Resumo
O presente estudo apresenta uma comparação entre os contos Três versões de Judas,
de Jorge Luis Borges, e O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia. Pretende-se
enfocar os mecanismos estéticos de construção do discurso herético em ambos os
textos, analisando os aspectos convergentes e, mormente, os divergentes. A dissonância
consubstanciada nos referidos textos respeita a uma releitura crítica da tradição
bíblica que atribui a Judas Iscariotes a marca do traidor de Jesus Cristo, e a Lúcifer, o
protagonismo da degenerescência humana.
Palavras-chave: teologia, literatura, Jorge Luis Borges, Arturo Gouveia.
Introdução
Antonio Candido (2000, p. 22-23) divide a arte, mormente a da palavra, em dois
grupos: arte de agregao e arte de segregao. A primeira categoria abarca as formas e
express es j cristalizadas, filiando-se tradio; ou seja, fulcra-se na experincia
coletiva, e, por isso, mais acessvel. A outra atualiza o sistema, instaurando a novidade
mediante a criao de procedimentos e mecanismos estticos; logo, destina-se a uma
parcela reduzida da sociedade.
A literatura, haja vista seu carter essencialmente mimtico, constitui-se como
poiese, (re)criao da realidade. Portanto, capaz de estabelecer pontos de contato com
a referida, bem como pode distanciar-se, seja desfigurando-a ou negando-a (CANDIDO,
2000, p. 12). Para corroborar a afirmao acima acerca da natureza da arte literria,
citamos Aristteles (1997, p. 48) que leciona: “Quando plausvel, o impossvel se deve
preferir a um possvel que no convena”. Essa lio diz respeito questo da qualidade
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intrnseca da obra que deve suplantar os aspectos da verossimilhana externa e nortear a
anlise literria.
A narrativa Três versões de Judas, de Jorge Luis Borges, destaca-se por sua forma
ensastica. Ela apresenta vis es acerca da figura de Judas Iscariotes, desmistificando o
seu carter de traidor de Cristo e apontando a sua relevncia para o plano salvfico da
humanidade.
Por sua vez, o conto Evangelho Segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia, exp e a
perspectiva de Lcifer, que contraria toda a tradio bblica. A partir de sua prpria voz,
o “Anjo de Luz” imputa a Deus o papel de algoz da humanidade, responsabilizando-o
por todo o mal que a aflige. Para o narrador-personagem o verdadeiro "Usurpador" o
prprio Deus.
Como se pode depreender tais textos so subversivos e podem ser tidos como
herticos, tomando como parmetro a bblia e a exegese crist consolidada ao longo do
tempo. Eis o aspecto que, dentre outros, motivou o desenvolvimento deste estudo.
Baseando-nos principalmente nas considera es de Antonio Candido sobre a arte de
segregao, analisamos os contos e estabelecemos os aspectos convergentes e
divergentes.
Revelando outro Judas: a decifração do enigma
O conto de Borges em tela est inserido no livro Ficções, publicado em 1944. A
narrativa estrutura-se a partir das trs teses do gnstico Nils Runeberg sobre Judas
Iscariotes1.
A narrao mnima, mas a discusso, a exposio das ideias e os comentrios
que constituem a fico e entrelaam os fatos so o centro, consubstanciam o conflito
principal2. O texto constitui-se como artigo, em consonncia com as palavras do prprio
narrador-ensasta (BORGES, p. 573).
1 Borges trata da figura de Judas, de forma tambm diversa do cnone bblico, em outro conto chamado
“A seita dos trinta” (BORGES, 1999). Indicamos ainda a leitura de KASSER, R. et al (orgs). O
Evangelho segundo Judas: do cdice tchacos. So Paulo: Prestgio, 2006.
2 Neste mesmo sentido ver GOUVEIA, A. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges,
Guimares Rosa e a teoria do conto). In: ________ (org.). Machado de Assis desce aos infernos. Joo
Pessoa: Idia, 2009, p. 44.
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Para o filsofo alemo T. W. Adorno (2003, p. 37), “A conscincia da no-
identidade entre o modo de exposio e a coisa imp e exposio um esforo sem
limites. Apenas nisso o ensaio semelhante arte; no resto, ele necessariamente se
aproxima da teoria, em razo dos conceitos que nele aparecem [...]”.
A construo textual do escritor argentino transcende os limites da separao entre
as formas, no s relativizando-os, mas quebrando-os. Misturando elementos, cita es,
no es, construtos tericos, autores ora fictcios3, ora “reais”, o narrador desmistifica a
“verdade” crist, atravs de uma construo lgica e, portanto, racional. Todavia,
dialeticamente, essa racionalizao engendrada pela mediao potica que expressa o
tom ficcional matria tratada4.
A primeira tese de Runeberg, explicitada pelo narrador, encontra-se presente no
livro Kristus och Judas (“Cristo e Judas”) do aludido heresiarca. Segundo o seu
entendimento a traio de Judas configura-se como fato predeterminado na “economia
da redeno” (BORGES, p. 574). A construo argumentativa erige-se da noo de
encarnao de Jesus, o que pode ser compreendido como degenerescncia. Sendo assim,
o discpulo do Verbo – Judas Iscariotes – seguindo o seu Mestre, tambm deve rebaixar-
se. Entretanto o rebaixamento d-se na condio de delator. Por esse prisma Judas
reflete, de certa maneira, Jesus. Consoante apurou o narrador inmeras foram as
refuta es por parte dos telogos de todos os credos argumentao do heresiarca: a)
reflete ignorncia da dupla natureza de Cristo (unio hisposttica); b) trata-se de uma
heresia; c) entra em contradio com o evangelho de Lucas (captulo XXII).
