A religião existe na humanidade como no amor.
É única como ele.
Como ele, existe ou não existe nesta ou naquela alma; mas, seja
aceita ou negada, está na humanidade, está, portanto, na vida, está na natureza,
é incontestável diante da ciência e mesmo diante da razão.
A verdadeira religião é a que sempre existiu, que existe e que
sempre existirá.
Podem-nos dizer que a religião é isto ou aquilo; a religião é o
que é. A religião é ela, e as falsas religiões são superstições dela copiadas,
dela emprestadas, sombras mentirosas dela própria.
Pode-se dizer da religião o que se diz da arte verdadeira. As
tentativas bárbaras de pintura ou escultura são tentativas da ignorância para se
chegar à verdade. A arte prova-se por si, brilha com seu próprio esplendor, é
única e eterna como a beleza.
A verdadeira religião é bela, e é por esse caráter divino que
se impõe aos respeitos da ciência e ao assentimento da razão.
A ciência não poderia, sem temeridade, afirmar ou negar as
hipóteses do dogma que são verdades para a fé; mas pode reconhecer, em certos
aspectos, a única religião verdadeira, ou seja, a única que merece o nome de
religião, reunindo todos os aspectos que convêm a essa grande e universal
aspiração da alma humana.
Uma só coisa evidentemente divina manifestou-se para todos no
mundo.
É a caridade.
A obra da verdadeira religião deve ser a de produzir, conservar
e difundir o espírito de caridade. Para alcançar esse objetivo, é preciso que
ela própria tenha todas as características da caridade, de modo que se possa bem
defini-la, nomeando-a de caridade organizada.
Ora, quais são as características da caridade?
É São Paulo quem vai nos ensinar.
A caridade é paciente.
Paciente como Deus, porque ela é eterna como ele. Sofre as
perseguições e nunca persegue ninguém.
É benevolente e indulgente, chamando para si os pequenos e não
rechaçando os grandes.
Não é invejosa. A quem e a que invejaria, não tem a melhor
parte que nunca lhe será tirada?
Não é nem inquieta e nem intrigante.
Não tem orgulho, ambição, egoísmo, ira.
Nunca supõe o mal e nunca triunfa pela injustiça, pois põe toda
sua alegria na verdade.
Suporta tudo sem jamais tolerar o mal.
Crê em tudo, sua fé é simples, submissa, hierárquica e
universal.
Sustenta tudo, e nunca impõe fardos que não carregasse
antes.
A religião é paciente, é a religião dos grandes trabalhadores
do pensamento: é a religião dos mártires.
É benevolente como o Cristo e os apóstolos, como os Vicentes de
Paulo e os Fenelons.
Não deseja nem as dignidades nem os bens da terra. É a religião
dos pais do deserto, de São Francisco de Assis e de São Bruno, das irmãs de
caridade e dos irmão de São João de Deus.
Não é nem inquieta nem intrigante, ela reza, faz o bem e
espera. É humilde, é doce, só inspira a devoção e o sacrifício. Tem, enfim,
todas as características da caridade, porque é a própria caridade.
Os homens, ao contrário, são impacientes, perseguidores,
invejosos, cruéis, ambiciosos, injustos e mostram-se como tais em nome dessa
religião que puderam caluniar, mas que nunca obrigarão a mentir. Os homens
passam, e a verdade é eterna.
Filha da caridade e criando por sua vez a caridade, a
verdadeira religião é essencialmente realizadora; acredita nos milagres da fé,
porque os cumpre todos os dias quando faz a caridade. Uma religião que faz a
caridade pode vangloriar-se de realizar todos os sonhos do amor divino. Assim, a
fé da Igreja hierárquica transforma o mistério em realismo pela eficácia de seus
sacramentos. Não mais signos, não mais figuras que não tenham sua força na graça
e que não dêem realmente o que prometem. A fé anima tudo, torna tudo de algum
modo visível e palpável; as próprias parábolas de Jesus Cristo tomam um corpo e
uma alma. Mostra-se em Jerusalém a casa do mau rico. Os simbolismos esparsos das
religiões primitivas, abandonados pela ciência e privados da vida da fé,
assemelhavam-se a essas ossadas embranquecidas que cobriam o campo de Ezequiel.
O espírito do Salvador, o espírito de fé, o espírito de caridade sopraram esse
pó, e tudo o que estava morto recuperou uma vida tão real que não se reconhece
mais nesses vivos de hoje os cadáveres de ontem.
