ou escancarados?
Escutai-os falarem: o que vos ensina esse ruído desagradável e
monótono?
Rezam como dormem e sacrificam como comem.
São máquinas de pão, de carne, de vinho e de palavras vazias de
sentido.
E, quando se regozijam, como ostras ao sol, por estarem sem
pensamento e sem amor, diz-se que têm paz de espírito.
Têm a paz da besta e, para o homem, a do túmulo é melhor; são
os padres da tolice e da ignorância, são os ministros do anticristo.
O verdadeiro padre do Cristo é um homem que vive, que sofre,
que ama e que combate pela justiça. Não briga, não reprova, difunde o perdão, a
inteligência e o amor.
O verdadeiro cristão é estranho ao espírito de seita; ele é
tudo para todos e vê todos os homens como filhos de um pai comum que quer salvar
a todos; o símbolo inteiro tem para ele somente um sentido de doçura e amor:
deixa para Deus os segredos da justiça e só compreende a caridade.
Vê os maus como doentes de quem é preciso ter pena e cuidar; o
mundo com seus erros e seus vícios é, para ele, o hospital de Deus, e ele quer
ser seu enfermeiro.
Não se acha melhor que ninguém, apenas diz: Enquanto eu for
melhor, sirvamos os outros, quando for preciso cair e morrer, outros talvez
tomarão meu lugar e nos servirão.
Eis o eremita do tarô; eis o número dos iniciados e dos
profetas.
Os profetas são solitários, pois seu destino é nunca serem
ouvidos.
Vêem muito mais que os outros; pressentem as desgraças por vir.
Assim, são aprisionados, mortos ou vilipendiados, são rejeitados como leprosos,
ou deixam-nos morrer de fome.
Depois, quando os eventos ocorrem, dizemos: Foram essas pessoas
que nos trouxeram desgraça.
Agora, como sempre, na véspera dos grandes desastres, nossas
ruas estão plenas de profetas.
Encontrei alguns nas prisões; vi outros que morriam esquecidos
em pardieiros.
Toda grande cidade viu algum cuja profecia silenciosa era girar
incessantemente e andar sempre coberto de andrajos no palácio do luxo e da
riqueza.
Vi um cujo rosto resplandecia como o do Cristo: tinha as mãos
calejadas e a roupa do trabalhador e moldava epopéias como argila. Torcia juntos
o gládio do direito e o cetro do dever e, sobre esta coluna de ouro e aço,
inaugurava o símbolo criador do amor.
Um dia, numa grande assembléia do povo, desceu a rua, segurando
um pão que partia e distribuía, dizendo: Pão de Deus, faze-te pão para
todos!
Conheço outro que gritou: Não quero mais adorar o Deus do
diabo; não quero um carrasco como Deus! E acreditou-se que ele blasfemava.
Não; mas a energia de sua fé transbordava em palavras inexatas
e imprudentes.
Dizia ainda, na loucura de sua caridade ferida: Todos os homens
são solidários e expiam uns pelos outros, da mesma forma que se merecem uns aos
outros.
O castigo para o pecado é a morte.
O próprio pecado é, aliás, um castigo, e o maior dos castigos.
Um grande crime é apenas uma grande desgraça.
O pior dos homens é o que se acredita melhor do que os
outros.
Os homens apaixonados são escusáveis, uma vez que são passivos.
Paixão significa sofrimento e redenção pela dor.
O que chamamos de liberdade é somente a onipotência da atração
divina. Os mártires diziam: Mais vale obedecer a Deus que aos homens.
O menos perfeito ato de amor vale mais ao que a melhor palavra
de piedade.
Não julgueis, falai pouco, amai e agi.
Um outro que veio disse: Protestai contra as más doutrinas por
boas obras, mas não vos separeis de ninguém.
Restabelecei todos os altares, purificai todos os templos e
estai prontos para a visita do espírito do amor.
Que cada um reze seguindo seu rito e comungue com os seus, mas
não condeneis os outros.
Uma prática de religião nunca é desprezível, pois é o símbolo
de um grande e santo pensamento.
Rezar em conjunto é comungar na mesma esperança, na mesma fé,
na mesma caridade.
O signo não é nada para si próprio: é a fé que o
santifica.
A religião é o laço mais sagrado e mais forte da associação
humana, e fazer um ato de religião é fazer um ato de humanidade.
Quando os homens compreenderem, enfim, que não se deve discutir
sobre coisas que se ignora;
Quando sentirem que um pouco de caridade vale mais que muita
influência e dominação;
Quando todos respeitarem o que o próprio Deus respeita na menor
de suas criaturas: a espontaneidade da obediência e a liberdade do dever;
Então, só haverá uma religião no mundo, a religião cristã e
universal, a verdadeira religião católica que não renegará mais a si própria por
restrição de lugares ou de pessoas.
Mulher, dizia o Salvador à samaritana, em verdade te digo que
virá o tempo em que os homens não adorarão mais a Deus nem em Jerusalém nem
sobre esta montanha, pois Deus é espírito, e seus verdadeiros adoradores devem
servi-lo em espírito e em verdade.
Onze é o número da força; é o da luta e do martírio.
Todo homem que morre por uma idéia é um mártir, pois nele as
aspirações do espírito triunfaram sobre os temores dos animais.
Todo homem que morre na guerra é um mártir, pois morre pelos
outros.
Todo homem que morre miserável é um mártir, pois é como um
soldado vencido na batalha da vida.
Aqueles que morrem pelo direito são tão santos em seu
sacrifício quanto as vítimas do dever e, nas grandes lutas da revolução contra o
poder, os mártires caem dos dois lados.
Sendo o direito a raiz do dever, nosso dever é defender nossos
direitos.