Os questionamentos e as crticas repercutem na doutrina runeberguiana. O
gnstico reescreve parcialmente seu livro, “abandonando o terreno teolgico e
adotando, agora, oblquas raz es morais” (BORGES, p. 575). Ele reconhece que Jesus
“no necessitava de um homem para redimir todos os homens” (BORGES, p. 575).
Contudo, fundamentando-se em passagens da Bblia, passa a defender que Judas, como
um dos apstolos, “merece de ns a melhor interpretao dos seus atos” (BORGES, p.
575). De acordo com o autor de Kristus och Judas, a traio deve ser reinterpretada,
3 Por exemplo, a nota de nmero 3 do conto-ensaio remonta a uma observao sobre a obra Vindicação
da eternidade, de Jaromir Hladik, protagonista de outra narrativa de J. L. Borges, que se intitula O
milagre secreto.Este conto integra o livro Fic es assim como Trs vers es de Judas. Logo, a verdade no
passa de uma construo, fico.
4 Nos termos de Davi Arrigucci, poderamos dizer que ocorre, concretamente, em “Trs vers es de Judas”
a ficcionalizao do ensaio (vide ARRIGUCCI, D. Borges ou do conto filosófico. In: BORGES, J. L.
Ficções. 6. ed. So Paulo: Globo, 1995).
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afinal, tem como teleologia a maior glria de Deus, da o envilecimento e mortificao
do esprito, caractersticos do ascetismo. Num gesto extremado de humildade, Judas
premeditou a culpa (fez-se delator), buscando, assim, deliberadamente o inferno, visto
que a felicidade do Senhor lhe era suficiente.
Nils Runeberg, com o desiderato de ratificar que a atitude de Judas fundamental
para a realizao da remisso dos pecados e salvao da humanidade por Jesus, faz
meno I Epístola de Paulo aos Coríntios, 1, 31: “O que se gloria, glorie-se no
Senhor”. Vale sublinhar, ainda, que o narrador-ensasta em nota de rodap constri um
elo entre a postura de Judas e as palavras de Antnio Conselheiro – a virtude era “uma
quase impiedade” (personagem heresiarca do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha);
remonta, ainda, s passagens da obra de Almafuerte, e, por ltimo o articulista traz
tona o poema simbolista A Água Secreta. Este, conforme refora o narrador, termina
assim “A gua da selva feliz; podemos ser maldosos e dolorosos”5. Estas associa es
dialogam com a convico gnstica de que Judas cumpriu seu papel na redeno do
gnero humano, independentemente do julgamento que as pessoas podero fazer. A
alegria reside no cumprimento da misso dada pela divindade. Nesta tica, podemos
concluir: sem traio, no h salvao.
A ltima tese de Runeberg, que est plasmada no livro Den Hemlige Frälsaren6,
configura-se como “perverso” ou “exasperao” de sua obra anterior. A concluso
edificada por ele a seguinte: “Deus se fez totalmente homem, porm homem at a
infmia, homem at a reprovao e o abismo. Para nos salvar, pde escolher qualquer
dos destinos que tramam a perplexa rede da histria; pde ser Alexandre ou Pitgoras
ou Rurik ou Jesus; escolheu um nfimo destino: foi Judas (p.577).”
Do exposto, deflui-se que o gnstico sustenta que o sacrifcio de Judas foi maior
que o de Cristo; portanto o “ltimo dos homens”, o “varo de dores”, prefigurado no
livro de Isaas, no o crucificado; aquele que est despojado da graa e da glria, o
que entregou o Mestre, para que este pudesse realizar a salvao da humanidade, ou
seja, o prprio Judas. Ciente da condenao, ainda assim, entregou-se misso,
propiciando vida humanidade. Eis a revelao de Runeberg. A recepo desta em
5 “A gua da selva feliz consiste numa metfora. A gua pode ser entendida como o prprio Judas que
segue seu curso, consoante a liberdade concedida pela prpria natureza. A parte final do verso destacado
(“podemos ser maldosos e dolorosos”) aponta para a leitura crtica que nos possvel ser feita desse fato.
6 Interessante que o ttulo em portugus indica a tese runeberguiana: O Salvador Oculto, que o prprio
Judas.
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Estocolmo e Lund (ambas as cidades situadas na Sucia) no encontrou eco, apenas a
indiferena. A reao, para o gnstico, tem uma explicao divina: “Deus ordenava essa
indiferena; Deus no queria que se propagasse na terra Seu terrvel segredo”
(BORGES, 1998, p. 577).
O seu fim estava prenunciado, assim como aqueles que revelaram a Verdade ou a
encontraram no passam inclumes. A dvida, a certeza, o castigo, a blasfmia, o
delrio tomaram sua vida. Suplicando em gritos a graa de compartilhar com o Redentor
(Judas) o Inferno, Nils Runeberg faleceu. O desfecho do conto-ensaio retoma a sua
contribuio hertica7: “[...] acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as
complexidades do mal e do infortnio” (BORGES, 1998, p. 577).
Segundo Adorno (2003, p. 45), “a lei formal mais profunda do ensaio a heresia.
Apenas a infrao ortodoxia do pensamento torna visvel, na coisa, aquilo que a
finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisvel”.
O conto-ensaio estudado corporifica a compreenso adorniana da forma
ensastica. Versando sobre quest es teolgicas e filosficas, trabalhando conceitos, e
marcado pela construo lgica, sedimenta a heresia sob a gide da arte, contrariando
toda a tradio crist e o consenso popular acerca de Cristo e mais propriamente de
Judas, por um lado; de outra banda, reformula a noo de narrativa e ensaio.