Grande Pantáculo tirado da visão de São João
E por que seriam reconhecidos, uma vez que o mundo renovou-se,
uma vez que São Paulo queimou no Éfeso os livros dos hierofantes. São Paulo era
pois um bárbaro, e não estava cometendo um atentado contra a ciência? Não, mas
ele queimava os sudários dos ressuscitados para fazê-los esquecer a morte. Por
que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que então
lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que relacionamos as figuras
da Bíblia com as alegorias de Hermes? Será para condenar São Paulo, para trazer
a dúvida aos crentes? Certamente não, pois os crentes não necessitam de nosso
livro, não o lerão, não o quererão compreender. Mas queremos mostrar à multidão
inumerável dos que duvidam que a fé relaciona-se à razão de todos os séculos, à
ciência de todos os sábios. Queremos forçar a liberdade humana e respeitar a
autoridade divina, a razão a reconhecer as bases da fé, para que a fé e a
autoridade, por sua vez, nunca mais proscrevam nem a liberdade nem a razão.
Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé é
absoluta e necessariamente o mistério.
Para formular suas aspirações, a fé é forçada a emprestar do
conhecido aspirações e imagens.
Mas ela especializa o emprego dessas formas ao reuni-las de uma
maneira impossível na ordem conhecida. Tal é a profunda razão do aparente
absurdo do simbolismo.
Demos um exemplo:
Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí
que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa.
Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente
seria representado sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo.
Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe
em Deus a unidade e o número.
A fórmula do mistério exclui necessariamente a própria
inteligência dessa fórmula, na medida em que empresta do Verbo coisas
conhecidas, pois se fosse compreendida exprimiria o conhecido e não o
desconhecido.
Pertenceria, então, à ciência e não mais à religião, isto é, à
fé.
O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa aos
procedimentos de nossa álgebra.
As matemáticas absolutas provam somente a necessidade e, por
conseguinte, a existência desse conhecido representado pelo x intraduzível.
Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido,
mas sempre relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a
expressão completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno.
Fazer entrar na lógica do conhecido os termos de uma profissão
de fé é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo, isto é, a
impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido.
Para os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive
nas criaturas, é um egoísmo infinito.
Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos
prosternamos sobre a fé de Maomé.
Para os cristãos, Deus revelou-se na humanidade, prova-se pela
caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia.
A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito
quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão, ou melhor, de sua
desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por esse mesmo fato, o espírito
de caridade, excomungaram a si próprios.
O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome
resumindo todas as aspirações religiosas do mundo; ele afirma a unidade de Deus
com Moisés e Maomé, reconhece em si a trindade infinita da geração eterna com
Zoroastro, Hermes e Platão, concilia com o Verbo único de São João os números
vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão podem constatar. É portanto
diante da própria razão e diante da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o
mais perfeito que alguma vez se produziu no mundo. Que a ciência e a razão nos
concedam isso, não lhes pediremos mais nada.
Substituir o despotismo legítimo da lei pelo arbitrário humano,
pôr, em outras palavras, a tirania no lugar da autoridade é obra de todos os
protestantismos e de todas as democracias. O que os homens chamam de liberdade é
a sanção da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não sancionado
pela autoridade.
João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar
o direito de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou
de um Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um
antipapa mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado
legítimo.
A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para
a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa
divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão toda
afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica, porque Jesus Cristo não
poderia ser um Deus separado.
Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.
Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a
existência do sol?
A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que
não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta desse dogma. Ora, se
a moral é uma luz, é preciso que o dogma seja um sol, a claridade não vem das
trevas.
Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado,
só há um meio possível: o mistério da santíssima trindade.
Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há um meio
possível: o mistério da encarnação.
Entre a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que
decidiria pela danação de todos os seres, só há um meio possível: o mistério da
redenção.
A trindade é a fé.
A encarnação é a esperança.
A redenção é a caridade.
A trindade é a hierarquia.
A encarnação é a autoridade divina da Igreja.
A redenção é o sacerdócio único, infalível, indefectível e
católico.
Somente a Igreja católica possui um dogma invariável e
encontra-se por sua própria constituição na impossibilidade de corromper a
moral; ela não inova, explica. Assim, por exemplo, o dogma da imaculada
concepção não é novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de
Éfeso, e o Théotokon é uma conseqüência rigorosa do dogma católico da
encarnação.
Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões, ela as
declara e só ela as pode declarar, porque é a única guardiã da unidade.
Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes
assemelham-se às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para
evitar o enjôo.
E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica,
que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.
Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem
fosse capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado Deus. A
caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é então que se pode gritar
com o Salvador do mundo: Felizes os que têm o coração puro, pois verão a
Deus!
Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de todos
os mistérios
As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser
feitas seja em nome da razão, seja em nome da fé.
A ciência não pode negar os fatos da existência da religião, de
seu estabelecimento e de sua influência sobre os acontecimentos da história. É
proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence inteiramente à fé.
A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série de
fatos que tem o direito de apreciar, que de fato aprecia com severidade, mas que
a religião condena mais energicamente ainda do que a ciência.
Assim fazendo, a ciência dá razão à religião e censura a si
própria; carece de lógica, acusa a desordem que toda paixão rancorosa introduz
no espírito dos homens e a necessidade incessante que ele tem de ser reerguido e
dirigido pelo espírito de caridade.
A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o
absurdo.
Mas, se não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o
compreendesse, não seria mais a fórmula do desconhecido.
Seria uma demonstração matemática do infinito.
Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o
incomensurável medido, o indizível nomeado.
Isso quer dizer que o dogma só deixaria de ser absurdo diante
da razão, para se tornar, diante da fé, da ciência, da razão e do bom senso
reunidos, o mais monstruoso e o mais impossível de todos os absurdos.
Restam as objeções da fé dissidente.
Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos
atentado contra a unidade de Deus, por termos mudado uma lei imutável e eterna,
por adorarmos a criatura no lugar do criador.
Essas censuras são fundamentadas numa noção perfeitamente falsa
do cristianismo.
Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito,
o só adorável e sempre o mesmo.
Como os judeus, acreditamo-lo presente em todos os lugares,
mas, como eles deveriam fazer, acredítamo-lo vivo, pensante e amante na
humanidade e adoramo-lo em suas obras.
Não mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também a
lei dos cristãos.
A lei é imutável, porque está fundamentada em princípios
eternos da natureza; mas o culto exigido pelas necessidades do homem pode variar
e modificar-se com os homens.
O que o culto significa é imutável, mas o culto modifica-se
como as línguas.
O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso traduzi-lo
quando as nações não o compreendem mais.
Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos
profetas.
Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria
criação.
Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas
Deus unido à humanidade.
Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a
divindade humana.
O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam
em suas obras.
Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No
que acreditam, acreditamos com eles e melhor que eles. Acusam-nos de estarmos
separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar separados de nós.
Esperamo-los de coração e braços abertos.
Somos, como eles, discípulos de Moisés.
Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós
estamos na terra prometida, e eles obstinam-se em permanecer e morrer no
deserto.
Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são seus
filhos deserdados, como Esaú.
Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um grande
profeta, e tratam os cristãos como infiéis.
Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem os judeus
como irmãos.
Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o
inimigo do progresso e da liberdade.
Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado a
unidade de Deus entre os árabes idólatras.
Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.
É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de
Ismael: Não existe outro Deus senão Deus, e Maomé é seu profeta.
Há três tronos no céu para os três profetas das nações; mas, no
fim dos tempos, Maomé será substituído por Elias.
Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles
injuriam-nos.
Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães.
Não temos nada a lhes responder.
Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso
instruí-los e civilizá-los.
Restam os cristãos dissidentes, isto é, aqueles que, tendo
rompido o laço de união, declaram-se estrangeiros à caridade da Igreja.
A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não cresceu
desde sua separação, que não tem mais importância nos faustos religiosos, que,
desde Fócio, não inspirou uma única eloqüência; Igreja que se tornou
inteiramente temporal e cujo sacerdócio não é mais que uma função regulada pela
política imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja
primitiva, colorida e dourada com todas as suas lendas e com todos os seus ritos
que os popes não compreendem mais; sombra de uma Igreja viva, mas que quis parar
quando essa Igreja avançava e que não é mais que uma silhueta apagada e sem
cabeça.
Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia,
que romperam o dogma e tentam sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel
das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas inovações em sua totalidade são
negativas, que formularam para uso próprio um desconhecido pretensamente mais
conhecido, mistérios mais explicados, um infinito mais definido, uma imensidão
mais restrita, uma fé mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a
caridade e tomaram atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para
sempre impossível; esses homens que querem realizar a salvação somente pela fé,
porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem realizar, mesmo sobre a
terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas alegóricas, não
dão mais a graça, não fazem mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em
uma palavra, os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas da
impotência eterna da dúvida.