O que é um crime? É o exagero do direito. O assassínio e o
roubo são negações da sociedade; é o despotismo isolado de um indivíduo que
usurpa a realeza e faz guerra por sua conta e risco.
O crime deve ser sem dúvida reprimido, e a sociedade deve
defender-se; mas quem poderia ser justo o suficiente, grande o suficiente e puro
o suficiente para ter a pretensão de punir?
Paz a todos os que tombam na guerra, mesmo na guerra ilegítima,
pois arriscaram a cabeça e perderam-na, e, tendo pago, o que podemos ainda
reclamar?
Honra a todos os que combatem bravamente e lealmente! Vergonha
somente aos traidores e aos covardes!
O Cristo morreu entre dois ladrões e levou consigo um deles ao
céu.
O reino dos céus é dos lutadores e se ganha à força.
Deus dá sua onipotência ao amor. Gosta de triunfar sobre o
ódio, mas vomita a tibieza.
O dever é viver, nem que seja por um instante!
É belo ter reinado por um dia, mesmo por uma hora! Mesmo que
seja sob a espada de Dâmocles ou na fogueira de Sardanapalo.
Mas é mais belo ter visto a seus pés todas as coisas do mundo e
ter dito: Serei o rei dos pobres e meu trono será sobre o calvário.
Existe um homem mais forte do que aquele que mata, é o que
morre para salvar.
Não existem crimes isolados nem expiações solitárias.
Não existem virtudes pessoais nem devotamentos perdidos.
Quem não for irrepreensível é cúmplice de todo mal, e quem não
for absolutamente perverso pode participar de todo bem.
É por isso que um suplício é sempre uma expiação humanitária, e
toda cabeça que é recolhida de um cadafalso pode ser saudada e honrada como a
cabeça de um mártir.
É por isso também que o mais nobre e o mais santo dos mártires
podia, ao entrar em sua consciência, achar-se digno da pena que iria suportar e
dizer, saudando o gládio pronto a feri-lo: Justiça seja feita!
Puras vítimas das catacumbas de Roma, judeus e protestantes
massacrados por indignos cristãos.
Padres da Abbaye e dos Carmes, guilhotinados do terror,
realistas degolados, revolucionários sacrificados, soldados de nossos grandes
exércitos que semeasses as ossadas pelo mundo, vós todos que morresses com
sofrimento, ousados de toda sorte, bravos filhos de Prometeu que não tendes medo
nem do raio nem do abutre, honra a vossas cinzas, paz e veneração a vossas
memórias! Sois os heróis do progresso, os mártires da humanidade!
O doze é o número cíclico; é o do símbolo universal.
Eis uma tradução dos versos feitos para o símbolo mágico e
católico sem restrição:
Creio num só Deus onipotente, nosso pai,
Eterno criador do céu e da terra.
Creio no Rei salvador, chefe da humanidade.
Da divindade, filho, palavra e esplendor.
Concepção viva do eterno amor,
Divindade visível e luz atuante.
Desejado pelo mundo sempre e em todos os lugares.
Mas que não é um Deus separável de Deus.
Descido entre nós para libertar a terra,
Santificou a mulher em sua mãe.
Era o homem celeste, sábio e doce homem.
Nasceu para sofrer e morrer como nós.
Proscrito pela ignorância, acusado pela inveja,
Morreu na cruz para nos dar a vida.
Todos os que o tomarem por guia e apoio
Podem, por sua doutrina, ser Deus como ele.
Ressuscitou para reinar sobre os tempos;
Deve, da ignorância, as nuvens dissipar.
Seus preceitos, um dia mais fortes e mais conhecidos,
Serão o julgamento dos vivos e dos mortos.
Creio no Espírito Santo cujos únicos intérpretes
São o espírito e o coração dos santos e dos profetas.
É um sopro de vida e fecundidade
Que provém da humanidade e do Pai.
Creio na família única e sempre santa
Dos justos que o céu reuniu em seu temor.
Creio na unidade do símbolo, do lugar,
Do pontífice e do culto na honra de um só Deus.
Creio que, em nos transformando, a morte nos renove,
E que em nós, como em Deus, a vida é eterna.
O treze é o número da morte e o do nascimento; é o da
propriedade e da herança, da sociedade e da família, da guerra e dos
tratados.
A sociedade tem por bases as trocas do direito, do dever e da
fé mútua.
O direito é a propriedade; a troca, a necessidade; a boa fé, o
dever.
Aquele que quer receber mais do que dá ou que quer receber sem
dar é um ladrão.
A propriedade é o direito de dispor de uma parte da fortuna
comum; não é nem o direito de destruição nem o direito de seqüestro.
Destruir ou seqüestrar o bem público não é possuir, é
roubar.
Digo bem público, porque o verdadeiro proprietário de todas as
coisas é Deus, que quer que tudo seja de todos. O que quer que façais, não
levareis convosco ao morrer nenhum dos bens deste mundo. Ora, o que vos deve ser
tomado um dia não vos pertence realmente. Foi apenas um empréstimo.
Quanto ao usufruto, é o resultado do trabalho; mas o próprio
trabalho não é uma garantia segura de posse, e a guerra pode vir, pela
devastação ou pelo incêndio, deslocar a propriedade.
Fazei, pois, um bom uso das coisas que perecem, vós que
perecereis antes delas!
Levai em consideração que o egoísmo provoca o egoísmo e que a
imoralidade do rico corresponderá a crimes dos pobres.
O que quer o pobre, se é honesto?
Quer trabalho. Usai vossos direitos, mais fazei vosso dever: o
dever do rico é expandir a riqueza; o bem que não circula está morto, não
entesoureis a morte.
Um sofista disse: A propriedade é o roubo. E queria sem dúvida
falar da propriedade absorvida, subtraída à troca, desviada da utilidade
COMUM.
