Resumo
O presente estudo apresenta uma comparação entre os contos Três versões de Judas,
de Jorge Luis Borges, e O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia. Pretende-se
enfocar os mecanismos estéticos de construção do discurso herético em ambos os
textos, analisando os aspectos convergentes e, mormente, os divergentes. A dissonância
consubstanciada nos referidos textos respeita a uma releitura crítica da tradição
bíblica que atribui a Judas Iscariotes a marca do traidor de Jesus Cristo, e a Lúcifer, o
protagonismo da degenerescência humana.
Palavras-chave: teologia, literatura, Jorge Luis Borges, Arturo Gouveia.
Introdução
Antonio Candido (2000, p. 22-23) divide a arte, mormente a da palavra, em dois
grupos: arte de agregaƒ„o e arte de segregaƒ„o. A primeira categoria abarca as formas e
express…es j† cristalizadas, filiando-se ‡ tradiƒ„o; ou seja, fulcra-se na experincia
coletiva, e, por isso, ˆ mais acess‰vel. A outra atualiza o sistema, instaurando a novidade
mediante a criaƒ„o de procedimentos e mecanismos estˆticos; logo, destina-se a uma
parcela reduzida da sociedade.
A literatura, haja vista seu car†ter essencialmente mimˆtico, constitui-se como
poiese, (re)criaƒ„o da realidade. Portanto, ˆ capaz de estabelecer pontos de contato com
a referida, bem como pode distanciar-se, seja desfigurando-a ou negando-a (CANDIDO,
2000, p. 12). Para corroborar a afirmaƒ„o acima acerca da natureza da arte liter†ria,
citamos AristŠteles (1997, p. 48) que leciona: “Quando plaus‰vel, o imposs‰vel se deve
preferir a um poss‰vel que n„o convenƒa”. Essa liƒ„o diz respeito ‡ quest„o da qualidade
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intr‰nseca da obra que deve suplantar os aspectos da verossimilhanƒa externa e nortear a
an†lise liter†ria.
A narrativa Três versões de Judas, de Jorge Luis Borges, destaca-se por sua forma
ensa‰stica. Ela apresenta vis…es acerca da figura de Judas Iscariotes, desmistificando o
seu car†ter de traidor de Cristo e apontando a sua relevncia para o plano salv‰fico da
humanidade.
Por sua vez, o conto Evangelho Segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia, exp…e a
perspectiva de LŽcifer, que contraria toda a tradiƒ„o b‰blica. A partir de sua prŠpria voz,
o “Anjo de Luz” imputa a Deus o papel de algoz da humanidade, responsabilizando-o
por todo o mal que a aflige. Para o narrador-personagem o verdadeiro "Usurpador" ˆ o
prŠprio Deus.
Como se pode depreender tais textos s„o subversivos e podem ser tidos como
herˆticos, tomando como parmetro a b‰blia e a exegese crist„ consolidada ao longo do
tempo. Eis o aspecto que, dentre outros, motivou o desenvolvimento deste estudo.
Baseando-nos principalmente nas consideraƒ…es de Antonio Candido sobre a arte de
segregaƒ„o, analisamos os contos e estabelecemos os aspectos convergentes e
divergentes.
Revelando outro Judas: a decifração do enigma
O conto de Borges em tela est† inserido no livro Ficções, publicado em 1944. A
narrativa estrutura-se a partir das trs teses do gnŠstico Nils Runeberg sobre Judas
Iscariotes1.
A narraƒ„o ˆ m‰nima, mas a discuss„o, a exposiƒ„o das ideias e os coment†rios
que constituem a ficƒ„o e entrelaƒam os fatos s„o o centro, consubstanciam o conflito
principal2. O texto constitui-se como artigo, em consonncia com as palavras do prŠprio
narrador-ensa‰sta (BORGES, p. 573).
1 Borges trata da figura de Judas, de forma tambˆm diversa do cnone b‰blico, em outro conto chamado
“A seita dos trinta” (BORGES, 1999). Indicamos ainda a leitura de KASSER, R. et al (orgs). O
Evangelho segundo Judas: do cŠdice tchacos. S„o Paulo: Prest‰gio, 2006.
2 Neste mesmo sentido ver GOUVEIA, A. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges,
Guimar„es Rosa e a teoria do conto). In: ________ (org.). Machado de Assis desce aos infernos. Jo„o
Pessoa: Idˆia, 2009, p. 44.
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Para o filŠsofo alem„o T. W. Adorno (2003, p. 37), “A conscincia da n„o-
identidade entre o modo de exposiƒ„o e a coisa imp…e ‡ exposiƒ„o um esforƒo sem
limites. Apenas nisso o ensaio ˆ semelhante ‡ arte; no resto, ele necessariamente se
aproxima da teoria, em raz„o dos conceitos que nele aparecem [...]”.
A construƒ„o textual do escritor argentino transcende os limites da separaƒ„o entre
as formas, n„o sŠ relativizando-os, mas quebrando-os. Misturando elementos, citaƒ…es,
noƒ…es, construtos teŠricos, autores ora fict‰cios3, ora “reais”, o narrador desmistifica a
“verdade” crist„, atravˆs de uma construƒ„o lŠgica e, portanto, racional. Todavia,
dialeticamente, essa racionalizaƒ„o ˆ engendrada pela mediaƒ„o poˆtica que expressa o
tom ficcional ‡ matˆria tratada4.
A primeira tese de Runeberg, explicitada pelo narrador, encontra-se presente no
livro Kristus och Judas (“Cristo e Judas”) do aludido heresiarca. Segundo o seu
entendimento a traiƒ„o de Judas configura-se como fato predeterminado na “economia
da redenƒ„o” (BORGES, p. 574). A construƒ„o argumentativa erige-se da noƒ„o de
encarnaƒ„o de Jesus, o que pode ser compreendido como degenerescncia. Sendo assim,
o disc‰pulo do Verbo – Judas Iscariotes – seguindo o seu Mestre, tambˆm deve rebaixar-
se. Entretanto o rebaixamento d†-se na condiƒ„o de delator. Por esse prisma Judas
reflete, de certa maneira, Jesus. Consoante apurou o narrador inŽmeras foram as
refutaƒ…es por parte dos teŠlogos de todos os credos ‡ argumentaƒ„o do heresiarca: a)
reflete ignorncia da dupla natureza de Cristo (uni„o hispost†tica); b) trata-se de uma
heresia; c) entra em contradiƒ„o com o evangelho de Lucas (cap‰tulo XXII).
Os questionamentos e as cr‰ticas repercutem na doutrina runeberguiana. O
gnŠstico reescreve parcialmente seu livro, “abandonando o terreno teolŠgico e
adotando, agora, obl‰quas raz…es morais” (BORGES, p. 575). Ele reconhece que Jesus
“n„o necessitava de um homem para redimir todos os homens” (BORGES, p. 575).
Contudo, fundamentando-se em passagens da B‰blia, passa a defender que Judas, como
um dos apŠstolos, “merece de nŠs a melhor interpretaƒ„o dos seus atos” (BORGES, p.
575). De acordo com o autor de Kristus och Judas, a traiƒ„o deve ser reinterpretada,
3 Por exemplo, a nota de nŽmero 3 do conto-ensaio remonta a uma observaƒ„o sobre a obra Vindicação
da eternidade, de Jaromir Hladik, protagonista de outra narrativa de J. L. Borges, que se intitula O
milagre secreto.Este conto integra o livro Ficƒ…es assim como Trs vers…es de Judas. Logo, a verdade n„o
passa de uma construƒ„o, ˆ ficƒ„o.
4 Nos termos de Davi Arrigucci, poder‰amos dizer que ocorre, concretamente, em “Trs vers…es de Judas”
a ficcionalizaƒ„o do ensaio (vide ARRIGUCCI, D. Borges ou do conto filosófico. In: BORGES, J. L.
Ficções. 6. ed. S„o Paulo: Globo, 1995).