O conto borgiano, por sua construo, ontologia e temtica, enquadra-se
perfeitamente como arte de segregao, nos moldes de Antonio Candido.
A transgressão de AG: a notícia de Lúcifer
O evangelho segundo Lúcifer integra o livro que recebe o mesmo nome. Escrito
por Arturo Gouveia, renomado contista brasileiro, foi publicado em 2007. interessante
ressaltar que o ttulo do conto arturiano j manifesta seu carter subversivo. Como
imaginar a boa notcia, ante o cnone bblico e sua presena no inconsciente coletivo,
dada pelo Anjo decado? A maestria da construo textual reside na vazo ao ponto de
7 A epgrafe em ingls do conto (atribuda a T. E. Lawrence) apresenta-nos antecipadamente a revelao
de Nils Runeberg que dialtica: “Parecia haver uma certeza na degradao”, qual seja: a traio o
fundamento da salvao dos seres humanos. Judas equipara-se ao Redentor.
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vista de Lcifer, para ento questionar a sua condio de cativo e inverter o jogo: a
culpa pelos males no sua e sim de Deus.
A ao mnima, o enredo desenvolve-se de modo truncado, porquanto reflete a
situao do narrador-personagem. H uma proeminncia da linguagem e da reflexo.
Nesse aspecto, a narrativa de AG apresenta um carter doutrinrio e teolgico inslito.
“Minha priso do tamanho exato do meu esqueleto” (GOUVEIA, 2007, p. 317),
afirma Lcifer. De fato, o tamanho diminuto do crcere limita a sua ao, no entanto, a
mente trabalha continuamente. O microcosmos em que se encontra no o impede de
fazer elucubra es, constatar realidades e tecer crticas ao Usurpador, que para o
protagonista, Deus, que se apropriou da inteligncia no instante em que ia compartilh-
la com este8. Desde ento foi emparedado9, e destitudo da glria, restando-lhe, apenas,
a ingesto de esterco e vermes, sua nica forma de sobrevivncia, a recepo de
oxignio podre, e o contato com as escrituras “mentirosas”. O pensamento constitui
tambm a sua priso, seu martrio. A maior tirania de Deus, segundo o prisioneiro, foi a
acusao de ter feito o mal Criao e a Ele.
As pupilas do emparedado possuem pregos, portanto, no podem ser fechadas;
vislumbra as catstrofes e a cegueira da humanidade, fruto do fanatismo institudo pela
Bblia. Contraditoriamente sua lucidez corresponde escurido dos humanos.
Fluidez da imaginao e incapacidade de agir so, por conseguinte, as marcas
caractersticas do cativo:
Minha mente no pra de trabalhar, ainda que meus olhos se esgotem
nessa posio imutvel. Ele acredita em minha rendio para a
destruio final. Que resposta eficaz poderei dar ao mais abominvel
dos seres? Basta lembrar que Deus o nico ser apcrifo, que s tem
zelo pelo Inferno e por essas grades que me destroam. Sua nica
meta para a Humanidade, em dias prximos, a extino. Da ltima
vez que O vi, mesmo Ele desviando o olhar, pude identificar com
sutileza alguns dos Seus crimes futuros. No consigo compreender
com preciso o que vi, mas ter visto j me uma imensurvel alegria.
Vi um sculo monstruoso enterrando, em poucos anos, milh es de
pessoas; vi um cogumelo de fogo caindo sobre uma cidade indefesa,
incendiando beros e gera es futuras; vi crianas convertidas em
cinzas e jogadas no Vstula; vi arsenais poderosos, de destruio
impondervel, girando em torno da Terra; vi milh es de esqueletos
trabalhando fora numa plancie de gelo; vi seqncias e seqncias
de guerras, explodindo aldeias e continentes inteiros; vi uma menina
incendiada nua; vi umas mes numa praa clamando por seus filhos,
todos pisunhados de torturas. (GOUVEIA, 2007, p. 320)
8 Dento desta perspectiva, Lcifer apresenta-se como Criador.
9 O emparedamento do personagem faz-nos recordar o conto O gato preto, de Edgar Allan Poe.
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O trecho acima exprime a tica luciferina, que contesta a divindade, invertendo os
plos. O princpio da Luz o prprio Lcifer (note-se um nexo etimolgico) e o da
Treva Deus, artfice do mal e do pecado, que encaminha a humanidade para extino.
Isto s se dar quando o Anjo sucumbir ao ultraje. Aquele consiste num ser apcrifo
(sem autenticidade, visto que no se manifesta diretamente, diferente de Lcifer). A
contemplao parcial dos olhos d’Ele indicam um perodo de caos. Se analisarmos as
imagens elencadas teremos alus es a momentos histricos de extrema violncia do
sculo XX.
A conscincia do prisioneiro o nico reduto imune treva divina. Porm, o
aludido sente que o Usurpador passa a manipul-la, a partir do sonho. Logo, a coero
passa a ser por dentro, interna. “Mesmo com os olhos abertos, (....) consegui dormir,
submergir na letargia” (GOUVEIA, 2007, p. 321). A descrio do sonho ontolgica,
pois concretiza um labirinto (fagulha de conscincia dentro do sonho). L h a
confluncia da conscincia e do inconsciente, do presente, do futuro e do passado –
instante da criao. A chance de acordar da iluso do crcere e a possibilidade de
transfigurao da realidade plasma-se. Lcifer enquanto Criador poderia excluir o nico
desastre da criao. Todavia, a devassa ntima por meio da manobra onrica consolida-
se. A priso exsurge no momento fatal10.