Se esse era seu pensamento, ele poderia ir mais longe e dizer
que tal supressão da vida pública é um verdadeiro assassínio.
É o crime do açambarcamento, que o instinto público sempre viu
como um crime de lesa-majestade humana.
A família é uma associação natural que resulta do
casamento.
O casamento é a união de dois seres que o amor uniu e que se
prometem um devotamento mútuo no interesse dos filhos que podem nascer.
Dois esposos que têm um filho e se separam são ímpios. Será que
querem executar o julgamento de Salomão e separar também o filho?
Prometer-se um amor eterno é puerilidade: o amor sexual é uma
emoção sem dúvida divina, mas acidental, involuntária e transitória; mas a
promessa do devotamente recíproco é a essência do casamento e o princípio da
família.
A sanção e a garantia dessa promessa devem ser uma confiança
absoluta.
Todo ciúme é uma suspeita, e toda suspeita é um ultraje.
O verdadeiro adultério é o da confiança: a mulher que se queixa
de seu marido perto de outro homem; o homem que confia a outra mulher, que não a
sua, as aflições ou as esperanças de seu coração, esses traem verdadeiramente a
fé conjugal.
As surpresas dos sentidos só são infidelidades por causa dos
arrebatamentos do coração que se abandona mais ou menos ao reconhecimento do
prazer. Afora isso, são faltas humanas, de que é preciso envergonhar-se e que se
deve esconder: são indecências que é preciso evitar afastando as ocasiões, mas
que nunca se deve procurar surpreender; os bons costumes são a proscrição do
escândalo.
Todo escândalo é uma torpeza. Não se é indecente porque tem-se
órgãos que o pudor não nomeia; mas se é obsceno quando são mostrados.
Maridos, escondei as chagas de vossa vida a dois; não desnudeis
vossas mulheres perante o escárnio público!
Mulheres, não exibais as misérias do leito conjugal: seria vos
ínscreverdes na opinião pública como prostituídas.
É preciso uma elevada dignidade de coração para conservar a fé
conjugal: é um pacto de heroismo que somente as grandes almas podem compreender
em toda a extensão.
Os casamentos que são rompidos não são casamentos, são
acasalamentos.
No que se pode transformar uma mulher que abandona o marido?
Não é mais esposa, não é viúva; o que é então? É uma apóstata da honra, que é
forçada a ser licenciosa, porque não é nem virgem nem livre.
Um marido que abandona a mulher a prostitui e merece o nome
infame que é dado aos amantes das jovens perdidas.
O casamento é sagrado, indissolúvel, quando existe
realmente.
Mas só pode existir para seres de elevada inteligência e nobre
coração.
Os animais não se casam, e os homens que vivem como animais
sofrem as fatalidades de sua natureza.
Fazem sem cessar tentativas para agir racionalmente. Suas
promessas são tentativas e simulacros de promessas; seus casamentos, tentativas
e simulacros de casamento; seus amores, tentativas e simulacros de amor.
Quereriam sempre e não querem nunca; começam sempre e não terminam nunca. Para
tais pessoas, as leis só se aplicam pela repressão.
Tais seres podem ter uma ninhada, mas nunca têm uma família: o
casamento, a família são direitos do homem perfeito, do homem emancipado, do
homem inteligente e livre.
Por isso, consultar os anais dos tribunais e lede a história
dos parricidas.
Erguei o véu negro de todas estas cabeças cortadas e
perguntai-lhes o que pensaram do casamento e da família, que leite sugaram, que
carinhos as enobreceram... Depois tremei, vós todos que não dais a vossos filhos
o pão da inteligência e do amor, vós todos que não sancionais a autoridade
paterna pela virtude do bom exemplo...
Esses miseráveis eram órfãos pelo espírito e pelo coração e
vingaram-se de seu nascimento!...
Vivemos num século em que mais do que nunca a família é
desconhecida no que tem de augusta e sagrada: o interesse material mata a
inteligência e o amor; as lições da experiência são desprezadas, regateia-se as
coisas de Deus. A carne insulta o espírito, a fraude ri na cara da lealdade.
Quanto mais ideal, mais justiça: a vida humana ficou órfã dos dois lados.
Coragem e paciência! Este século irá para onde devem ir todos
os culpados. Vede como é triste! O tédio é o véu negro de sua cabeça... a
carroça anda, e a multidão segue estremecendo...
Logo, mais um século será julgado pela história, e será escrito
num túmulo de ruínas: Aqui jaz o século parricida! o século carrasco de Deus e
de seu Cristo!
Na guerra tem-se o direito de matar para não morrer: mas na
batalha da vida, o mais sublime dos direitos é o de morrer para não matar.
A inteligência e o amor devem resistir à opressão até a morte,
nunca até o assassínio.
Homem de coração, a vida daquele que te ofendeu está em tuas
mãos, pois ele é senhor da vida dos outros, o qual não faz questão da sua.
Massacra-o com tua grandeza: perdoa-o!
- Mas será proibido matar o tigre que nos ameaça?
- Se for um tigre com rosto humano, é mais belo deixar-se
devorar, no entanto, aqui, a moral nada prescreve.
- Mas e se o tigre ameaça meus filhos?
- A própria natureza vos responderá.
Harmódio e Aristogiston tinham festas e estátuas na Grécia
antiga. A Bíblia consagrou os nomes de Judite e Aud e uma das mais sublimes
figuras do livro santo, Sansão cego e acorrentado que sacode as colunas do
templo e grita: Que eu morra com os filisteus!
Acreditai, entretanto, que, se Jesus, antes de morrer, tivesse
ido a Roma apunhalar Tibério, teria salvado o mundo como fez ao perdoar seus
carrascos e até mesmo ao morrer por Tibério?