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afinal, tem como teleologia a maior glŠria de Deus, da‰ o envilecimento e mortificaƒ„o
do esp‰rito, caracter‰sticos do ascetismo. Num gesto extremado de humildade, Judas
premeditou a culpa (fez-se delator), buscando, assim, deliberadamente o inferno, visto
que a felicidade do Senhor lhe era suficiente.
Nils Runeberg, com o desiderato de ratificar que a atitude de Judas ˆ fundamental
para a realizaƒ„o da remiss„o dos pecados e salvaƒ„o da humanidade por Jesus, faz
menƒ„o ‡ I Epístola de Paulo aos Coríntios, 1, 31: “O que se gloria, glorie-se no
Senhor”. Vale sublinhar, ainda, que o narrador-ensa‰sta em nota de rodapˆ constrŠi um
elo entre a postura de Judas e as palavras de Antnio Conselheiro – a virtude era “uma
quase impiedade” (personagem heresiarca do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha);
remonta, ainda, ‡s passagens da obra de Almafuerte, e, por Žltimo o articulista traz ‡
tona o poema simbolista A Água Secreta. Este, conforme reforƒa o narrador, termina
assim “A †gua da selva ˆ feliz; podemos ser maldosos e dolorosos”5. Estas associaƒ…es
dialogam com a convicƒ„o gnŠstica de que Judas cumpriu seu papel na redenƒ„o do
gnero humano, independentemente do julgamento que as pessoas poder„o fazer. A
alegria reside no cumprimento da miss„o dada pela divindade. Nesta Štica, podemos
concluir: sem traiƒ„o, n„o h† salvaƒ„o.
A Žltima tese de Runeberg, que est† plasmada no livro Den Hemlige Frälsaren6,
configura-se como “pervers„o” ou “exasperaƒ„o” de sua obra anterior. A conclus„o
edificada por ele ˆ a seguinte: “Deus se fez totalmente homem, porˆm homem atˆ a
infmia, homem atˆ a reprovaƒ„o e o abismo. Para nos salvar, pde escolher qualquer
dos destinos que tramam a perplexa rede da histŠria; pde ser Alexandre ou Pit†goras
ou Rurik ou Jesus; escolheu um ‰nfimo destino: foi Judas (p.577).”
Do exposto, deflui-se que o gnŠstico sustenta que o sacrif‰cio de Judas foi maior
que o de Cristo; portanto o “Žltimo dos homens”, o “var„o de dores”, prefigurado no
livro de Isa‰as, n„o ˆ o crucificado; ˆ aquele que est† despojado da graƒa e da glŠria, o
que entregou o Mestre, para que este pudesse realizar a salvaƒ„o da humanidade, ou
seja, o prŠprio Judas. Ciente da condenaƒ„o, ainda assim, entregou-se ‡ miss„o,
propiciando vida ‡ humanidade. Eis a revelaƒ„o de Runeberg. A recepƒ„o desta em
5 “A †gua da selva ˆ feliz consiste numa met†fora. A †gua pode ser entendida como o prŠprio Judas que
segue seu curso, consoante a liberdade concedida pela prŠpria natureza. A parte final do verso destacado
(“podemos ser maldosos e dolorosos”) aponta para a leitura cr‰tica que nos ˆ poss‰vel ser feita desse fato.
6 Interessante que o t‰tulo em portugus indica a tese runeberguiana: O Salvador Oculto, que ˆ o prŠprio
Judas.
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Estocolmo e Lund (ambas as cidades situadas na Suˆcia) n„o encontrou eco, apenas a
indiferenƒa. A reaƒ„o, para o gnŠstico, tem uma explicaƒ„o divina: “Deus ordenava essa
indiferenƒa; Deus n„o queria que se propagasse na terra Seu terr‰vel segredo”
(BORGES, 1998, p. 577).
O seu fim estava prenunciado, assim como aqueles que revelaram a Verdade ou a
encontraram n„o passam incŠlumes. A dŽvida, a certeza, o castigo, a blasfmia, o
del‰rio tomaram sua vida. Suplicando em gritos a graƒa de compartilhar com o Redentor
(Judas) o Inferno, Nils Runeberg faleceu. O desfecho do conto-ensaio retoma a sua
contribuiƒ„o herˆtica7: “[...] acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as
complexidades do mal e do infortŽnio” (BORGES, 1998, p. 577).
Segundo Adorno (2003, p. 45), “a lei formal mais profunda do ensaio ˆ a heresia.
Apenas a infraƒ„o ‡ ortodoxia do pensamento torna vis‰vel, na coisa, aquilo que a
finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invis‰vel”.
O conto-ensaio estudado corporifica a compreens„o adorniana da forma
ensa‰stica. Versando sobre quest…es teolŠgicas e filosŠficas, trabalhando conceitos, e
marcado pela construƒ„o lŠgica, sedimenta a heresia sob a ˆgide da arte, contrariando
toda a tradiƒ„o crist„ e o consenso popular acerca de Cristo e mais propriamente de
Judas, por um lado; de outra banda, reformula a noƒ„o de narrativa e ensaio.
O conto borgiano, por sua construƒ„o, ontologia e tem†tica, enquadra-se
perfeitamente como arte de segregaƒ„o, nos moldes de Antonio Candido.
A transgressão de AG: a notícia de Lúcifer
O evangelho segundo Lúcifer integra o livro que recebe o mesmo nome. Escrito
por Arturo Gouveia, renomado contista brasileiro, foi publicado em 2007. interessante
ressaltar que o t‰tulo do conto arturiano j† manifesta seu car†ter subversivo. Como
imaginar a boa not‰cia, ante o cnone b‰blico e sua presenƒa no inconsciente coletivo,
dada pelo Anjo deca‰do? A maestria da construƒ„o textual reside na vaz„o ao ponto de
7 A ep‰grafe em ingls do conto (atribu‰da a T. E. Lawrence) apresenta-nos antecipadamente a revelaƒ„o
de Nils Runeberg que ˆ dialˆtica: “Parecia haver uma certeza na degradaƒ„o”, qual seja: a traiƒ„o ˆ o
fundamento da salvaƒ„o dos seres humanos. Judas equipara-se ao Redentor.
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vista de LŽcifer, para ent„o questionar a sua condiƒ„o de cativo e inverter o jogo: a
culpa pelos males n„o ˆ sua e sim de Deus.
A aƒ„o ˆ m‰nima, o enredo desenvolve-se de modo truncado, porquanto reflete a
situaƒ„o do narrador-personagem. H† uma proeminncia da linguagem e da reflex„o.
Nesse aspecto, a narrativa de AG apresenta um car†ter doutrin†rio e teolŠgico insŠlito.
“Minha pris„o ˆ do tamanho exato do meu esqueleto” (GOUVEIA, 2007, p. 317),
afirma LŽcifer. De fato, o tamanho diminuto do c†rcere limita a sua aƒ„o, no entanto, a
mente trabalha continuamente. O microcosmos em que se encontra n„o o impede de
fazer elucubraƒ…es, constatar realidades e tecer cr‰ticas ao Usurpador, que ˆ para o
protagonista, Deus, que se apropriou da inteligncia no instante em que ia compartilh†-
la com este8. Desde ent„o foi emparedado9, e destitu‰do da glŠria, restando-lhe, apenas,
a ingest„o de esterco e vermes, sua Žnica forma de sobrevivncia, a recepƒ„o de
oxignio podre, e o contato com as escrituras “mentirosas”. O pensamento constitui
tambˆm a sua pris„o, seu mart‰rio. A maior tirania de Deus, segundo o prisioneiro, foi a
acusaƒ„o de ter feito o mal ‡ Criaƒ„o e a Ele.
As pupilas do emparedado possuem pregos, portanto, n„o podem ser fechadas;
vislumbra as cat†strofes e a cegueira da humanidade, fruto do fanatismo institu‰do pela
B‰blia. Contraditoriamente sua lucidez corresponde ‡ escurid„o dos humanos.