“Esse sono, o nico a que tive direito desde a sentena, alterou para
sempre minha estima. Apesar de ser um anjo de luz, criador do
Universo e da Linguagem, minha eternidade est com os dias
contados. No sinto apenas na carne esse final sinistro. Os terrores de
Deus tm conseguido penetrar em minha lucidez. [...] Com isso, Deus
substituir minha perpetuidade pela perpetuidade do Mal. Morrerei
sem ter operado o milagre: corrigir meu prprio erro. Morrerei
sabendo que Deus a alma do Inferno. A Humanidade evite o
cogumelo de fogo, evite as cinzas do Vstula, evite as mes
desesperadas. Ainda h tempo. a mensagem que deixo para uma
linda criatura que um dia idealizei e foi brutalmente deturpada,
seduzida pela serpente de Deus. Os homens, se ainda tiverem um
resqucio da minha luz entendam, com carinho, os meus limites. Se j
pressinto meu fim, no posso resgatar mais ningum (GOUVEIA,
2007, p. 323).
O encadeamento narrativo leva-nos, como vimos no excerto transcrito, do sono de
Lcifer reflexo sobre o domnio pleno de Deus da sua conscincia, ltimo resqucio
10 O procedimento de constru es dos sonhos faz-nos remeter narrativa A escrita do deus, de Borges.
Ademais a possibilidade de deglutir as crianas no caminho aponta, ainda, para o mito de Chronos.
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de independncia, lucidez e criticidade. O tom dramtico do conto constri-se,
justamente, na desiluso de Lcifer face capacidade de libertar-se, resgatar a sua
imagem e salvar os seres humanos, mostrando-lhes a verdade. Encarcerado em si,
reconhece a sua finitude, sua limitao. No desfecho da narrativa oferta uma advertncia
humanidade. Por ltimo, evocando a presena de sua luz nela, ele acalenta a esperana
de ganhar a compreenso pela inao.
Ainda sobre o conto, gostaramos de elucidar alguns pontos. O sono e o sonho
constituem a metfora do fim do narrador-personagem. Tentando compreender o
significado dos sonhos, Lcifer recupera a imagem de duas crianas: “A primeira se
chamava Is e tinha o nmero 14 selado a fogo na testa; a ltima era Rev e seu corpo
triturado trazia o nmero 1220. Das outras, lembro apenas de uma massa amorfa, em
forma de vmito e excreo” (GOUVEIA, 2007, p. 323). As crianas abortadas que
surgem em delrios onricos sequenciais, avolumam-se medida que exsurgem na
mente de Lcifer. As marcas e as denomina es da primeira e da ltima Is 14 e Rev
1220, respectivamente, so simblicas.
O nome Is remete ao livro de Isaas11, presente no Antigo Testamento. O nmero
14 denota o captulo. Associando essas express es, temos Isaas 14. Tal passagem
apresenta uma stira contundente a um oponente. H nos versculos bblicos a
celebrao da certeza da queda e morte do rei opressor e tirnico. O rei, a focalizado, ,
provavelmente Nabucodonosor, da Babilnia. Inobstante isso, encontramos uma
meno clara figura de Sat:
Tua majestade desceu morada dos mortos,
acompanhada do som de tuas harpas.
Jazes sobre um leito de vermes
e os vermes so a tua coberta.
Ento! Caste dos cus,
astro brilhante, filho da aurora!
(Is 14, 11-12)
Com fulcro nesses versos, temos a ao poderosa de Jav que arrasa o inimigo.
o prenncio do que acontecer a Nabucodonosor. A voz-potica canta a humilhao de
Lcifer (= astro brilhante). Fazendo isso, profetiza o destino do rei da Babilnia e de
todos os que se insurgem contra Jav. Logo, o referido governante liga-se a Sat.
Ressaltamos, ainda, que a humilhao do povo babilnico cruel: runa e extermnio do
11 Is a abreviatura usual de Isaas.
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seu povo, inclusive com o massacre de toda a descendncia (Is 14, 21-23). O versculo
19 do livro de Isaas refora, a partir de outra construo imagtica, o ultraje infligido
ao rei: “Todos os reis das na es, todos repousam com glria, cada um no seu tmulo; /
tu, porm, foste atirado para longe do teu sepulcro, como um aborto que causa horror”
(Is 14, 18-19).
J a ltima criana do sonho do “astro brilhante” chama-se Rev. Ela possui a
marca 1220. Rev, na nossa anlise, a abreviatura de Revelao, ou seja, Apocalipse,
mensagem reveladora. A numerao 1220 pode ser desmembrada. Destarte, passamos a
ter 12 e 20, que so dois captulos importantes do texto de Joo, livro que encerra o
Novo Testamento. As mencionadas se es do Livro do Apocalipse (ou da Revelao)
tratam da derrota da Serpente (Lcifer). Em Apo 12, deparamo-nos com a descrio de
um combate no cu, em que o Drago, que personifica o mal, tenciona lutar contra as
estrelas (Deus), bem como aspira a devorar o filho da Mulher12, o Messias, que veio
para extermin-lo. Contudo, as pretens es daquele so frustradas. No captulo 20, Joo
narra a sorte da Serpente e a vitria definitiva de Deus.
Refletindo sobre as profecias do livro de Isaas (14) e a mensagem do Apocalipse
(12 e 20), notamos que elas se presentificam no sonho de Lcifer. A Palavra Divina j
invadia os recnditos da mente luciferina (as crianas abortadas e marcadas). Elas eram
o sinal da revelao de Deus, anncio da derrota, priso, humilhao e violncia, o fim
de Lcifer.