Brutus, ao matar César, salvou a liberdade romana? Ao matar
Calígula, Quéreas apenas deu lugar a Cláudio e a Nero. Protestar contra a
violência com violência é justificá-la e forçá-la a se reproduzir.
Mas triunfar sobre o mal pelo bem, sobre o egoísmo pela
abnegação, sobre a ferocidade pelo perdão: é o segredo do cristianismo e da
vitória eterna.
Eu vi o lugar em que a terra sangrava ainda pelo assassínio de
Abel e nesse lugar passava um regato de pranto.
E miríades de homens avançavam conduzidos pelos séculos,
deixando cair lágrimas no regato.
E a eternidade, agachada e morna, contemplava as lágrimas que
caíam, contava-as uma a uma, e nunca havia o suficiente para lavar uma mancha de
sangue.
Mas, entre duas multidões e duas épocas, veio o Cristo, pálida
e resplandecente figura.
E, na terra do sangue e das lágrimas, plantou a vinha da
fraternidade, e as lágrimas e o sangue aspirados pelas raizes da árvore divina
tornaram-se a seiva deliciosa da uva que deve embriagar de amor os filhos do
futuro.
Catorze é o número da fusão, da associação e da unidade
universal, e é em nome do que representa que faremos aqui um apelo às nações, a
começar pela mais antiga e mais santa.
Filhos de Israel, por que, em meio ao movimento das nações,
continuais imóveis como se guardásseis os túmulos de vossos pais?
Vossos pais não estão mais aqui, ressuscitaram: pois o Deus de
Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos mortos!
Por que imprimis sempre a vossa geração a marca sangrenta do
cutelo?
Deus não quer mais separar-vos dos outros homens; sede nossos
irmãos, e comei conosco hóstias pacíficas nos altares que o sangue nunca
conspurca.
A lei de Moisés está cumprida: lede vossos livros e compreendei
que fostes um povo cego e duro, como dizem todos os vossos profetas.
Mas fostes também um povo corajoso e perseverante na luta.
Filhos de Israel, tornai-vos filhos de Deus: compreendei e
amai!
Deus apagou de vossa fronte a marca de Caim, e os povos ao vos
ver passar não dirão mais: Aí estão os judeus! gritarão: Abram alas para nossos
irmãos, abram alas para os que nos precederam na fé.
E iremos todos os anos comemorar convosco a páscoa na nova
Jerusalém.
E descansaremos debaixo de vossa videira e de vossa figueira;
pois sereis ainda amigos do viajante, em memória de Abraão, de Tobias e dos
anjos que os visitavam.
E em memória daquele que disse: Quem ao menor dentre vós recebe
a mim me recebe.
Pois doravante não recusareis mais um asilo em vossa casa e em
vosso coração a vosso irmão José que vendesses às nações.
Porque ele se tornou poderoso na terra do Egito onde
procuráveis pão durante os dias de esterilidade.
E ele recordou-se de seu pai Jacó e de Benjamim, seu jovem
irmão; e perdoa vossa inveja e vos abraça chorando.
Filhos dos crentes, cantaremos convosco: não existe outro Deus
senão Deus e Maomé é seu profeta.
Dizei com os filhos de Israel: Nenhum Deus existe senão Deus e
Moisés é seu profeta!
Dizei com os cristãos: Não existe outro Deus senão Deus e Jesus
Cristo é seu profeta!
Maomé é a sombra de Moisés. Moisés é o precursor de Jesus.
O que é um profeta? É um representante da humanidade que
procura Deus. Deus é Deus, o homem é o profeta de Deus quando faz que
acreditemos em Deus.
A Bíblia, o Alcorão e o Evangelho são três traduções diferentes
do mesmo livro. Há somente uma lei como há somente um Deus.
Ó mulher idealizada, ó recompensa dos eleitos, és mais bela do
que Maria?
Ó Maria, filha do Oriente, casta como o puro amor, grande como
as aspirações maternais, vem ensinar aos filhos do Islã os mistérios do céu e os
segredos da beleza.
Convida-os para o festim da nova aliança, lá, em três tronos
resplandecentes de pedrarias, três profetas estarão sentados.
A árvore tuba fará de seus galhos recurvados um dossel para a
mesa celeste.
A esposa será branca como a lua e rubra como o sorriso da
manhã.
Todos os povos acorrerão para vê-Ia e não temerão mais passar
Al Sirah, pois, sobre essa ponte cortante como uma lâmina de barbear, o Salvador
estenderá sua cruz e virá estender a mão aos que vacilarem, e aos que caírem a
esposa estenderá seu véu perfumado e os trará em sua direção.
Povos, batei palmas e aplaudi o último triunfo do amor! Somente
a morte ficará morta e somente o inferno será queimado.
Ó nações da Europa, a quem o Oriente estende as mãos, uni-vos
para expulsar os ursos do Norte! Que a última guerra faça triunfar a
inteligência e o amor, que o comércio entrelace os braços do mundo e que uma
civilização nova, saída do Evangelho armado, reúna todos os rebanhos da terra
sob o cajado do mesmo pastor!
Tais serão as conquistas do progresso; tal é o objetivo para o
qual nos empurra todo o movimento do mundo.
O progresso é o movimento; e o movimento é a vida.
Negar o progresso é afirmar o nada e deificar a morte.
O progresso é a única resposta que a razão pode opor às
objeções relativas à existência do mal.
Nada está bem, mas tudo estará bem um dia. Deus inicia e
acabará sua obra.
Sem o progresso, o mal seria imutável como Deus!
O progresso explica as ruínas e consola Jeremias que chora.
As nações sucedem-se como os homens e nada é estável porque
tudo caminha em direção da perfeição.