Foi, portanto, contra a própria fé que a reforma protestou. Os
protestantes tiveram razão contra o zelo inconsiderado e perseguidor que queria
forçar as consciências. Exigiram o direito de duvidar, o direito de ter menos
religião ou de não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste
privilégio; conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los e
de amá-los. Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando seu
coração revoltar-se por sua vez contra a tirania de uma razão falseada, quando
se cansarem das frias abstrações de seu dogma arbitrário, das vãs observâncias
de seu culto sem efeito, quando sua comunhão sem presença real, suas igrejas sem
divindade e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem
doentes da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo e não virão
jogar-se aos pés do sucessor de Pedro dizendo-lhe: Pai, pecamos contra o céu e
contra vós, já não somos dignos de ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao
menos entre vossos mais humildes servidores.
Não falaremos da crítica de Voltaire. Esse grande espírito
estava dominado por um ardente amor pela verdade e pela justiça, mas faltava-lhe
esta retidão do coração que dá a inteligência da fé. Voltaire não podia admitir
a fé, porque não sabia amar. O espírito de caridade não se revelou a essa alma
sem ternura, e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma
lâmpada cuja luz não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido mil vezes
razão em atacá-la e seria preciso ajoelhar-se diante do heroismo de sua coragem.
Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules destruidor do fanatismo. Mas
este homem ria demais para compreender aquele que disse: Felizes dos que choram,
e a filosofia do riso nunca terá nada em comum com a religião das lágrimas.
Voltaire parodiou a Bíblia, o dogma, o culto, depois
ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua paródia.
Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire podem
se ofender com isso. Os voltairianos assemelham-se às rãs da fábula que saltam
sobre as vigas e, em seguida, zombam da majestade real. São livres para tomar a
viga por um rei, são livres para refazer esta caricatura romana de que, outrora,
Tertuliano ria, e que representava o Deus dos cristãos na figura de um homem com
cabeça de asno. Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão a
Deus pelos pobres ignorantes que pretendiam insultá-los.
O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado,
num de seus mais eloqüentes paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e
como uma encarnação permanente de justiça divina na terra, queria que se
erguesse para o ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe
profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo, um
ser ao mesmo tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a
realização de suas terríveis funções. Foi, no domínio da inteligência, um
executor das grandes obras, um executor armado com a própria justiça de
Deus.
Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão
para aniquilar tudo o que separa esses dois gênios e reuni-los num só.
Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do
templo; mas, para fazê-lo girar, a contragosto, a pedra do moinho do progresso
religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.
A superstição, da palavra latina superstes,
sobrevivente, é o símbolo que sobreviveu à idéia, é a forma preferida à
coisa, é o rito sem razão, é a fé tornada insensata, porque se isola. E, por
conseguinte, o cadáver da religião, a morte da vida, é a inspiração substituída
pelo embrutecimento.
O fanatismo é a superstição apaixonada, seu nome vem da palavra
fanum, que significa templo, é o templo colocado no lugar de Deus, é a
honra do sacerdote substituída pelo interesse humano e temporal do padre, é a
paixão miserável do homem explorando a fé do crente.
Na fábula do asno carregado de relíquias, La Fontaine diz-nos
que o animal acreditou ser adorado, não nos diz que algumas pessoas acreditaram
de fato adorar o animal. Essas pessoas eram os supersticiosos.
Se alguém tivesse rido de suas tolices, teriam-no talvez
assassinado, pois da superstição ao fanatismo há um só passo.
A superstição é a religião interpretada pela tolice; o
fanatismo é a religião servindo de pretexto à fúria.
Os que confundem proposital e preconceituosamente a própria
religião com a superstição e o fanatismo emprestam à tolice suas prevenções
cegas e talvez emprestassem ao fanatismo suas injustiças e seus ódios.
Inquisidores ou participantes dos Massacres de Setembro, que
importam os nomes? A religião de Jesus Cristo condena e sempre condenou os
assassinos.
A CIÊNCIA - Nunca me fareis acreditar na existência de
Deus.
A FÉ - Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca me
provareis que Deus não existe.
A CIÊNCIA - Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro
lugar, eu saiba o que é Deus.
A FÉ - Não o sabereis nunca. Se soubésseis, poderíeis
ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não mais acreditaria nele.
A CIÊNCIA - Acreditais, então, sem saber em que estais
acreditando?
A FÉ - Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem não
sabeis em que eu acredito, precisamente porque vós não o sabeis. Tendes a
pretensão de ser infinita? Não sois interrompida a cada instante pelo mistério?
O mistério é para vós uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso
saber, se eu não o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis:
Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.
A CIÊNCIA - Mas vossas aspirações e seu objeto são e só podem
ser hipóteses para mim.