Fluidez da imaginaƒ„o e incapacidade de agir s„o, por conseguinte, as marcas
caracter‰sticas do cativo:
Minha mente n„o p†ra de trabalhar, ainda que meus olhos se esgotem
nessa posiƒ„o imut†vel. Ele acredita em minha rendiƒ„o para a
destruiƒ„o final. Que resposta eficaz poderei dar ao mais abomin†vel
dos seres? Basta lembrar que Deus ˆ o Žnico ser apŠcrifo, que sŠ tem
zelo pelo Inferno e por essas grades que me destroƒam. Sua Žnica
meta para a Humanidade, em dias prŠximos, ˆ a extinƒ„o. Da Žltima
vez que O vi, mesmo Ele desviando o olhar, pude identificar com
sutileza alguns dos Seus crimes futuros. N„o consigo compreender
com precis„o o que vi, mas ter visto j† me ˆ uma imensur†vel alegria.
Vi um sˆculo monstruoso enterrando, em poucos anos, milh…es de
pessoas; vi um cogumelo de fogo caindo sobre uma cidade indefesa,
incendiando berƒos e geraƒ…es futuras; vi crianƒas convertidas em
cinzas e jogadas no V‰stula; vi arsenais poderosos, de destruiƒ„o
imponder†vel, girando em torno da Terra; vi milh…es de esqueletos
trabalhando ‡ forƒa numa plan‰cie de gelo; vi seq‘ncias e seq‘ncias
de guerras, explodindo aldeias e continentes inteiros; vi uma menina
incendiada nua; vi umas m„es numa praƒa clamando por seus filhos,
todos pisunhados de torturas. (GOUVEIA, 2007, p. 320)
8 Dento desta perspectiva, LŽcifer apresenta-se como Criador.
9 O emparedamento do personagem faz-nos recordar o conto O gato preto, de Edgar Allan Poe.
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O trecho acima exprime a Štica luciferina, que contesta a divindade, invertendo os
pŠlos. O princ‰pio da Luz ˆ o prŠprio LŽcifer (note-se um nexo etimolŠgico) e o da
Treva ˆ Deus, art‰fice do mal e do pecado, que encaminha a humanidade para extinƒ„o.
Isto sŠ se dar† quando o Anjo sucumbir ao ultraje. Aquele consiste num ser apŠcrifo
(sem autenticidade, visto que n„o se manifesta diretamente, diferente de LŽcifer). A
contemplaƒ„o parcial dos olhos d’Ele indicam um per‰odo de caos. Se analisarmos as
imagens elencadas teremos alus…es a momentos histŠricos de extrema violncia do
sˆculo XX.
A conscincia do prisioneiro ˆ o Žnico reduto imune ‡ treva divina. Porˆm, o
aludido sente que o Usurpador passa a manipul†-la, a partir do sonho. Logo, a coerƒ„o
passa a ser por dentro, interna. “Mesmo com os olhos abertos, (....) consegui dormir,
submergir na letargia” (GOUVEIA, 2007, p. 321). A descriƒ„o do sonho ˆ ontolŠgica,
pois concretiza um labirinto (fagulha de conscincia dentro do sonho). L† h† a
confluncia da conscincia e do inconsciente, do presente, do futuro e do passado –
instante da criaƒ„o. A chance de acordar da ilus„o do c†rcere e a possibilidade de
transfiguraƒ„o da realidade plasma-se. LŽcifer enquanto Criador poderia excluir o Žnico
desastre da criaƒ„o. Todavia, a devassa ‰ntima por meio da manobra on‰rica consolida-
se. A pris„o exsurge no momento fatal10.
“Esse sono, o Žnico a que tive direito desde a sentenƒa, alterou para
sempre minha estima. Apesar de ser um anjo de luz, criador do
Universo e da Linguagem, minha eternidade est† com os dias
contados. N„o sinto apenas na carne esse final sinistro. Os terrores de
Deus tm conseguido penetrar em minha lucidez. [...] Com isso, Deus
substituir† minha perpetuidade pela perpetuidade do Mal. Morrerei
sem ter operado o milagre: corrigir meu prŠprio erro. Morrerei
sabendo que Deus ˆ a alma do Inferno. A Humanidade evite o
cogumelo de fogo, evite as cinzas do V‰stula, evite as m„es
desesperadas. Ainda h† tempo. a mensagem que deixo para uma
linda criatura que um dia idealizei e foi brutalmente deturpada,
seduzida pela serpente de Deus. Os homens, se ainda tiverem um
resqu‰cio da minha luz entendam, com carinho, os meus limites. Se j†
pressinto meu fim, n„o posso resgatar mais ninguˆm (GOUVEIA,
2007, p. 323).
O encadeamento narrativo leva-nos, como vimos no excerto transcrito, do sono de
LŽcifer ‡ reflex„o sobre o dom‰nio pleno de Deus da sua conscincia, Žltimo resqu‰cio
10 O procedimento de construƒ…es dos sonhos faz-nos remeter ‡ narrativa A escrita do deus, de Borges.
Ademais a possibilidade de deglutir as crianƒas no caminho aponta, ainda, para o mito de Chronos.
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de independncia, lucidez e criticidade. O tom dram†tico do conto constrŠi-se,
justamente, na desilus„o de LŽcifer face ‡ capacidade de libertar-se, resgatar a sua
imagem e salvar os seres humanos, mostrando-lhes a verdade. Encarcerado em si,
reconhece a sua finitude, sua limitaƒ„o. No desfecho da narrativa oferta uma advertncia
‡ humanidade. Por Žltimo, evocando a presenƒa de sua luz nela, ele acalenta a esperanƒa
de ganhar a compreens„o pela inaƒ„o.
Ainda sobre o conto, gostar‰amos de elucidar alguns pontos. O sono e o sonho
constituem a met†fora do fim do narrador-personagem. Tentando compreender o
significado dos sonhos, LŽcifer recupera a imagem de duas crianƒas: “A primeira se
chamava Is e tinha o nŽmero 14 selado a fogo na testa; a Žltima era Rev e seu corpo
triturado trazia o nŽmero 1220. Das outras, lembro apenas de uma massa amorfa, em
forma de vmito e excreƒ„o” (GOUVEIA, 2007, p. 323). As crianƒas abortadas que
surgem em del‰rios on‰ricos sequenciais, avolumam-se ‡ medida que exsurgem na
mente de LŽcifer. As marcas e as denominaƒ…es da primeira e da Žltima Is 14 e Rev
1220, respectivamente, s„o simbŠlicas.
O nome Is remete ao livro de Isa‰as11, presente no Antigo Testamento. O nŽmero
14 denota o cap‰tulo. Associando essas express…es, temos Isa‰as 14. Tal passagem
apresenta uma s†tira contundente a um oponente. H† nos vers‰culos b‰blicos a
celebraƒ„o da certeza da queda e morte do rei opressor e tirnico. O rei, a‰ focalizado, ˆ,
provavelmente Nabucodonosor, da Babilnia. Inobstante isso, encontramos uma
menƒ„o clara ‡ figura de Sat„:
Tua majestade desceu ‡ morada dos mortos,
acompanhada do som de tuas harpas.
Jazes sobre um leito de vermes
e os vermes s„o a tua coberta.
Ent„o! Ca‰ste dos cˆus,
astro brilhante, filho da aurora!
(Is 14, 11-12)
Com fulcro nesses versos, temos a aƒ„o poderosa de Javˆ que arrasa o inimigo.
o prenŽncio do que acontecer† a Nabucodonosor. A voz-poˆtica canta a humilhaƒ„o de
LŽcifer (= astro brilhante). Fazendo isso, profetiza o destino do rei da Babilnia e de
todos os que se insurgem contra Javˆ. Logo, o referido governante liga-se a Sat„.