O grande homem que morre lega a sua pátria o fruto de seu
trabalho; a grande nação que se extingue na terra transfigura-se numa estrela
para iluminar as obscuridades da história.
O que ele escreveu por suas ações fica gravado no livro eterno;
acrescentou uma página à bíblia do gênero humano.
Não digais que a civilização é má; pois assemelha-se ao calor
úmido que amadurece as colheitas, desenvolve rapidamente os princípios da vida e
os princípios da morte, mata e vivifica.
É como o anjo do julgamento que separa os maus dos bons.
A civilização transforma em anjos de luz os homens de boa
vontade e coloca o egoísta abaixo da besta; é a corrupção dos corpos e a
emancipação das almas.
O mundo ímpio dos gigantes elevou ao céu a alma de Henoch;
acima das bacanais da Grécia primitiva eleva-se o espírito harmonioso de
Orfeu.
Sócrates e Pitágoras, Platão e Aristóteles resumem, ao
explicá-las, todas as aspirações do mundo antigo; as fábulas de Homero
permanecem mais verdadeiras do que a história, e só nos restam das grandezas de
Roma os escritos imortais que elaborou o século de Augusto.
Assim, Roma talvez só tenha abalado o mundo com suas guerreiras
convulsões para gerar seu Virgílio.
O cristianismo é o fruto das meditações de todos os sábios do
Oriente que revivem em Jesus Cristo.
Assim, a luz dos espíritos nasceu onde nasce o sol do mundo; o
Cristo conquistou o Ocidente, e os doces raios do sol da Ásia tocaram os gelos
do Norte.
Movidos por esse calor desconhecido, formigueiros de homens
novos espalharam-se por um mundo exaurido; as almas dos povos mortos brilharam
sobre os povos rejuvenescidos e aumentaram neles o espírito de vida.
Há no mundo uma nação que se chama franqueza e liberdade, pois
essas duas palavras são sinônimos do nome França.
Essa nação sempre foi, de algum modo, mais católica do que o
papa e mais protestante do que Lutero.
A França das cruzadas, a França dos trovadores e das canções, a
França de Rabelais e de Voltaire, a França de Bossuet e de Pascal, ela é a
síntese dos povos; ela consagra a aliança da razão e da fé, da revolução e do
poder, da crença mais terna e da dignidade humana mais altiva.
Por isso, vede como ela caminha, como se agita, como luta, como
cresce!
Freqüentemente enganada e ferida, nunca batida, entusiasta com
seus triunfos, audaciosa em seus reveses, ela ri, canta, morre e ensina ao mundo
a fé na sua imortalidade.
A velha guarda não se rende, mas também não morre. Confiai no
entusiasmo de nossos filhos, que querem ser um dia, eles também, soldados da
velha guarda!
Napoleão não é mais um homem, é o próprio gênio da França, é o
segundo salvador do mundo, e também deu como símbolo a seus apóstolos a
cruz!
Santa Helena e o Gólgota são os marcos da nova civilização, são
os pilares de uma imensa arcada que o arco-íris do último dilúvio forma e que
lança uma ponte entre dois mundos.
E pensaríeis que a espora de um tártaro quebrará um dia o pacto
de nossas glórias, o testamento de nossa liberdade!
Dizei antes que voltaremos a ser crianças e retornaremos ao
seio de nossas mães!
Caminha!, caminha!, diz a voz divina a Aasveros. Avança!
avança! grita para a França o destino do mundo!... E para onde vamos? Para o
desconhecido, para o abismo talvez; não importa! Mas para o passado, para os
cemitérios do esquecimento, mas para os cueiros que nossa própria infância
rasgou, mas para a imbecilidade e a ignorância das primeiras idades... nunca!
nunca!
Quinze é o número do antagonismo e da catolicidade.
O cristianismo divide-se agora em duas Igrejas: a Igreja
civilizadora e a Igreja bárbara, a Igreja progressista e a Igreja
estacionária.
Uma é ativa, a outra é passiva; uma sempre condenou as nações e
os governos, uma vez que os reis a temem; a outra submeteu-se a todos os
despotismos e só pode ser um instrumento de servidão.
A Igreja ativa realiza Deus pelos homens e só ela crê na
divindade do Verbo humano, intérprete do Verbo de Deus.
O que é, afinal de contas, a infalibilidade do papa, senão a
autocracia da inteligência confirmada pelo sufrágio universal da fé?
A esse respeito, dir-se-á, o papa deveria ser o primeiro gênio
de seu século. Por quê? É melhor, na realidade, que ele seja um espírito comum.
Sua supremacia não é mais divina, porque é, de algum modo, mais humana.
Os acontecimentos não falam mais alto do que os rancores e as
ignorâncias irreligiosas? Não vedes a França católica sustentar com uma mão o
papado desfalecido e com a outra segurar a espada para combater na liderança do
exército do progresso?
Católicos, israelitas, turcos, protestantes já combateram sob a
mesma bandeira; o crescente uniu-se à cruz latina, e juntos lutamos contra a
invasão dos bárbaros e contra sua embrutecida ortodoxia.
É para sempre um fato consumado. Ao admitir dogmas novos, a
cátedra de São Pedro acaba de se pronunciar solenemente progressiva.
A pátria do cristianismo católico é a da ciência e das
belas-artes, e o Verbo eterno do Evangelho vivo e encarnado numa autoridade
visível é ainda a luz do mundo.
Silêncio pois aos fariseus da nova sinagoga! Silêncio às
tradições odiosas da escola, ao presbiterianismo arrogante, ao jansenismo
absurdo e a todas estas vergonhosas e supersticiosas interpretações do dogma
eterno, tão justamente estigmatizadas pelo gênio impiedoso de Voltaire!