A FÉ - Sem dúvida, mas são certezas para mim, uma vez que sem
essas hipóteses eu duvidaria até mesmo de vossas certezas.
A CIÊNCIA - Mas, se começais onde eu paro, começais
temerariamente muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.
A FÉ - Que importam os vossos progressos, se ando sempre na
vossa frente?
A CIÊNCIA - Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste
demais a terra, teus pés estão dormentes.
A FÉ - Sou carregada por meus filhos!
A CIÊNCIA - São cegos que carregam um outro, cuidado com os
precipícios!
A FÉ - Não, meus filhos não são cegos, muito pelo contrário,
desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos o que tu podes demonstrar para
eles na terra e contemplam, pelos meus, o que lhes mostro no céu.
A CIÊNCIA - O que a razão pensa disso?
A RAZÃO - Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar um
apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência censura a fé por não
saber andar na terra, e a fé diz que a ciência não vê nada no céu das aspirações
e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam unir-se: que a
ciência carregue a fé e a fé console a ciência, ensinando-lhe esperar e
amar.
A CIÊNCIA - Essa idéia é bela, mas é uma utopia. A fé dir-me-á
absurdos, e eu quero andar sem ela.
A FÉ - O que é que chamais de absurdos?
A CIÊNCIA - Chamo de absurdos as proposições contrárias às
minhas demonstrações, como, por exemplo, que três são um, que um Deus
fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se finito. Que o Eterno morreu, que
Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos homens culpados...
A FÉ - Não digas mais nada. Externadas por ti, essas
proposições são, de fato, absurdos. Por acaso sabes o que é o número em Deus, tu
que não conheces Deus? És capaz de raciocinar sobre as operações do
desconhecido? És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre
absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam absorvidas
por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, eu não
existiria mais, e a razão, em presença do infinito, deter-se-ia sempre cegada
por tuas dúvidas tão infinitas quanto o espaço.
A CIÊNCIA - Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, não me
desmintas em meus domínios.
A FÉ - Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.
A CIÊNCIA - Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma
virgem possa ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural e
positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que um pedaço de
pão é não somente um Deus mas um corpo humano verdadeiro, com ossos e veias,
órgãos, sangue, de maneira que fazes de teus filhos que comem esse pão um
povinho antropófago.
A FÉ - Não é cristão quem não se revolte com o que acabaste de
dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem meus ensinamentos dessa
maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo está acima da natureza e
não poderia, por conseguinte, opor-se a ela, as palavras de fé só são
compreendidas pela fé; nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me
de tuas palavras, porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos
absurdos, deves concluir que dou a essas mesmas palavras um significado que te
escapa. O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A carne aqui
não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito e vida? Não te apresento
o mistério da encarnação como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação
como uma manifestação química. Com que direito gritarias ao absurdo? Eu não
raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito dirias que eu
disparato?
A CIÊNCIA - Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca
te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.
A FÉ - Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil.
Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não quero
separar-me de ti, a menos que a razão o consinta.
A RAZÃO - Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que
faria sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir o
que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar não é saber
ainda. O objeto da ciência é o conhecido, a fé não se ocupa dele e deixa-o
inteiramente à ciência. O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode
buscá-lo, mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos
provisoriamente, a aceitar as definições da fé que lhe é até mesmo impossível de
criticar. Somente se a ciência renuncia à fé, renuncia à esperança e ao amor,
cuja existência e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência
quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence ao domínio da ciência, e
a ciência, como manifestação da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao
domínio da fé. A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitar-se
mutuamente, até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca
usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas não deve haver
contradição entre elas, pois servindo-se das mesmas palavras não falam a mesma
língua.
A FÉ - Pois bem! irmã ciência, o que dizeis disso?
A CIÊNCIA - Digo que estávamos separadas por um deplorável
mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus
símbolos vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?
A FÉ - Continuarás sendo a ciência e serás universal.
A CIÊNCIA - Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que
devo pensar das diferentes religiões?
A FÉ - Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira
e, quando a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.
A CIÊNCIA - Não será certamente ao dos inquisidores e dos
carrascos da Noite de São Bartolomeu.
A FÉ - É ao de São João, o Esmoler, de São Francisco de Sales,
de São Vicente de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.
A CIÊNCIA - Reconheceis que, se a religião produziu algum bem,
fez também muito mal.