Abraho Costa Andrade (2003, p. 176), afirma que Arturo Gouveia, em seus
contos, “desmantela certo esquema mental afeito a colocar em posio de atrito linear o
bem e o mal.” Com efeito, no dilogo entre o texto ficcional analisado e o cnone
bblico, percebemos uma ruptura total, visto que a escolha de Lcifer como narrador e
como protagonista manifesta uma atitude totalmente inventiva e questionadora, que
causa impacto e incompreens es para quem l (inverso da origem do mal13), haja vista
a forte herana judaico-crist que impera no Ocidente. a efetivao da chamada
potica do incmodo (ANDRADE, 2003, p. 177).
12 A Mulher estava prestes a dar luz a um menino, que era o alvo do Drago.
13 O conto materializa a transgresso dos evangelhos bblicos e, de certa maneira, a compreenso
agostiniana sobre o mal (ver SANTO AGOSTINHO. Confissões. So Paulo: Martin Claret, 2002). A
narrativa, alm de recuperar o maniquesmo, isentando a humanidade, inverte a origem: o Mal provm de
Deus.
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Pela verificação que fizemos da narrativa arturiana, fica patente a sua
classificação no rol da arte de segregação.
As consonâncias e as dissonâncias: uma breve comparação
A aplicabilidade do conceito de arte de segregação nas narrativas Três versões de
Judas, de Jorge Luis Borges, e, O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia,
viabiliza a comparação destas.
Considerando que a segregação não é absoluta, enfocamos os aspectos que a
caracterizam, visto que prevalecem nos textos mencionados. A incursão comparatista
está radicada no engendramento da transgressão e subversão da forma e do conteúdo
que marcam os contos estudados.
Os personagens são distintos, mas compartilham o mesmo papel antagônico ante à
construção do reino celeste e da salvação dos homens por Cristo, e, por este motivo,
recebem o desprezo, a marginalidade, a periferia, seja na bíblia e em outros textos
literários, ao longo do tempo. As narrativas aqui estudadas, uma do século XX e outra
do XXI, estabelecem uma visão atípica sobre tais personagens, respectivamente, Judas e
Lúcifer, que são alçados à posição de centralidade. Mudando-se o ângulo, encontramos
nas narrativas a exposição de pontos de vista desmistificadores em relação a ambos,
efetivando-se, assim, a desconstrução da imagem que a tradição cristalizara. Judas, de
traidor passa a salvador, e, Lúcifer, a personificação do mal, fonte de todo pecado,
mostra-se como Criador, vítima da truculência de Deus, este sim, sob seu prisma, o
próprio mal. É a consagração da subversão temática, discurso herético por natureza.
A despeito dessa convergência, os aspectos estruturais são dissonantes e, ao
mesmo, transgressores. Três versões de Judas consiste em um misto de narrativa e
ensaio. Com esta configuração, o narrador-ensaista explicita as teses de um heresiarca,
chamado Nils Runeberg, acerca da figura de Judas Iscariotes. Há um adensamento da
hermenêutica sobre a temática da traição de Judas no decorrer da exposição. Os
argumentos de Runeberg, delineados pelo narrador, ganham mais corpo, isto é, ficam
mais elaborados na medida em que avançamos na leitura do conto, até redundarem na
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decifrao do enigma de Judas: o salvador da humanidade. Esta situao leva Runeberg
a encontrar-se com a loucura e a morte. A narrao praticamente argumentao.
O evangelho segundo Lcifer no est pautado numa voz pretensamente
“imparcial” como no texto borgiano. o prprio Lcifer que propaga a sua notcia, ou
seja, a “boa-nova” no revelada por terceiros (diferentemente do que ocorre no cnone
bblico). O “Anjo de Luz” relata sua verso sobre os fatos da Criao, da queda, do
cativeiro. Imputando a Deus a responsabilidade pelas catstrofes no mundo, vocifera
que Ele o bero do mal e do pecado e que as escrituras no so sacrossantas, pelo
contrrio, constituem alienao e obscurem a verdade. A sua mensagem para que a
humanidade liberte-se da cegueira divina, evitando assim o Mal (Deus) e as misrias
que lhe sero infligidas. A Lcifer cabe resignar-se com o destino cruel e reconhecer-se
incapaz, clamando, humildemente, a compreenso do gnero humano. Este instante o
reconhecimento da vitria de Deus, ou seja, o fim dos tempos. H uma reinveno do
evangelho, da bblia, de si e, consequentemente, de Deus. D-se no conto uma complexa
e irnica construo textual, cujo tom subversor se acentua na circularidade de ideias,
na resistncia de Lcifer e na dominao por dentro (matria onrica) e por fora
(emparedamento) de Deus sobre a conscincia e a ao da Serpente, o que refora que
Ele o mal absoluto, desprovido da misericrdia. A narrao revelao s avessas.
Referências
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GOUVEIA, A. O evangelho segundo Lúcifer. João Pessoa: Idéia, 2007.
O presente estudo apresenta uma comparação entre os contos Três versões de Judas,
de Jorge Luis Borges, e O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia. Pretende-se
enfocar os mecanismos estéticos de construção do discurso herético em ambos os
textos, analisando os aspectos convergentes e, mormente, os divergentes. A dissonância
consubstanciada nos referidos textos respeita a uma releitura crítica da tradição
bíblica que atribui a Judas Iscariotes a marca do traidor de Jesus Cristo, e a Lúcifer, o
protagonismo da degenerescência humana.
Palavras-chave: teologia, literatura, Jorge Luis Borges, Arturo Gouveia.
Introdução
Antonio Candido (2000, p. 22-23) divide a arte, mormente a da palavra, em dois
grupos: arte de agregao e arte de segregao. A primeira categoria abarca as formas e
express es j cristalizadas, filiando-se tradio; ou seja, fulcra-se na experincia
coletiva, e, por isso, mais acessvel. A outra atualiza o sistema, instaurando a novidade
mediante a criao de procedimentos e mecanismos estticos; logo, destina-se a uma
parcela reduzida da sociedade.