Voltaire e Napoleão morreram católicos. E será que sabeis o que
deve ser o catolicismo do futuro?
Será o dogma evangélico posto à prova como ouro pela crítica
dissolvente de Voltaire, e realizado no governo do mundo pelo gênio de um
Napoleão cristão!
Os que não quiserem caminhar, os acontecimentos os arrastarão
ou passarão sobre eles!
Imensas calamidades podem ainda pesar sobre o mundo. Os
exércitos do Apocalipse um dia talvez desencadearão os quatro flagelos. O
santuário será depurado. A santa e severa pobreza enviará seus apóstolos para
sustentar todo aquele que cambalear, reanimar aquele que estiver fatigado e
espalhar o óleo santo em todas as feridas!
O despotismo e a anarquia, esses dois monstros ávidos de
sangue, dilacerar-se-ão e aniquilar-se-ão um ao outro depois de serem mutuamente
sustentados, por pouco tempo, pelo próprio entrelaçamento de sua luta.
E o governo do futuro será aquele cujo modelo é mostrado na
natureza pela família, no ideal religioso pela hierarquia dos pastores. Os
eleitos devem reinar com Jesus Cristo durante mil anos, dizem as tradições
apostólicas: ou seja, durante uma seqüência de séculos, a inteligência e o amor
dos homens de elite dedicados aos encargos do poder administrarão os interesses
e os bens da família universal.
Então, segundo a promessa do Evangelho só haverá um rebanho e
um pastor.
Dezesseis é o número do templo.
Digamos o que será o templo do futuro.
Quando o espírito de inteligência e de amor tiver se revelado,
toda trindade manifestar-se-á em sua verdade e em sua glória.
A humanidade transformada em rainha e, como que ressuscitada,
terá a graça da infância em sua poesia, o vigor da juventude em sua razao e a
sabedoria da idade madura em suas obras.
Todas as formas que o pensamento divino revestiu sucessivamente
renascerão imortais e perfeitas.
Todos os traços que a arte sucessiva das nações tinha esboçado
reunir-se-ão e formarão a imagem completa de Deus.
Jerusalém reconstruirá o templo de Jeová de acordo com o modelo
profetizado por Ezequiel; e o Cristo, novo e eterno Salomão, nele cantará,
debaixo de lambris de cedro e de ciprestes, suas núpcias com a santa liberdade,
a jovem esposa do cântico.
Mas Jeová terá largado seu raio para abençoar com as duas mãos
o noivo e a noiva: aparecerá sorridente entre os dois esposos e alegrar-se-á por
ser chamado de pai.
Entretanto, a poesia do Oriente, em suas mágicas lembranças,
ainda o chamará de Brama e Júpiter. A índia ensinará a nossos climas encantados
as fábulas maravilhosas de Vishnu, e experimentaremos na fronte ainda
ensangüentada de nosso Cristo bem-amado a tripla coroa de pérolas da mística
trimurti. Vênus purificada sob o véu de Maria não mais chorará seu Adônis.
O esposo ressuscitou para não mais morrer, e o javali infernal
encontrou a morte em sua passageira vitória.
Reerguei-vos, templos de Delfos e Éfeso! O deus da luz e das
artes tornou-se o Deus do mundo, e o verbo de Deus concorda em ser chamado de
Apolo! Diana não reinará mais como viúva nos campos solitários da noite; seu
crescente prateado está agora sob os pés da esposa.
Mas Diana não foi vencida por Vênus; seu Endimião acaba de
despertar, e a virgindade vai orgulhar-se de ser mãe!
Sai da tumba, ó Fídias, e alegra-te com a destruição de teu
primeiro Júpiter: é agora que vais gerar um Deus!
Ó Roma! Que teus templos reergam-se ao lado de tuas basílicas;
sê ainda a rainha do mundo e panteão das nações; que Virgílio seja coroado
no capitólio pelas mãos de São Pedro; e que o Olimpo e o Carmelo unam suas
divindades sob o pincel de Rafael!
Transfigurai-vos, antigas catedrais de nossos pais; arremessei
até as nuvens vossas flechas cinzeladas e vivas, e que a pedra conte por figuras
animadas as sombrias lendas do Norte, alegradas pelos apólogos dourados e
maravilhosos do Alcorão!
Que o Oriente adore Jesus Cristo em suas mesquitas, e que nos
minaretes de uma nova Santa Sofia a cruz se eleve em meio ao crescente!
Que Maomé liberte a mulher para dar ao verdadeiro crente as
huris com que tanto sonhou, e que os mártires do Salvador ensinem castas
carícias aos belos anjos de Maomé.
Toda a terra revestida com os ricos ornamentos que todas as
artes lhe bordaram será então um templo magnífico, cujo padre eterno será o
homem!
Tudo o que foi verdadeiro, tudo o que foi belo, tudo o que foi
doce nos séculos passados reviverá gloriosamente nessa transfiguração do
mundo.
E a forma bela continuará inseparável da idéia verdadeira, como
o corpo será um dia inseparável da alma, quando a alma, tendo alcançado todo o
seu poder, terá feito para si um corpo à sua imagem.
Esse será o reino do céu sobre a terra, e os corpos serão os
templos da alma, da mesma forma que o universo regenerado será o templo de
Deus.
E os corpos e as almas, e a forma e o pensamento, e o universo
inteiro serão a luz, o Verbo e a revelação permanente e visível de Deus. Amém!
Assim seja!
Dezessete é o número da estrela; é o da inteligência e do
amor.
Inteligência guerreira, audaciosa, cúmplice do divino Prometeu,
primogênita de Lúcifer, louvor a ti em tua audácia! Quiseste saber para ter,
desafiaste todos os trovões e afrontaste todos os abismos!