A FÉ - Quando se mata em nome do Deus que disse: Não matarás,
quando se persegue em nome daquele que quer que se perdoe os inimigos, quando se
propaga trevas em nome daquele que não quer que se oculte a luz, será justo
atribuir o crime à própria lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que,
apesar da religião, muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes
ela fez nascer, quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes
nobres corações de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se
pôr ao serviço de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração
que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos e os idosos,
hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? Essas instituições tão
gloriosas quanto modestas são obras reais de que os anais da Igreja estão
cheios; as guerras de religião e os suplícios dos sectários pertencem à política
dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram eles próprios assassinos.
Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o massacre de nossos padres renovado
ainda em nome da humanidade e da razão pelos revolucionários inimigos da
inquisição e da Noite de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando
esquecem a religião que os abençoa e perdoa.
A CIÊNCIA - Ó fé, perdoa-me então se não posso acreditar, mas
sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças e partilho de teus
desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é preciso que eu duvide para
pesquisar.
A RAZÃO - Trabalha e procura, então, ó ciência, mas respeita os
oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma lacuna no ensinamento universal,
permite à fé preenchê-la. Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na
outra, e nunca vos separeis.
Diz-se que o belo é o esplendor do verdadeiro.
Ora, a beleza moral é a bondade. É belo ser bom.
Para ser bom com inteligência, é preciso ser justo.
Para ser justo, é preciso agir com razão.
Para agir com razão, é preciso ter a ciência da realidade.
Para ter a ciência da realidade, é preciso ter consciência da
verdade.
Para ter consciência da verdade, é preciso ter uma noção exata
do ser.
O ser, a verdade, a razão e a justiça são os objetos comuns das
buscas da ciência e das aspirações da fé. A concepção de um poder supremo, real
ou hipotético, transforma a justiça em Providência, e a noção divina, por esse
ponto de vista, torna-se acessível à própria ciência.
A ciência estuda o ser em suas manifestações parciais, a fé o
supõe, ou melhor, o admite a priori em sua generalidade.
A ciência busca a verdade em todas as coisas, a fé relaciona
todas as coisas a uma verdade universal e absoluta.
A ciência verifica realidades no detalhe, a fé explica-as por
uma realidade de conjunto que a ciência não pode verificar, mas que a própria
existência dos detalhes parece forçá-la a reconhecer e a admitir.
A ciência submete as razões das pessoas e das coisas à razão
matemática e universal; a fé procura, ou melhor, supõe nas próprias matemáticas
e acima das matemáticas uma razão inteligente e absoluta.
A ciência demonstra a justiça pela justiça; a fé dá justeza
absoluta à justiça, subordinando-a à Providência.
Vê-se aqui tudo o que a fé empresta à ciência e tudo o que a
ciência, por sua vez, deve à fé.
Sem a fé, a ciência está circunscrita por uma dúvida absoluta e
encontra-se eternamente estacionada no empirismo arriscado a um ceticismo
raciocinador; sem a ciência, a fé constrói suas hipóteses ao acaso e só pode
prejulgar cegamente as causas dos efeitos que ignora.
A grande corrente que reúne ciência e fé é a analogia.
A ciência está forçada a respeitar uma crença cujas hipóteses
são análogas às verdades demonstradas. A fé, que atribui tudo a Deus, está
forçada a admitir a ciência como uma revelação natural que, pela manifestação
parcial das leis da razão eterna, dá uma escala de proporções a todas as
aspirações e a todos os ímpetos da alma no domínio do desconhecido.
É somente a fé, portanto, que pode dar uma solução aos
mistérios da ciência e é, em contrapartida, somente a ciência que demonstra a
razão de ser dos mistérios da fé.
Fora da união e do concurso dessas duas forças vivas da
inteligência, não há para a ciência senão ceticismo e desespero, para a fé,
temeridade e fanatismo.
Se a fé insulta a ciência, blasfema; se a ciência desconhece a
fé, abdica.
Agora, escutemo-las falar de comum acordo.
- O Ser está em todos os lugares, diz a ciência. É múltiplo e
variável em suas formas, único em sua essência e imutável em suas leis. O
relativo demonstra a existência do absoluto. A inteligência existe no ser. A
inteligência anima e modifica a matéria.
- A inteligência está em todos os lugares, diz a fé. Em nenhum
lugar a vida é fatal, uma vez que está regulada. A regra é a expressão de uma
sabedoria suprema. O absoluto em inteligência, o regulador supremo das formas, o
ideal vivo dos espíritos é Deus.
- Em sua identidade com a idéia, o ser é a verdade, diz a
ciência.
- Em sua identidade com o ideal, a verdade é Deus, retorque a
fé.