A literatura, haja vista seu carter essencialmente mimtico, constitui-se como
poiese, (re)criao da realidade. Portanto, capaz de estabelecer pontos de contato com
a referida, bem como pode distanciar-se, seja desfigurando-a ou negando-a (CANDIDO,
2000, p. 12). Para corroborar a afirmao acima acerca da natureza da arte literria,
citamos Aristteles (1997, p. 48) que leciona: “Quando plausvel, o impossvel se deve
preferir a um possvel que no convena”. Essa lio diz respeito questo da qualidade
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intrnseca da obra que deve suplantar os aspectos da verossimilhana externa e nortear a
anlise literria.
A narrativa Três versões de Judas, de Jorge Luis Borges, destaca-se por sua forma
ensastica. Ela apresenta vis es acerca da figura de Judas Iscariotes, desmistificando o
seu carter de traidor de Cristo e apontando a sua relevncia para o plano salvfico da
humanidade.
Por sua vez, o conto Evangelho Segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia, exp e a
perspectiva de Lcifer, que contraria toda a tradio bblica. A partir de sua prpria voz,
o “Anjo de Luz” imputa a Deus o papel de algoz da humanidade, responsabilizando-o
por todo o mal que a aflige. Para o narrador-personagem o verdadeiro "Usurpador" o
prprio Deus.
Como se pode depreender tais textos so subversivos e podem ser tidos como
herticos, tomando como parmetro a bblia e a exegese crist consolidada ao longo do
tempo. Eis o aspecto que, dentre outros, motivou o desenvolvimento deste estudo.
Baseando-nos principalmente nas considera es de Antonio Candido sobre a arte de
segregao, analisamos os contos e estabelecemos os aspectos convergentes e
divergentes.
Revelando outro Judas: a decifração do enigma
O conto de Borges em tela est inserido no livro Ficções, publicado em 1944. A
narrativa estrutura-se a partir das trs teses do gnstico Nils Runeberg sobre Judas
Iscariotes1.
A narrao mnima, mas a discusso, a exposio das ideias e os comentrios
que constituem a fico e entrelaam os fatos so o centro, consubstanciam o conflito
principal2. O texto constitui-se como artigo, em consonncia com as palavras do prprio
narrador-ensasta (BORGES, p. 573).
1 Borges trata da figura de Judas, de forma tambm diversa do cnone bblico, em outro conto chamado
“A seita dos trinta” (BORGES, 1999). Indicamos ainda a leitura de KASSER, R. et al (orgs). O
Evangelho segundo Judas: do cdice tchacos. So Paulo: Prestgio, 2006.
2 Neste mesmo sentido ver GOUVEIA, A. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges,
Guimares Rosa e a teoria do conto). In: ________ (org.). Machado de Assis desce aos infernos. Joo
Pessoa: Idia, 2009, p. 44.
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Para o filsofo alemo T. W. Adorno (2003, p. 37), “A conscincia da no-
identidade entre o modo de exposio e a coisa imp e exposio um esforo sem
limites. Apenas nisso o ensaio semelhante arte; no resto, ele necessariamente se
aproxima da teoria, em razo dos conceitos que nele aparecem [...]”.
A construo textual do escritor argentino transcende os limites da separao entre
as formas, no s relativizando-os, mas quebrando-os. Misturando elementos, cita es,
no es, construtos tericos, autores ora fictcios3, ora “reais”, o narrador desmistifica a
“verdade” crist, atravs de uma construo lgica e, portanto, racional. Todavia,
dialeticamente, essa racionalizao engendrada pela mediao potica que expressa o
tom ficcional matria tratada4.
A primeira tese de Runeberg, explicitada pelo narrador, encontra-se presente no
livro Kristus och Judas (“Cristo e Judas”) do aludido heresiarca. Segundo o seu
entendimento a traio de Judas configura-se como fato predeterminado na “economia
da redeno” (BORGES, p. 574). A construo argumentativa erige-se da noo de
encarnao de Jesus, o que pode ser compreendido como degenerescncia. Sendo assim,
o discpulo do Verbo – Judas Iscariotes – seguindo o seu Mestre, tambm deve rebaixar-
se. Entretanto o rebaixamento d-se na condio de delator. Por esse prisma Judas
reflete, de certa maneira, Jesus. Consoante apurou o narrador inmeras foram as
refuta es por parte dos telogos de todos os credos argumentao do heresiarca: a)
reflete ignorncia da dupla natureza de Cristo (unio hisposttica); b) trata-se de uma
heresia; c) entra em contradio com o evangelho de Lucas (captulo XXII).
Os questionamentos e as crticas repercutem na doutrina runeberguiana. O
gnstico reescreve parcialmente seu livro, “abandonando o terreno teolgico e
adotando, agora, oblquas raz es morais” (BORGES, p. 575). Ele reconhece que Jesus
“no necessitava de um homem para redimir todos os homens” (BORGES, p. 575).
Contudo, fundamentando-se em passagens da Bblia, passa a defender que Judas, como
um dos apstolos, “merece de ns a melhor interpretao dos seus atos” (BORGES, p.
575). De acordo com o autor de Kristus och Judas, a traio deve ser reinterpretada,
3 Por exemplo, a nota de nmero 3 do conto-ensaio remonta a uma observao sobre a obra Vindicação
da eternidade, de Jaromir Hladik, protagonista de outra narrativa de J. L. Borges, que se intitula O
milagre secreto.Este conto integra o livro Fic es assim como Trs vers es de Judas. Logo, a verdade no
passa de uma construo, fico.