Ressaltamos, ainda, que a humilhaƒ„o do povo babilnico ˆ cruel: ru‰na e exterm‰nio do
11 Is ˆ a abreviatura usual de Isa‰as.
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seu povo, inclusive com o massacre de toda a descendncia (Is 14, 21-23). O vers‰culo
19 do livro de Isa‰as reforƒa, a partir de outra construƒ„o imagˆtica, o ultraje infligido
ao rei: “Todos os reis das naƒ…es, todos repousam com glŠria, cada um no seu tŽmulo; /
tu, porˆm, foste atirado para longe do teu sepulcro, como um aborto que causa horror”
(Is 14, 18-19).
J† a Žltima crianƒa do sonho do “astro brilhante” chama-se Rev. Ela possui a
marca 1220. Rev, na nossa an†lise, ˆ a abreviatura de Revelaƒ„o, ou seja, Apocalipse,
mensagem reveladora. A numeraƒ„o 1220 pode ser desmembrada. Destarte, passamos a
ter 12 e 20, que s„o dois cap‰tulos importantes do texto de Jo„o, livro que encerra o
Novo Testamento. As mencionadas seƒ…es do Livro do Apocalipse (ou da Revelaƒ„o)
tratam da derrota da Serpente (LŽcifer). Em Apo 12, deparamo-nos com a descriƒ„o de
um combate no cˆu, em que o Drag„o, que personifica o mal, tenciona lutar contra as
estrelas (Deus), bem como aspira a devorar o filho da Mulher12, o Messias, que veio
para extermin†-lo. Contudo, as pretens…es daquele s„o frustradas. No cap‰tulo 20, Jo„o
narra a sorte da Serpente e a vitŠria definitiva de Deus.
Refletindo sobre as profecias do livro de Isa‰as (14) e a mensagem do Apocalipse
(12 e 20), notamos que elas se presentificam no sonho de LŽcifer. A Palavra Divina j†
invadia os recnditos da mente luciferina (as crianƒas abortadas e marcadas). Elas eram
o sinal da revelaƒ„o de Deus, anŽncio da derrota, pris„o, humilhaƒ„o e violncia, o fim
de LŽcifer.
Abrah„o Costa Andrade (2003, p. 176), afirma que Arturo Gouveia, em seus
contos, “desmantela certo esquema mental afeito a colocar em posiƒ„o de atrito linear o
bem e o mal.” Com efeito, no di†logo entre o texto ficcional analisado e o cnone
b‰blico, percebemos uma ruptura total, visto que a escolha de LŽcifer como narrador e
como protagonista manifesta uma atitude totalmente inventiva e questionadora, que
causa impacto e incompreens…es para quem l (invers„o da origem do mal13), haja vista
a forte heranƒa judaico-crist„ que impera no Ocidente. a efetivaƒ„o da chamada
poˆtica do incmodo (ANDRADE, 2003, p. 177).
12 A Mulher estava prestes a dar ‡ luz a um menino, que era o alvo do Drag„o.
13 O conto materializa a transgress„o dos evangelhos b‰blicos e, de certa maneira, a compreens„o
agostiniana sobre o mal (ver SANTO AGOSTINHO. Confissões. S„o Paulo: Martin Claret, 2002). A
narrativa, alˆm de recuperar o manique‰smo, isentando a humanidade, inverte a origem: o Mal provˆm de
Deus.
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Pela verificação que fizemos da narrativa arturiana, fica patente a sua
classificação no rol da arte de segregação.
As consonâncias e as dissonâncias: uma breve comparação
A aplicabilidade do conceito de arte de segregação nas narrativas Três versões de
Judas, de Jorge Luis Borges, e, O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia,
viabiliza a comparação destas.
Considerando que a segregação não é absoluta, enfocamos os aspectos que a
caracterizam, visto que prevalecem nos textos mencionados. A incursão comparatista
está radicada no engendramento da transgressão e subversão da forma e do conteúdo
que marcam os contos estudados.
Os personagens são distintos, mas compartilham o mesmo papel antagônico ante à
construção do reino celeste e da salvação dos homens por Cristo, e, por este motivo,
recebem o desprezo, a marginalidade, a periferia, seja na bíblia e em outros textos
literários, ao longo do tempo. As narrativas aqui estudadas, uma do século XX e outra
do XXI, estabelecem uma visão atípica sobre tais personagens, respectivamente, Judas e
Lúcifer, que são alçados à posição de centralidade. Mudando-se o ângulo, encontramos
nas narrativas a exposição de pontos de vista desmistificadores em relação a ambos,
efetivando-se, assim, a desconstrução da imagem que a tradição cristalizara. Judas, de
traidor passa a salvador, e, Lúcifer, a personificação do mal, fonte de todo pecado,
mostra-se como Criador, vítima da truculência de Deus, este sim, sob seu prisma, o
próprio mal. É a consagração da subversão temática, discurso herético por natureza.
A despeito dessa convergência, os aspectos estruturais são dissonantes e, ao
mesmo, transgressores. Três versões de Judas consiste em um misto de narrativa e
ensaio. Com esta configuração, o narrador-ensaista explicita as teses de um heresiarca,
chamado Nils Runeberg, acerca da figura de Judas Iscariotes. Há um adensamento da
hermenêutica sobre a temática da traição de Judas no decorrer da exposição. Os
argumentos de Runeberg, delineados pelo narrador, ganham mais corpo, isto é, ficam
mais elaborados na medida em que avançamos na leitura do conto, até redundarem na
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decifraƒ„o do enigma de Judas: o salvador da humanidade. Esta situaƒ„o leva Runeberg
a encontrar-se com a loucura e a morte. A narraƒ„o ˆ praticamente argumentaƒ„o.
O evangelho segundo LŽcifer n„o est† pautado numa voz pretensamente
“imparcial” como no texto borgiano. o prŠprio LŽcifer que propaga a sua not‰cia, ou
seja, a “boa-nova” n„o ˆ revelada por terceiros (diferentemente do que ocorre no cnone
b‰blico). O “Anjo de Luz” relata sua vers„o sobre os fatos da Criaƒ„o, da queda, do
cativeiro. Imputando a Deus a responsabilidade pelas cat†strofes no mundo, vocifera
que Ele ˆ o berƒo do mal e do pecado e que as escrituras n„o s„o sacrossantas, pelo
contr†rio, constituem alienaƒ„o e obscurem a verdade. A sua mensagem ˆ para que a
humanidade liberte-se da cegueira divina, evitando assim o Mal (Deus) e as misˆrias
que lhe ser„o infligidas. A LŽcifer cabe resignar-se com o destino cruel e reconhecer-se
incapaz, clamando, humildemente, a compreens„o do gnero humano. Este instante ˆ o
reconhecimento da vitŠria de Deus, ou seja, o fim dos tempos. H† uma reinvenƒ„o do
evangelho, da b‰blia, de si e, consequentemente, de Deus. D†-se no conto uma complexa
e irnica construƒ„o textual, cujo tom subversor se acentua na circularidade de ideias,
na resistncia de LŽcifer e na dominaƒ„o por dentro (matˆria on‰rica) e por fora
(emparedamento) de Deus sobre a conscincia e a aƒ„o da Serpente, o que reforƒa que
Ele ˆ o mal absoluto, desprovido da misericŠrdia. A narraƒ„o ˆ revelaƒ„o ‡s avessas.
Referências
ADORNO, T. W. Notas de literatura I. S„o Paulo: Duas Cidades; 34, 2003.
ANDRADE, A. C. Angústia da concisão: ensaios de filosofia e cr‰tica liter†ria. S„o
Paulo: Escrituras, 2003.
ARIST€TELES; HOR“CIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed. S„o Paulo: Cultrix,
1997.
BORGES, J. L. Obras completas. v.1. S„o Paulo: Globo, 1998.
_______. Obras completas. v. 3. S„o Paulo: Globo, 1999.
B”BLIA. Portugus. Bíblia sagrada. Traduƒ„o do Centro B‰blico CatŠlico. 86. ed. S„o
Paulo: Ave Maria, 1992. Ediƒ„o Claretiana.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histŠria liter†ria. 8. ed. S„o
Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
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GOUVEIA, A. O evangelho segundo Lúcifer. João Pessoa: Idéia, 2007.