- Em sua identidade com minhas demonstrações, o ser é a
realidade, diz a ciência.
- Em sua identidade com minhas legítimas aspirações, a
realidade é meu dogma, diz a fé.
- Na sua identidade com o verbo, o ser é a razão, diz a
ciência.
- Na sua identidade com o espírito de caridade, a mais elevada
razão é minha obediência, diz a fé
- Em sua identidade com o motivo dos atos racionais, o ser é a
justiça, diz a ciência.
- Em sua identidade com o princípio de caridade, a justiça é a
Providência, responde a fé.
Acordo sublime de todas as certezas com todas as esperanças, do
absoluto em inteligência e do absoluto em amor. O Espírito Santo, o espírito de
caridade deve assim tudo conciliar e tudo transformar em sua própria luz. Não é
ele o espírito de inteligência, o espírito de ciência, o espírito de conselho, o
espírito de força? Ele deve vir, diz a liturgia católica, e isso será como uma
criação nova, e ele mudará a face da terra.
"Rir da filosofia já é filosofar", disse Pascal ao fazer alusão
a esta filosofia cética e duvidosa que não reconhece a fé. E, se existisse uma
fé que pisoteasse a ciência, não diríamos que rir de semelhante fé seria dar
provas de verdadeira religião, que é toda caridade, que não tolera o riso, mas
ter-se-ia razão em censurar esse amor pela ignorância e em dizer a essa fé
temerária: Já que desconheces tua irmã, não és a filha de Deus!
Verdade, realidade, razão, justiça, providência, tais são os
cinco raios da estrela flamejante no centro da qual a ciência escreverá a
palavra Ser, a que a fé acrescentará o nome inefável de Deus.
Pergunta - O que é a verdade?
Resposta - É a idéia idêntica ao ser.
P - O que é a realidade?
R - É a ciência idêntica ao ser.
P - O que é a razão?
R - É o verbo idêntico ao ser.
P - O que é a justiça?
R - É o motivo dos atos idênticos ao ser.
P - O que é o absoluto?
R - É o ser.
P - Concebe-se algo acima do ser?
R - Não, mas concebe-se no próprio ser algo de supereminente e
de transcendental.
P - O que é?
R - A razão suprema do ser.
P - Conheceis e podeis defini-la?
R - Somente a fé afirma-a e nomeia-a Deus.
P - Existe algo acima da verdade?
R - Acima da verdade conhecida existe a verdade
desconhecida.
P - Como se pode racionalmente supor essa verdade?
R - Pela analogia e pela proporção.
P - Como se pode defini-la?
R - Pelos símbolos da fé.
P - Pode-se dizer da realidade a mesma coisa que da
verdade?
R - Exatamente a mesma coisa.
P - Existe algo acima da razão?
R - Acima da razão finita existe a razão infinita.
P - O que é a razão infinita?
R - É esta razão suprema do ser a que a fé chama de Deus.
P - Existe algo acima da justiça?
R - Sim, de acordo com a fé, existe a providência em Deus e, no
homem, o sacrifício.
P - O que é o sacrifício?
R - É o abandono benévolo e espontâneo do direito.
P - O sacrifício é racional?
R - Não, é uma espécie de loucura maior que a razão, pois a
razão é forçada a admirá-lo.
P - Como chamar um homem que age de acordo com a verdade, a
realidade, a razão e a justiça?
R - É um homem moral.
P - E se pela justiça ele sacrifica seus atrativos?
R - É um homem de honra.
P - E se, para imitar a grandeza e a bondade da Providência,
ele faz mais do que seu dever e sacrifica seu direito pelo bem dos outros?
R - É um herói.
P - Qual é o princípio verdadeiro do heroismo?
R - É a fé.
P - Qual é o seu sustento?
R - A esperança.
P - E sua regra?
R - A caridade.
P - O que é o bem?
R - É a ordem.
P - O que é o mal?
R - É a desordem.
P - Que prazer é permitido?
R - O gozo da ordem.
P - Que prazer é proibido?
R - O gozo da desordem.
P - Quais são as conseqüências de um e de outro?
R - A vida e a morte na ordem moral.
P - O inferno, com todos os seus horrores, tem, pois, razão de
ser no dogma religioso?
R - Sim, é a conseqüência rigorosa de um princípio.
P - E que princípio é esse?
R - A liberdade.
P - O que é a liberdade?
R - É o direito de fazer o dever com a possibilidade de não o
fazer.
P - O que é faltar com o dever?
R - É perder o direito. Ora, sendo o direito eterno, perdê-lo
significa perda eterna.