4 Nos termos de Davi Arrigucci, poderamos dizer que ocorre, concretamente, em “Trs vers es de Judas”
a ficcionalizao do ensaio (vide ARRIGUCCI, D. Borges ou do conto filosófico. In: BORGES, J. L.
Ficções. 6. ed. So Paulo: Globo, 1995).
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afinal, tem como teleologia a maior glria de Deus, da o envilecimento e mortificao
do esprito, caractersticos do ascetismo. Num gesto extremado de humildade, Judas
premeditou a culpa (fez-se delator), buscando, assim, deliberadamente o inferno, visto
que a felicidade do Senhor lhe era suficiente.
Nils Runeberg, com o desiderato de ratificar que a atitude de Judas fundamental
para a realizao da remisso dos pecados e salvao da humanidade por Jesus, faz
meno I Epístola de Paulo aos Coríntios, 1, 31: “O que se gloria, glorie-se no
Senhor”. Vale sublinhar, ainda, que o narrador-ensasta em nota de rodap constri um
elo entre a postura de Judas e as palavras de Antnio Conselheiro – a virtude era “uma
quase impiedade” (personagem heresiarca do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha);
remonta, ainda, s passagens da obra de Almafuerte, e, por ltimo o articulista traz
tona o poema simbolista A Água Secreta. Este, conforme refora o narrador, termina
assim “A gua da selva feliz; podemos ser maldosos e dolorosos”5. Estas associa es
dialogam com a convico gnstica de que Judas cumpriu seu papel na redeno do
gnero humano, independentemente do julgamento que as pessoas podero fazer. A
alegria reside no cumprimento da misso dada pela divindade. Nesta tica, podemos
concluir: sem traio, no h salvao.
A ltima tese de Runeberg, que est plasmada no livro Den Hemlige Frälsaren6,
configura-se como “perverso” ou “exasperao” de sua obra anterior. A concluso
edificada por ele a seguinte: “Deus se fez totalmente homem, porm homem at a
infmia, homem at a reprovao e o abismo. Para nos salvar, pde escolher qualquer
dos destinos que tramam a perplexa rede da histria; pde ser Alexandre ou Pitgoras
ou Rurik ou Jesus; escolheu um nfimo destino: foi Judas (p.577).”
Do exposto, deflui-se que o gnstico sustenta que o sacrifcio de Judas foi maior
que o de Cristo; portanto o “ltimo dos homens”, o “varo de dores”, prefigurado no
livro de Isaas, no o crucificado; aquele que est despojado da graa e da glria, o
que entregou o Mestre, para que este pudesse realizar a salvao da humanidade, ou
seja, o prprio Judas. Ciente da condenao, ainda assim, entregou-se misso,
propiciando vida humanidade. Eis a revelao de Runeberg. A recepo desta em
5 “A gua da selva feliz consiste numa metfora. A gua pode ser entendida como o prprio Judas que
segue seu curso, consoante a liberdade concedida pela prpria natureza. A parte final do verso destacado
(“podemos ser maldosos e dolorosos”) aponta para a leitura crtica que nos possvel ser feita desse fato.
6 Interessante que o ttulo em portugus indica a tese runeberguiana: O Salvador Oculto, que o prprio
Judas.
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Estocolmo e Lund (ambas as cidades situadas na Sucia) no encontrou eco, apenas a
indiferena. A reao, para o gnstico, tem uma explicao divina: “Deus ordenava essa
indiferena; Deus no queria que se propagasse na terra Seu terrvel segredo”
(BORGES, 1998, p. 577).
O seu fim estava prenunciado, assim como aqueles que revelaram a Verdade ou a
encontraram no passam inclumes. A dvida, a certeza, o castigo, a blasfmia, o
delrio tomaram sua vida. Suplicando em gritos a graa de compartilhar com o Redentor
(Judas) o Inferno, Nils Runeberg faleceu. O desfecho do conto-ensaio retoma a sua
contribuio hertica7: “[...] acrescentou ao conceito do Filho, que parecia exaurido, as
complexidades do mal e do infortnio” (BORGES, 1998, p. 577).
Segundo Adorno (2003, p. 45), “a lei formal mais profunda do ensaio a heresia.
Apenas a infrao ortodoxia do pensamento torna visvel, na coisa, aquilo que a
finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisvel”.
O conto-ensaio estudado corporifica a compreenso adorniana da forma
ensastica. Versando sobre quest es teolgicas e filosficas, trabalhando conceitos, e
marcado pela construo lgica, sedimenta a heresia sob a gide da arte, contrariando
toda a tradio crist e o consenso popular acerca de Cristo e mais propriamente de
Judas, por um lado; de outra banda, reformula a noo de narrativa e ensaio.
O conto borgiano, por sua construo, ontologia e temtica, enquadra-se
perfeitamente como arte de segregao, nos moldes de Antonio Candido.
A transgressão de AG: a notícia de Lúcifer
O evangelho segundo Lúcifer integra o livro que recebe o mesmo nome. Escrito
por Arturo Gouveia, renomado contista brasileiro, foi publicado em 2007. interessante
ressaltar que o ttulo do conto arturiano j manifesta seu carter subversivo. Como
imaginar a boa notcia, ante o cnone bblico e sua presena no inconsciente coletivo,
dada pelo Anjo decado? A maestria da construo textual reside na vazo ao ponto de
7 A epgrafe em ingls do conto (atribuda a T. E. Lawrence) apresenta-nos antecipadamente a revelao
de Nils Runeberg que dialtica: “Parecia haver uma certeza na degradao”, qual seja: a traio o
fundamento da salvao dos seres humanos. Judas equipara-se ao Redentor.
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vista de Lcifer, para ento questionar a sua condio de cativo e inverter o jogo: a
culpa pelos males no sua e sim de Deus.