Inteligência, tu a quem os pobres pecadores amaram até o
delírio, até o escândalo, até a reprovação! Direito divino do homem, essência e
alma da liberdade, louvor a ti! Pois perseguiram-te pisoteando, por ti, todos os
sonhos mais caros de sua imaginação, os fantasmas mais amados de seu
coração!
Por ti foram repelidos e proscritos; por ti suportaram a
prisão, o desenlace, a fome, a sede, o abandono daqueles que amavam e as
sombrias tentações do desespero! Eras o direito deles, e eles conquistaram-te!
Agora eles podem chorar e crer, podem submeter-se e rezar!
Caim arrependido teria sido maior do que Abel: é o legítimo
orgulho satisfeito que tem o direito de se fazer humilde!
Creio porque sei por que e como é preciso crer; creio porque
amo e porque não temo mais nada. Amor! amor! redentor e reparador sublime; tu
que fazes tanta felicidade de tantas torturas, tu, o sacrificador do sangue e
das lágrimas, tu que és a própria virtude e o salário da virtude; força da
resignação, liberdade da obediência, alegria das dores, vida da morte, louvor,
louvor e glória a ti! Se a inteligência é uma lâmpada, és a sua chama; se é o
direito, és o dever; se é a nobreza, és a felicidade! Amor pleno de orgulho e
pudor nos mistérios, amor divino, amor oculto, amor insano e sublime, Titã que
toma o céu com duas mãos e que o força a descer, último e inefável segredo da
viuvez cristã, amor eterno, amor infinito e ideal que seria suficiente para
criar mundos, amor! amor! bênção e glória a ti! Glória às inteligências que se
encobrem para não ofender os olhos doentes! Glória ao direito que se transforma
inteiramente em dever e que se torna a devoção! às almas viúvas que amam e
consumam-se sem serem amadas! aos que sofrem e não fazem nada sofrer, aos que
perdoam os ingratos, aos que amam seus inimigos! Oh! felizes sempre, felizes
mais do que nunca os que se empobrecem e que se esgotam para se dar! Felizes as
almas que fazem sempre tua paz! Felizes os corações puros e simples que não se
acham melhor do que ninguém! Humanidade minha mãe, humanidade filha e mãe de
Deus, humanidade concebida sem pecado, Igreja universal, Maria! Feliz de quem
tudo ousou para te conhecer e te entender, e de quem está pronto a tudo sofrer
para te servir e te amar!
Esse número é o do dogma religioso, que é toda poesia e todo
mistério.
O Evangelho diz que, quando da morte do Salvador, o véu do
templo rasgou-se, porque essa morte manifestou o triunfo da devoção, o milagre
da caridade, o poder de Deus no homem, a humanidade divina e a divindade humana,
o último e o mais sublime dos arcanos, a última palavra de todas as
iniciações.
Mas o Salvador sabia que não seria compreendido a princípio, e
disse: Não suportaríeis agora toda a luz de minha doutrina; mas, quando se
manifestar o espírito de verdade, ele vos ensinará toda verdade e sugerirá o
sentido do que eu vos disse.
Ora, o espírito de verdade é o espírito de ciência e de
inteligência, o espírito de força e de conselho.
Foi esse espírito que se manifestou solenemente na Igreja
romana, quando ela declarou nos quatro artigos do decreto de 12 de dezembro de
1845:
1º Que, se a fé for superior à razão, a razão deve apoiar as
inspirações da fé;
2º Que a fé e a ciência tem cada uma seu domínio separado, e
que uma não deve usurpar as funções da outra;
3º Que é próprio da fé e da graça não enfraquecer, mas, ao
contrário, afirmar e desenvolver a razão;
4º Que o concurso da razão, que examina não as decisões da fé
mas as bases naturais e racionais da autoridade que decide, longe de prejudicar
a fé, não poderia senão ser-lhe útil; em outras palavras, que a fé,
perfeitamente racional em seus princípios, não deve temer, mas deve, ao
contrário, desejar o exame sincero da razão.
Semelhante decreto é toda uma revolução religiosa acabada, e a
inauguração do Espírito Santo na terra.
É o número da luz.
É a existência de Deus provada pela própria idéia de Deus.
Ou é preciso dizer que o Ser imenso é um túmulo universal, ou
que se move automaticamente, uma forma sempre morta e cadavérica, ou é preciso
admitir o princípio absoluto da inteligência e da vida.
A luz universal está morta ou viva? Fatalmente dedicada à obra
da destruição ou providencialmente dirigida para a criação universal?
Se Deus não existe, a inteligência é apenas uma decepção pois
ela carece de absoluto e seu ideal é uma mentira.
Sem Deus, o ser é um nada que se afirma, e a vida, uma morte
que se disfarça.
A luz é uma noite sempre enganada pela miragem dos sonhos.
O primeiro e o mais essencial ato de fé é pois este.
O Ser é, e o ser do ser, a verdade do ser é Deus.
O Ser é vivo com inteligência, e a inteligência viva do Ser
absoluto é Deus.
A luz é real e vivificante; ora, a realidade e a vida de toda
luz é Deus.
O Verbo da razão universal é uma afirmação e não uma
negação.
Cegos os que não vêem que a luz física é apenas o instrumento
do pensamento!
Somente o pensamento vê a luz e a produz empregando-a em
benefício próprio.
A afirmação do ateísmo é o dogma da noite eterna; a afirmação
de Deus é o dogma da luz!
Vamos parar aqui, no décimo nono número, embora o alfabeto
sagrado tenha vinte e duas letras; as dezenove primeiras são as chaves da
teologia oculta. As outras são as chaves da natureza; voltaremos a elas na
terceira parte desta obra.