O presente estudo apresenta uma comparação entre os contos Três versões de Judas,
de Jorge Luis Borges, e O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia. Pretende-se
enfocar os mecanismos estéticos de construção do discurso herético em ambos os
textos, analisando os aspectos convergentes e, mormente, os divergentes. A dissonância
consubstanciada nos referidos textos respeita a uma releitura crítica da tradição
bíblica que atribui a Judas Iscariotes a marca do traidor de Jesus Cristo, e a Lúcifer, o
protagonismo da degenerescência humana.
Palavras-chave: teologia, literatura, Jorge Luis Borges, Arturo Gouveia.
Introdução
Antonio Candido (2000, p. 22-23) divide a arte, mormente a da palavra, em dois
grupos: arte de agregaƒ„o e arte de segregaƒ„o. A primeira categoria abarca as formas e
express…es j† cristalizadas, filiando-se ‡ tradiƒ„o; ou seja, fulcra-se na experincia
coletiva, e, por isso, ˆ mais acess‰vel. A outra atualiza o sistema, instaurando a novidade
mediante a criaƒ„o de procedimentos e mecanismos estˆticos; logo, destina-se a uma
parcela reduzida da sociedade.
A literatura, haja vista seu car†ter essencialmente mimˆtico, constitui-se como
poiese, (re)criaƒ„o da realidade. Portanto, ˆ capaz de estabelecer pontos de contato com
a referida, bem como pode distanciar-se, seja desfigurando-a ou negando-a (CANDIDO,
2000, p. 12). Para corroborar a afirmaƒ„o acima acerca da natureza da arte liter†ria,
citamos AristŠteles (1997, p. 48) que leciona: “Quando plaus‰vel, o imposs‰vel se deve
preferir a um poss‰vel que n„o convenƒa”. Essa liƒ„o diz respeito ‡ quest„o da qualidade
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intr‰nseca da obra que deve suplantar os aspectos da verossimilhanƒa externa e nortear a
an†lise liter†ria.
A narrativa Três versões de Judas, de Jorge Luis Borges, destaca-se por sua forma
ensa‰stica. Ela apresenta vis…es acerca da figura de Judas Iscariotes, desmistificando o
seu car†ter de traidor de Cristo e apontando a sua relevncia para o plano salv‰fico da
humanidade.
Por sua vez, o conto Evangelho Segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia, exp…e a
perspectiva de LŽcifer, que contraria toda a tradiƒ„o b‰blica. A partir de sua prŠpria voz,
o “Anjo de Luz” imputa a Deus o papel de algoz da humanidade, responsabilizando-o
por todo o mal que a aflige. Para o narrador-personagem o verdadeiro "Usurpador" ˆ o
prŠprio Deus.
Como se pode depreender tais textos s„o subversivos e podem ser tidos como
herˆticos, tomando como parmetro a b‰blia e a exegese crist„ consolidada ao longo do
tempo. Eis o aspecto que, dentre outros, motivou o desenvolvimento deste estudo.
Baseando-nos principalmente nas consideraƒ…es de Antonio Candido sobre a arte de
segregaƒ„o, analisamos os contos e estabelecemos os aspectos convergentes e
divergentes.
Revelando outro Judas: a decifração do enigma
O conto de Borges em tela est† inserido no livro Ficções, publicado em 1944. A
narrativa estrutura-se a partir das trs teses do gnŠstico Nils Runeberg sobre Judas
Iscariotes1.
A narraƒ„o ˆ m‰nima, mas a discuss„o, a exposiƒ„o das ideias e os coment†rios
que constituem a ficƒ„o e entrelaƒam os fatos s„o o centro, consubstanciam o conflito
principal2. O texto constitui-se como artigo, em consonncia com as palavras do prŠprio
narrador-ensa‰sta (BORGES, p. 573).
1 Borges trata da figura de Judas, de forma tambˆm diversa do cnone b‰blico, em outro conto chamado
“A seita dos trinta” (BORGES, 1999). Indicamos ainda a leitura de KASSER, R. et al (orgs). O
Evangelho segundo Judas: do cŠdice tchacos. S„o Paulo: Prest‰gio, 2006.
2 Neste mesmo sentido ver GOUVEIA, A. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges,
Guimar„es Rosa e a teoria do conto). In: ________ (org.). Machado de Assis desce aos infernos. Jo„o
Pessoa: Idˆia, 2009, p. 44.
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Para o filŠsofo alem„o T. W. Adorno (2003, p. 37), “A conscincia da n„o-
identidade entre o modo de exposiƒ„o e a coisa imp…e ‡ exposiƒ„o um esforƒo sem
limites. Apenas nisso o ensaio ˆ semelhante ‡ arte; no resto, ele necessariamente se
aproxima da teoria, em raz„o dos conceitos que nele aparecem [...]”.
A construƒ„o textual do escritor argentino transcende os limites da separaƒ„o entre
as formas, n„o sŠ relativizando-os, mas quebrando-os. Misturando elementos, citaƒ…es,
noƒ…es, construtos teŠricos, autores ora fict‰cios3, ora “reais”, o narrador desmistifica a
“verdade” crist„, atravˆs de uma construƒ„o lŠgica e, portanto, racional. Todavia,
dialeticamente, essa racionalizaƒ„o ˆ engendrada pela mediaƒ„o poˆtica que expressa o
tom ficcional ‡ matˆria tratada4.
A primeira tese de Runeberg, explicitada pelo narrador, encontra-se presente no
livro Kristus och Judas (“Cristo e Judas”) do aludido heresiarca. Segundo o seu
entendimento a traiƒ„o de Judas configura-se como fato predeterminado na “economia
da redenƒ„o” (BORGES, p. 574). A construƒ„o argumentativa erige-se da noƒ„o de
encarnaƒ„o de Jesus, o que pode ser compreendido como degenerescncia. Sendo assim,
o disc‰pulo do Verbo – Judas Iscariotes – seguindo o seu Mestre, tambˆm deve rebaixar-
se. Entretanto o rebaixamento d†-se na condiƒ„o de delator. Por esse prisma Judas
reflete, de certa maneira, Jesus. Consoante apurou o narrador inŽmeras foram as
refutaƒ…es por parte dos teŠlogos de todos os credos ‡ argumentaƒ„o do heresiarca: a)
reflete ignorncia da dupla natureza de Cristo (uni„o hispost†tica); b) trata-se de uma
heresia; c) entra em contradiƒ„o com o evangelho de Lucas (cap‰tulo XXII).
Os questionamentos e as cr‰ticas repercutem na doutrina runeberguiana. O
gnŠstico reescreve parcialmente seu livro, “abandonando o terreno teolŠgico e
adotando, agora, obl‰quas raz…es morais” (BORGES, p. 575). Ele reconhece que Jesus
“n„o necessitava de um homem para redimir todos os homens” (BORGES, p. 575).
Contudo, fundamentando-se em passagens da B‰blia, passa a defender que Judas, como
um dos apŠstolos, “merece de nŠs a melhor interpretaƒ„o dos seus atos” (BORGES, p.
575). De acordo com o autor de Kristus och Judas, a traiƒ„o deve ser reinterpretada,
3 Por exemplo, a nota de nŽmero 3 do conto-ensaio remonta a uma observaƒ„o sobre a obra Vindicação
da eternidade, de Jaromir Hladik, protagonista de outra narrativa de J. L. Borges, que se intitula O
milagre secreto.Este conto integra o livro Ficƒ…es assim como Trs vers…es de Judas. Logo, a verdade n„o
passa de uma construƒ„o, ˆ ficƒ„o.