P - Não se pode reparar uma falta?
R - Sim, pela expiação.
P - O que é a expiação?
R - É uma sobrecarga de trabalho. Assim, porque fui preguiçoso
ontem, devo realizar, hoje, uma dupla tarefa.
P - Que pensar dos que se impõem sofrimentos voluntários?
R - Se é para remediar a atração brutal do prazer, são sábios;
se é para sofrer no lugar dos outros, são generosos; mas, se o fazem sem
conselho e sem medida, são imprudentes.
P - Assim, diante da verdadeira filosofia, a religião é sábia
em tudo o que ordena?
R - Vós o vedes.
P - Mas se enfim estivermos errados em nossas esperanças
eternas?
R - A fé não admite essa dúvida. Mas a própria filosofia deve
responder que todos os prazeres da terra não valem um dia de sabedoria, e que
todos os triunfos da ambição não valem um só instante de heroismo e de
caridade.
P - O que é o homem?
R - O homem é um ser inteligente e corporal feito à imagem de
Deus e do mundo, uno em essência, triplo em substância, imortal e mortal.
P - Dizeis triplo em substância. Teria o homem duas almas ou
dois corpos?
R - Não. Tem em si uma alma espiritual, um corpo material e um
mediador plástico.
P - Qual é a substância desse mediador?
R - É a luz em parte volátil e em parte fixada.
P - O que é a parte volátil dessa luz?
R - É o fluido magnético.
P - E a parte fixada?
R - É o corpo fluídico ou arornal.
P - A existência desse corpo é demonstrada?
R - Sim, pelas experiências mais curiosas e mais conclusivas.
Falaremos disso na terceira parte deste livro.
P - Essas experiências são artigos de fé?
R - Não, pertencem à ciência.
P - Mas a ciência preocupar-se-ia com isso?
R - Ela já se preocupa, uma vez que escrevemos este livro e uma
vez que o ledes.
P - Dai-nos algumas noções sobre esse mediador plástico.
R - Ele é formado por uma luz astral ou terrestre e transmite
ao corpo humano a dupla imantação. Ao agir sobre essa luz, a alma, por suas
volições, pode dissolvê-la ou coagulá-la, projetá-la ou atraí-la. Ela é o
espelho da imaginação e dos sonhos. Reage sobre o sistema nervoso e produz,
assim, os movimentos do corpo. Essa luz pode dilatar-se indefinidamente e
comunicar suas imagens a distâncias consideráveis, ela imanta os corpos
submetidos à ação do homem e pode, fechando-se, atraí-los para si. Pode assumir
todas as formas evocadas pelo pensamento e, nas coagulações passageiras de sua
parte resplandecente, aparecer aos olhos e até mesmo oferecer uma espécie de
resistência ao contato. Se essas manifestações e esses usos do mediador plástico
são anormais, o instrumento luminoso não pode produzi-las sem ser falseado e
causam necessariamente ou alucinação ou loucura.
P - O que é o magnetismo animal?
R - É a ação de um mediador plástico sobre um outro para
dissolver ou coagular. Aumentando a elasticidade da luz vital e sua força de
projeção, ela é enviada tão longe quanto se deseje e é retirada totalmente
carregada de imagens, mas é preciso que essa operação seja favorecida pelo sono
do sujeito, que se produz com maior coagulação da parte fixa de seu
mediador.
P - O magnetismo é contrário à moral e à religião?
R - Sim, quando dele se abusa.
P - O que é abusar dele?
R - É servir-se dele de maneira desordenada ou para um fim
desordenado.
P - O que é um magnetismo desordenado?
R - É uma emissão fluídica malsã e feita com más intenções, por
exemplo, para saber os segredos dos outros ou para chegar a fins injustos.
P - Qual é, então, seu resultado?
R - Falseia no magnetizador e no magnetizado o instrumento
fluídico de precisão. E é a essa causa que se devem atribuir as imoralidades e
as loucuras reprovadas num grande número de pessoas que lidam com o
magnetismo.
P - Quais as condições necessárias para se magnetizar
convenientemente?
R - A saúde do espírito e do corpo; a intenção reta e a prática
discreta.
P - Que vantagens pode-se obter pelo magnetismo bem
dirigido?
R - A cura das doenças nervosas, a análise dos pressentimentos,
o restabelecimento das harmonias fluídicas, a descoberta de alguns segredos da
natureza.
P - Explicai-nos tudo isso de uma maneira mais completa.
R - Nós o faremos na terceira parte desta obra que tratará
especialmente dos mistérios da natureza.
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