Resumamos o que dissemos de Deus citando uma bela evocação
emprestada da liturgia israelita. É uma página do Kether-Malkuth, poema
cabalístico do rabino Salomão, filho de Gabirol.
"Sois um, o começo de todos os números, o fundamento de todos
os edifícios; sois um e, no segredo de vossa unidade, os homens mais sábios
perdem-se porque não a conhecem. Sois um, e vossa unidade nunca diminui, nem
aumenta, nem sofre nenhuma alteração. Sois um, mas não como o um em matéria de
cálculo, pois vossa unidade não admite nem multiplicação, nem mudança, nem
fórmula. Sois um, para quem nenhuma de minhas fantasias pode fixar definição:
eis por que vigiarei minha conduta, evitando cometer faltas com a língua. Sois
um enfim, cuja excelência é tão elevada que não pode cair de maneira alguma, e
não como em um que pode deixar de ser.
"Sois existente; entretanto, o entendimento e a vista dos
mortais não podem atingir vossa existência nem colocar em vós o onde, o como e o
porquê. Sois existente, mas em vós mesmo, uma vez que outro não pode existir
convosco. Sois existente desde antes do tempo e em lugar algum. Sois enfim
existente e vossa existência é tão oculta e tão profunda que ninguém pode
descobri-Ia ou penetrar seu segredo.
"Sois vivo, mas não desde um tempo conhecido e fixo; sois vivo,
mas não por um espírito e uma alma; pois sois a alma de todas as almas. Sois
vivo, mas não como as vidas dos mortais, que são comparadas a um sopro, e cujo
fim será o alimento dos vermes. Sois vivo, e aquele que puder atingir vossos
mistérios desfrutará as delícias eternas e viverá para sempre.
"Sois grande, e perto de vossa grandeza todas estas grandezas
se curvam, e tudo o que há de mais excelente torna-se defeituoso. Sois grande,
acima de qualquer imaginação, e elevai-vos acima de todas as hierarquias
celestes. Sois grande, acima de toda grandeza, e sois exaltado acima de qualquer
louvor. Sois forte, e nenhuma de vossas criaturas fará as obras que fazeis e nem
sua força poderá ser comparada à vossa. Sois forte, e é a vós que pertence essa
força invencível que não muda nem se altera nunca. Sois forte, e por vossa
magnanimidade perdoais no momento de vossa mais ardente cólera, e mostrai-vos
paciente para com os pecadores. Sois forte, e vossas misericórdias que sempre
existiram estendem-se para todas as vossas criaturas. Sois a luz eterna que as
almas puras verão e que a nuvem dos pecados ocultará aos olhos dos pecadores.
Sois a luz que é oculta neste mundo e visível no outro, onde a glória do Senhor
se mostra. Sois soberano, e os olhos do entendimento que desejam vervos estão
inteiramente espantados por só poderem atingir de vós uma parte e nunca o todo.
Sois o Deus dos deuses, testemunham-no todas vossas criaturas; e em honra desse
grande nome todas devem render-vos culto. Sois Deus, e todas as criaturas são
vossas servidoras e vossas adoradoras; vossa glória não é embaçada mesmo que
outros sejam adorados, porque a intenção deles é a de se dirigir a vós; são como
cegos, cujo objetivo é seguir o grande caminho, e perdem-se. Um afoga-se num
poço e o outro cai numa fossa; todos, em geral, acreditam ter alcançado seus
desejos e, no entanto, cansaram-se em vão. Mas vossos servidores são como
clarividentes que andam num caminho seguro, e que dele nunca se afastam, nem à
direita, nem à esquerda, até que entrem no adro do palácio do rei. Sois Deus que
sustentais por vossa deidade todos os seres e que socorreis por vossa unidade
todas as criaturas. Sois Deus, e não há diferença entre vossa deidade, vossa
unidade, vossa eternidade e vossa existência; pois tudo é um mesmo mistério; e,
embora os nomes variem, tudo retorna ao mesmo. Sois sábio, e essa ciência, que é
a fonte da vida, emana de vós mesmo; e em comparação com vossa ciência os homens
mais sábios são estúpidos. Sois sábio e o antigo dos antigos, e a ciência sempre
alimentou-se convosco. Sois sábio, e não aprendesses a ciência com ninguém, e
tampouco a adquirisses de outro senão de vós. Sois sábio e, como um operário e
um arquiteto, reservasses de vossa ciência uma divina vontade, num tempo marcado
para atrair o ser do nada; do mesmo modo que a luz que sai dos olhos é atraída
de seu próprio centro sem nenhum instrumento ou ferramenta. Essa divina vontade
cavou, traçou, purificou e fundiu; ordenou ao nada abrir-se, ao ser
aprofundar-se e ao mundo estender-se. Mediu os céus com o palmo, com seu poder
reuniu o pavilhão das esferas, com o laço de seu poder cerrou as cortinas das
criaturas do universo e, tocando com sua força a ponta da cortina da criação,
uniu a parte superior à inferior."
Extraído das orações do Kippur
Demos a essas ousadas especulações cabalísticas a única forma
que lhes convém, a da poesia ou da inspiração do coração.
As almas crentes não precisam das hipóteses racionais contidas
nessa explicação nova das figuras da Bíblia, mas os corações sinceros e
afligidos pela dúvida, e que a crítica do século dezoito atormenta,
compreenderão ao lê-la que a própria razão sem a fé pode encontrar no livro
sagrado outra coisa além de escolhos; se os véus com que os textos divinos são
cobertos projetam uma grande sombra, essa sombra é tão maravilhosamente
desenhada pelas oposições da luz que se torna a única imagem inteligível de um
ideal divino.
Ideal incompreensível como o infinito e indispensável como a
própria essência do mistério.
Nenhum comentário:
Postar um comentário