4 Nos termos de Davi Arrigucci, poder‰amos dizer que ocorre, concretamente, em “Trs vers…es de Judas”
a ficcionalizaƒ„o do ensaio (vide ARRIGUCCI, D. Borges ou do conto filosófico. In: BORGES, J. L.
Ficções. 6. ed. S„o Paulo: Globo, 1995).
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afinal, tem como teleologia a maior glŠria de Deus, da‰ o envilecimento e mortificaƒ„o
do esp‰rito, caracter‰sticos do ascetismo. Num gesto extremado de humildade, Judas
premeditou a culpa (fez-se delator), buscando, assim, deliberadamente o inferno, visto
que a felicidade do Senhor lhe era suficiente.
Nils Runeberg, com o desiderato de ratificar que a atitude de Judas ˆ fundamental
para a realizaƒ„o da remiss„o dos pecados e salvaƒ„o da humanidade por Jesus, faz
menƒ„o ‡ I Epístola de Paulo aos Coríntios, 1, 31: “O que se gloria, glorie-se no
Senhor”. Vale sublinhar, ainda, que o narrador-ensa‰sta em nota de rodapˆ constrŠi um
elo entre a postura de Judas e as palavras de Antnio Conselheiro – a virtude era “uma
quase impiedade” (personagem heresiarca do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha);
remonta, ainda, ‡s passagens da obra de Almafuerte, e, por Žltimo o articulista traz ‡
tona o poema simbolista A Água Secreta. Este, conforme reforƒa o narrador, termina
assim “A †gua da selva ˆ feliz; podemos ser maldosos e dolorosos”5. Estas associaƒ…es
dialogam com a convicƒ„o gnŠstica de que Judas cumpriu seu papel na redenƒ„o do
gnero humano, independentemente do julgamento que as pessoas poder„o fazer. A
alegria reside no cumprimento da miss„o dada pela divindade. Nesta Štica, podemos
concluir: sem traiƒ„o, n„o h† salvaƒ„o.
A Žltima tese de Runeberg, que est† plasmada no livro Den Hemlige Frälsaren6,
configura-se como “pervers„o” ou “exasperaƒ„o” de sua obra anterior. A conclus„o
edificada por ele ˆ a seguinte: “Deus se fez totalmente homem, porˆm homem atˆ a
infmia, homem atˆ a reprovaƒ„o e o abismo. Para nos salvar, pde escolher qualquer
dos destinos que tramam a perplexa rede da histŠria; pde ser Alexandre ou Pit†goras
ou Rurik ou Jesus; escolheu um ‰nfimo destino: foi Judas (p.577).”
Do exposto, deflui-se que o gnŠstico sustenta que o sacrif‰cio de Judas foi maior
que o de Cristo; portanto o “Žltimo dos homens”, o “var„o de dores”, prefigurado no
livro de Isa‰as, n„o ˆ o crucificado; ˆ aquele que est† despojado da graƒa e da glŠria, o
que entregou o Mestre, para que este pudesse realizar a salvaƒ„o da humanidade, ou
seja, o prŠprio Judas. Ciente da condenaƒ„o, ainda assim, entregou-se ‡ miss„o,
propiciando vida ‡ humanidade. Eis a revelaƒ„o de Runeberg. A recepƒ„o desta em
5 “A †gua da selva ˆ feliz consiste numa met†fora. A †gua pode ser entendida como o prŠprio Judas que
segue seu curso, consoante a liberdade concedida pela prŠpria natureza. A parte final do verso destacado
(“podemos ser maldosos e dolorosos”) aponta para a leitura cr‰tica que nos ˆ poss‰vel ser feita desse fato.
6 Interessante que o t‰tulo em portugus indica a tese runeberguiana: O Salvador Oculto, que ˆ o prŠprio
Judas.
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Estocolmo e Lund (ambas as cidades situadas na Suˆcia) n„o encontrou eco, apenas a
indiferenƒa. A reaƒ„o, para o gnŠstico, tem uma explicaƒ„o divina: “Deus ordenava essa
indiferenƒa; Deus n„o queria que se propagasse na terra Seu terr‰vel segredo”
(BORGES, 1998, p. 577).
O seu fim estava prenunciado, assim como aqueles que revelaram a Verdade ou a
encontraram n„o passam incŠlumes. A dŽvida, a certeza, o castigo, a blasfmia, o
del‰rio tomaram sua vida. Suplicando em gritos a graƒa de compartilhar com o Redentor
(Judas) o Inferno, Nils Runeberg faleceu. O desfecho do conto-ensaio retoma a sua
contribuiƒ„o herˆtica7: “[...] acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as
complexidades do mal e do infortŽnio” (BORGES, 1998, p. 577).
Segundo Adorno (2003, p. 45), “a lei formal mais profunda do ensaio ˆ a heresia.
Apenas a infraƒ„o ‡ ortodoxia do pensamento torna vis‰vel, na coisa, aquilo que a
finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invis‰vel”.
O conto-ensaio estudado corporifica a compreens„o adorniana da forma
ensa‰stica. Versando sobre quest…es teolŠgicas e filosŠficas, trabalhando conceitos, e
marcado pela construƒ„o lŠgica, sedimenta a heresia sob a ˆgide da arte, contrariando
toda a tradiƒ„o crist„ e o consenso popular acerca de Cristo e mais propriamente de
Judas, por um lado; de outra banda, reformula a noƒ„o de narrativa e ensaio.
O conto borgiano, por sua construƒ„o, ontologia e tem†tica, enquadra-se
perfeitamente como arte de segregaƒ„o, nos moldes de Antonio Candido.
A transgressão de AG: a notícia de Lúcifer
O evangelho segundo Lúcifer integra o livro que recebe o mesmo nome. Escrito
por Arturo Gouveia, renomado contista brasileiro, foi publicado em 2007. interessante
ressaltar que o t‰tulo do conto arturiano j† manifesta seu car†ter subversivo. Como
imaginar a boa not‰cia, ante o cnone b‰blico e sua presenƒa no inconsciente coletivo,
dada pelo Anjo deca‰do? A maestria da construƒ„o textual reside na vaz„o ao ponto de
7 A ep‰grafe em ingls do conto (atribu‰da a T. E. Lawrence) apresenta-nos antecipadamente a revelaƒ„o
de Nils Runeberg que ˆ dialˆtica: “Parecia haver uma certeza na degradaƒ„o”, qual seja: a traiƒ„o ˆ o
fundamento da salvaƒ„o dos seres humanos. Judas equipara-se ao Redentor.
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vista de LŽcifer, para ent„o questionar a sua condiƒ„o de cativo e inverter o jogo: a
culpa pelos males n„o ˆ sua e sim de Deus.
A aƒ„o ˆ m‰nima, o enredo desenvolve-se de modo truncado, porquanto reflete a
situaƒ„o do narrador-personagem. H† uma proeminncia da linguagem e da reflex„o.
Nesse aspecto, a narrativa de AG apresenta um car†ter doutrin†rio e teolŠgico insŠlito.
“Minha pris„o ˆ do tamanho exato do meu esqueleto” (GOUVEIA, 2007, p. 317),
afirma LŽcifer. De fato, o tamanho diminuto do c†rcere limita a sua aƒ„o, no entanto, a
mente trabalha continuamente. O microcosmos em que se encontra n„o o impede de
fazer elucubraƒ…es, constatar realidades e tecer cr‰ticas ao Usurpador, que ˆ para o
protagonista, Deus, que se apropriou da inteligncia no instante em que ia compartilh†-
la com este8. Desde ent„o foi emparedado9, e destitu‰do da glŠria, restando-lhe, apenas,
a ingest„o de esterco e vermes, sua Žnica forma de sobrevivncia, a recepƒ„o de
oxignio podre, e o contato com as escrituras “mentirosas”. O pensamento constitui
tambˆm a sua pris„o, seu mart‰rio. A maior tirania de Deus, segundo o prisioneiro, foi a
acusaƒ„o de ter feito o mal ‡ Criaƒ„o e a Ele.
As pupilas do emparedado possuem pregos, portanto, n„o podem ser fechadas;
vislumbra as cat†strofes e a cegueira da humanidade, fruto do fanatismo institu‰do pela
B‰blia. Contraditoriamente sua lucidez corresponde ‡ escurid„o dos humanos.
Fluidez da imaginaƒ„o e incapacidade de agir s„o, por conseguinte, as marcas
caracter‰sticas do cativo:
Minha mente n„o p†ra de trabalhar, ainda que meus olhos se esgotem
nessa posiƒ„o imut†vel. Ele acredita em minha rendiƒ„o para a
destruiƒ„o final. Que resposta eficaz poderei dar ao mais abomin†vel
dos seres? Basta lembrar que Deus ˆ o Žnico ser apŠcrifo, que sŠ tem
zelo pelo Inferno e por essas grades que me destroƒam. Sua Žnica
meta para a Humanidade, em dias prŠximos, ˆ a extinƒ„o. Da Žltima
vez que O vi, mesmo Ele desviando o olhar, pude identificar com
sutileza alguns dos Seus crimes futuros. N„o consigo compreender
com precis„o o que vi, mas ter visto j† me ˆ uma imensur†vel alegria.
Vi um sˆculo monstruoso enterrando, em poucos anos, milh…es de
pessoas; vi um cogumelo de fogo caindo sobre uma cidade indefesa,
incendiando berƒos e geraƒ…es futuras; vi crianƒas convertidas em
cinzas e jogadas no V‰stula; vi arsenais poderosos, de destruiƒ„o
imponder†vel, girando em torno da Terra; vi milh…es de esqueletos
trabalhando ‡ forƒa numa plan‰cie de gelo; vi seq‘ncias e seq‘ncias
de guerras, explodindo aldeias e continentes inteiros; vi uma menina
incendiada nua; vi umas m„es numa praƒa clamando por seus filhos,
todos pisunhados de torturas. (GOUVEIA, 2007, p. 320)
8 Dento desta perspectiva, LŽcifer apresenta-se como Criador.
9 O emparedamento do personagem faz-nos recordar o conto O gato preto, de Edgar Allan Poe.
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O trecho acima exprime a Štica luciferina, que contesta a divindade, invertendo os
pŠlos. O princ‰pio da Luz ˆ o prŠprio LŽcifer (note-se um nexo etimolŠgico) e o da
Treva ˆ Deus, art‰fice do mal e do pecado, que encaminha a humanidade para extinƒ„o.
Isto sŠ se dar† quando o Anjo sucumbir ao ultraje. Aquele consiste num ser apŠcrifo
(sem autenticidade, visto que n„o se manifesta diretamente, diferente de LŽcifer). A
contemplaƒ„o parcial dos olhos d’Ele indicam um per‰odo de caos. Se analisarmos as
imagens elencadas teremos alus…es a momentos histŠricos de extrema violncia do
sˆculo XX.
A conscincia do prisioneiro ˆ o Žnico reduto imune ‡ treva divina. Porˆm, o
aludido sente que o Usurpador passa a manipul†-la, a partir do sonho. Logo, a coerƒ„o
passa a ser por dentro, interna. “Mesmo com os olhos abertos, (....) consegui dormir,
submergir na letargia” (GOUVEIA, 2007, p. 321). A descriƒ„o do sonho ˆ ontolŠgica,
pois concretiza um labirinto (fagulha de conscincia dentro do sonho). L† h† a
confluncia da conscincia e do inconsciente, do presente, do futuro e do passado –
instante da criaƒ„o. A chance de acordar da ilus„o do c†rcere e a possibilidade de
transfiguraƒ„o da realidade plasma-se. LŽcifer enquanto Criador poderia excluir o Žnico
desastre da criaƒ„o. Todavia, a devassa ‰ntima por meio da manobra on‰rica consolida-
se. A pris„o exsurge no momento fatal10.
“Esse sono, o Žnico a que tive direito desde a sentenƒa, alterou para
sempre minha estima. Apesar de ser um anjo de luz, criador do
Universo e da Linguagem, minha eternidade est† com os dias
contados. N„o sinto apenas na carne esse final sinistro. Os terrores de
Deus tm conseguido penetrar em minha lucidez. [...] Com isso, Deus
substituir† minha perpetuidade pela perpetuidade do Mal. Morrerei
sem ter operado o milagre: corrigir meu prŠprio erro. Morrerei
sabendo que Deus ˆ a alma do Inferno. A Humanidade evite o
cogumelo de fogo, evite as cinzas do V‰stula, evite as m„es
desesperadas. Ainda h† tempo. a mensagem que deixo para uma
linda criatura que um dia idealizei e foi brutalmente deturpada,
seduzida pela serpente de Deus. Os homens, se ainda tiverem um
resqu‰cio da minha luz entendam, com carinho, os meus limites. Se j†
pressinto meu fim, n„o posso resgatar mais ninguˆm (GOUVEIA,
2007, p. 323).
O encadeamento narrativo leva-nos, como vimos no excerto transcrito, do sono de
LŽcifer ‡ reflex„o sobre o dom‰nio pleno de Deus da sua conscincia, Žltimo resqu‰cio
10 O procedimento de construƒ…es dos sonhos faz-nos remeter ‡ narrativa A escrita do deus, de Borges.
Ademais a possibilidade de deglutir as crianƒas no caminho aponta, ainda, para o mito de Chronos.
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de independncia, lucidez e criticidade. O tom dram†tico do conto constrŠi-se,
justamente, na desilus„o de LŽcifer face ‡ capacidade de libertar-se, resgatar a sua
imagem e salvar os seres humanos, mostrando-lhes a verdade. Encarcerado em si,
reconhece a sua finitude, sua limitaƒ„o. No desfecho da narrativa oferta uma advertncia
‡ humanidade. Por Žltimo, evocando a presenƒa de sua luz nela, ele acalenta a esperanƒa
de ganhar a compreens„o pela inaƒ„o.
Ainda sobre o conto, gostar‰amos de elucidar alguns pontos. O sono e o sonho
constituem a met†fora do fim do narrador-personagem. Tentando compreender o
significado dos sonhos, LŽcifer recupera a imagem de duas crianƒas: “A primeira se
chamava Is e tinha o nŽmero 14 selado a fogo na testa; a Žltima era Rev e seu corpo
triturado trazia o nŽmero 1220. Das outras, lembro apenas de uma massa amorfa, em
forma de vmito e excreƒ„o” (GOUVEIA, 2007, p. 323). As crianƒas abortadas que
surgem em del‰rios on‰ricos sequenciais, avolumam-se ‡ medida que exsurgem na
mente de LŽcifer. As marcas e as denominaƒ…es da primeira e da Žltima Is 14 e Rev
1220, respectivamente, s„o simbŠlicas.
O nome Is remete ao livro de Isa‰as11, presente no Antigo Testamento. O nŽmero
14 denota o cap‰tulo. Associando essas express…es, temos Isa‰as 14. Tal passagem
apresenta uma s†tira contundente a um oponente. H† nos vers‰culos b‰blicos a
celebraƒ„o da certeza da queda e morte do rei opressor e tirnico. O rei, a‰ focalizado, ˆ,
provavelmente Nabucodonosor, da Babilnia. Inobstante isso, encontramos uma
menƒ„o clara ‡ figura de Sat„:
Tua majestade desceu ‡ morada dos mortos,
acompanhada do som de tuas harpas.
Jazes sobre um leito de vermes
e os vermes s„o a tua coberta.
Ent„o! Ca‰ste dos cˆus,
astro brilhante, filho da aurora!
(Is 14, 11-12)
Com fulcro nesses versos, temos a aƒ„o poderosa de Javˆ que arrasa o inimigo.
o prenŽncio do que acontecer† a Nabucodonosor. A voz-poˆtica canta a humilhaƒ„o de
LŽcifer (= astro brilhante). Fazendo isso, profetiza o destino do rei da Babilnia e de
todos os que se insurgem contra Javˆ. Logo, o referido governante liga-se a Sat„.
Ressaltamos, ainda, que a humilhaƒ„o do povo babilnico ˆ cruel: ru‰na e exterm‰nio do
11 Is ˆ a abreviatura usual de Isa‰as.
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seu povo, inclusive com o massacre de toda a descendncia (Is 14, 21-23). O vers‰culo
19 do livro de Isa‰as reforƒa, a partir de outra construƒ„o imagˆtica, o ultraje infligido
ao rei: “Todos os reis das naƒ…es, todos repousam com glŠria, cada um no seu tŽmulo; /
tu, porˆm, foste atirado para longe do teu sepulcro, como um aborto que causa horror”
(Is 14, 18-19).
J† a Žltima crianƒa do sonho do “astro brilhante” chama-se Rev. Ela possui a
marca 1220. Rev, na nossa an†lise, ˆ a abreviatura de Revelaƒ„o, ou seja, Apocalipse,
mensagem reveladora. A numeraƒ„o 1220 pode ser desmembrada. Destarte, passamos a
ter 12 e 20, que s„o dois cap‰tulos importantes do texto de Jo„o, livro que encerra o
Novo Testamento. As mencionadas seƒ…es do Livro do Apocalipse (ou da Revelaƒ„o)
tratam da derrota da Serpente (LŽcifer). Em Apo 12, deparamo-nos com a descriƒ„o de
um combate no cˆu, em que o Drag„o, que personifica o mal, tenciona lutar contra as
estrelas (Deus), bem como aspira a devorar o filho da Mulher12, o Messias, que veio
para extermin†-lo. Contudo, as pretens…es daquele s„o frustradas. No cap‰tulo 20, Jo„o
narra a sorte da Serpente e a vitŠria definitiva de Deus.
Refletindo sobre as profecias do livro de Isa‰as (14) e a mensagem do Apocalipse
(12 e 20), notamos que elas se presentificam no sonho de LŽcifer. A Palavra Divina j†
invadia os recnditos da mente luciferina (as crianƒas abortadas e marcadas). Elas eram
o sinal da revelaƒ„o de Deus, anŽncio da derrota, pris„o, humilhaƒ„o e violncia, o fim
de LŽcifer.
Abrah„o Costa Andrade (2003, p. 176), afirma que Arturo Gouveia, em seus
contos, “desmantela certo esquema mental afeito a colocar em posiƒ„o de atrito linear o
bem e o mal.” Com efeito, no di†logo entre o texto ficcional analisado e o cnone
b‰blico, percebemos uma ruptura total, visto que a escolha de LŽcifer como narrador e
como protagonista manifesta uma atitude totalmente inventiva e questionadora, que
causa impacto e incompreens…es para quem l (invers„o da origem do mal13), haja vista
a forte heranƒa judaico-crist„ que impera no Ocidente. a efetivaƒ„o da chamada
poˆtica do incmodo (ANDRADE, 2003, p. 177).
12 A Mulher estava prestes a dar ‡ luz a um menino, que era o alvo do Drag„o.
13 O conto materializa a transgress„o dos evangelhos b‰blicos e, de certa maneira, a compreens„o
agostiniana sobre o mal (ver SANTO AGOSTINHO. Confissões. S„o Paulo: Martin Claret, 2002). A
narrativa, alˆm de recuperar o manique‰smo, isentando a humanidade, inverte a origem: o Mal provˆm de
Deus.
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Pela verificação que fizemos da narrativa arturiana, fica patente a sua
classificação no rol da arte de segregação.
As consonâncias e as dissonâncias: uma breve comparação
A aplicabilidade do conceito de arte de segregação nas narrativas Três versões de
Judas, de Jorge Luis Borges, e, O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia,
viabiliza a comparação destas.
Considerando que a segregação não é absoluta, enfocamos os aspectos que a
caracterizam, visto que prevalecem nos textos mencionados. A incursão comparatista
está radicada no engendramento da transgressão e subversão da forma e do conteúdo
que marcam os contos estudados.
Os personagens são distintos, mas compartilham o mesmo papel antagônico ante à
construção do reino celeste e da salvação dos homens por Cristo, e, por este motivo,
recebem o desprezo, a marginalidade, a periferia, seja na bíblia e em outros textos
literários, ao longo do tempo. As narrativas aqui estudadas, uma do século XX e outra
do XXI, estabelecem uma visão atípica sobre tais personagens, respectivamente, Judas e
Lúcifer, que são alçados à posição de centralidade. Mudando-se o ângulo, encontramos
nas narrativas a exposição de pontos de vista desmistificadores em relação a ambos,
efetivando-se, assim, a desconstrução da imagem que a tradição cristalizara. Judas, de
traidor passa a salvador, e, Lúcifer, a personificação do mal, fonte de todo pecado,
mostra-se como Criador, vítima da truculência de Deus, este sim, sob seu prisma, o
próprio mal. É a consagração da subversão temática, discurso herético por natureza.
A despeito dessa convergência, os aspectos estruturais são dissonantes e, ao
mesmo, transgressores. Três versões de Judas consiste em um misto de narrativa e
ensaio. Com esta configuração, o narrador-ensaista explicita as teses de um heresiarca,
chamado Nils Runeberg, acerca da figura de Judas Iscariotes. Há um adensamento da
hermenêutica sobre a temática da traição de Judas no decorrer da exposição. Os
argumentos de Runeberg, delineados pelo narrador, ganham mais corpo, isto é, ficam
mais elaborados na medida em que avançamos na leitura do conto, até redundarem na
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decifraƒ„o do enigma de Judas: o salvador da humanidade. Esta situaƒ„o leva Runeberg
a encontrar-se com a loucura e a morte. A narraƒ„o ˆ praticamente argumentaƒ„o.
O evangelho segundo LŽcifer n„o est† pautado numa voz pretensamente
“imparcial” como no texto borgiano. o prŠprio LŽcifer que propaga a sua not‰cia, ou
seja, a “boa-nova” n„o ˆ revelada por terceiros (diferentemente do que ocorre no cnone
b‰blico). O “Anjo de Luz” relata sua vers„o sobre os fatos da Criaƒ„o, da queda, do
cativeiro. Imputando a Deus a responsabilidade pelas cat†strofes no mundo, vocifera
que Ele ˆ o berƒo do mal e do pecado e que as escrituras n„o s„o sacrossantas, pelo
contr†rio, constituem alienaƒ„o e obscurem a verdade. A sua mensagem ˆ para que a
humanidade liberte-se da cegueira divina, evitando assim o Mal (Deus) e as misˆrias
que lhe ser„o infligidas. A LŽcifer cabe resignar-se com o destino cruel e reconhecer-se
incapaz, clamando, humildemente, a compreens„o do gnero humano. Este instante ˆ o
reconhecimento da vitŠria de Deus, ou seja, o fim dos tempos. H† uma reinvenƒ„o do
evangelho, da b‰blia, de si e, consequentemente, de Deus. D†-se no conto uma complexa
e irnica construƒ„o textual, cujo tom subversor se acentua na circularidade de ideias,
na resistncia de LŽcifer e na dominaƒ„o por dentro (matˆria on‰rica) e por fora
(emparedamento) de Deus sobre a conscincia e a aƒ„o da Serpente, o que reforƒa que
Ele ˆ o mal absoluto, desprovido da misericŠrdia. A narraƒ„o ˆ revelaƒ„o ‡s avessas.
Referências
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BORGES, J. L. Obras completas. v.1. S„o Paulo: Globo, 1998.
_______. Obras completas. v. 3. S„o Paulo: Globo, 1999.
B”BLIA. Portugus. Bíblia sagrada. Traduƒ„o do Centro B‰blico CatŠlico. 86. ed. S„o
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CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histŠria liter†ria. 8. ed. S„o
Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
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GOUVEIA, A. O evangelho segundo Lúcifer. João Pessoa: Idéia, 2007.