A ao mnima, o enredo desenvolve-se de modo truncado, porquanto reflete a
situao do narrador-personagem. H uma proeminncia da linguagem e da reflexo.
Nesse aspecto, a narrativa de AG apresenta um carter doutrinrio e teolgico inslito.
“Minha priso do tamanho exato do meu esqueleto” (GOUVEIA, 2007, p. 317),
afirma Lcifer. De fato, o tamanho diminuto do crcere limita a sua ao, no entanto, a
mente trabalha continuamente. O microcosmos em que se encontra no o impede de
fazer elucubra es, constatar realidades e tecer crticas ao Usurpador, que para o
protagonista, Deus, que se apropriou da inteligncia no instante em que ia compartilh-
la com este8. Desde ento foi emparedado9, e destitudo da glria, restando-lhe, apenas,
a ingesto de esterco e vermes, sua nica forma de sobrevivncia, a recepo de
oxignio podre, e o contato com as escrituras “mentirosas”. O pensamento constitui
tambm a sua priso, seu martrio. A maior tirania de Deus, segundo o prisioneiro, foi a
acusao de ter feito o mal Criao e a Ele.
As pupilas do emparedado possuem pregos, portanto, no podem ser fechadas;
vislumbra as catstrofes e a cegueira da humanidade, fruto do fanatismo institudo pela
Bblia. Contraditoriamente sua lucidez corresponde escurido dos humanos.
Fluidez da imaginao e incapacidade de agir so, por conseguinte, as marcas
caractersticas do cativo:
Minha mente no pra de trabalhar, ainda que meus olhos se esgotem
nessa posio imutvel. Ele acredita em minha rendio para a
destruio final. Que resposta eficaz poderei dar ao mais abominvel
dos seres? Basta lembrar que Deus o nico ser apcrifo, que s tem
zelo pelo Inferno e por essas grades que me destroam. Sua nica
meta para a Humanidade, em dias prximos, a extino. Da ltima
vez que O vi, mesmo Ele desviando o olhar, pude identificar com
sutileza alguns dos Seus crimes futuros. No consigo compreender
com preciso o que vi, mas ter visto j me uma imensurvel alegria.
Vi um sculo monstruoso enterrando, em poucos anos, milh es de
pessoas; vi um cogumelo de fogo caindo sobre uma cidade indefesa,
incendiando beros e gera es futuras; vi crianas convertidas em
cinzas e jogadas no Vstula; vi arsenais poderosos, de destruio
impondervel, girando em torno da Terra; vi milh es de esqueletos
trabalhando fora numa plancie de gelo; vi seqncias e seqncias
de guerras, explodindo aldeias e continentes inteiros; vi uma menina
incendiada nua; vi umas mes numa praa clamando por seus filhos,
todos pisunhados de torturas. (GOUVEIA, 2007, p. 320)
8 Dento desta perspectiva, Lcifer apresenta-se como Criador.
9 O emparedamento do personagem faz-nos recordar o conto O gato preto, de Edgar Allan Poe.
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O trecho acima exprime a tica luciferina, que contesta a divindade, invertendo os
plos. O princpio da Luz o prprio Lcifer (note-se um nexo etimolgico) e o da
Treva Deus, artfice do mal e do pecado, que encaminha a humanidade para extino.
Isto s se dar quando o Anjo sucumbir ao ultraje. Aquele consiste num ser apcrifo
(sem autenticidade, visto que no se manifesta diretamente, diferente de Lcifer). A
contemplao parcial dos olhos d’Ele indicam um perodo de caos. Se analisarmos as
imagens elencadas teremos alus es a momentos histricos de extrema violncia do
sculo XX.
A conscincia do prisioneiro o nico reduto imune treva divina. Porm, o
aludido sente que o Usurpador passa a manipul-la, a partir do sonho. Logo, a coero
passa a ser por dentro, interna. “Mesmo com os olhos abertos, (....) consegui dormir,
submergir na letargia” (GOUVEIA, 2007, p. 321). A descrio do sonho ontolgica,
pois concretiza um labirinto (fagulha de conscincia dentro do sonho). L h a
confluncia da conscincia e do inconsciente, do presente, do futuro e do passado –
instante da criao. A chance de acordar da iluso do crcere e a possibilidade de
transfigurao da realidade plasma-se. Lcifer enquanto Criador poderia excluir o nico
desastre da criao. Todavia, a devassa ntima por meio da manobra onrica consolida-
se. A priso exsurge no momento fatal10.
“Esse sono, o nico a que tive direito desde a sentena, alterou para
sempre minha estima. Apesar de ser um anjo de luz, criador do
Universo e da Linguagem, minha eternidade est com os dias
contados. No sinto apenas na carne esse final sinistro. Os terrores de
Deus tm conseguido penetrar em minha lucidez. [...] Com isso, Deus
substituir minha perpetuidade pela perpetuidade do Mal. Morrerei
sem ter operado o milagre: corrigir meu prprio erro. Morrerei
sabendo que Deus a alma do Inferno. A Humanidade evite o
cogumelo de fogo, evite as cinzas do Vstula, evite as mes
desesperadas. Ainda h tempo. a mensagem que deixo para uma
linda criatura que um dia idealizei e foi brutalmente deturpada,
seduzida pela serpente de Deus. Os homens, se ainda tiverem um
resqucio da minha luz entendam, com carinho, os meus limites. Se j
pressinto meu fim, no posso resgatar mais ningum (GOUVEIA,
2007, p. 323).
O encadeamento narrativo leva-nos, como vimos no excerto transcrito, do sono de
Lcifer reflexo sobre o domnio pleno de Deus da sua conscincia, ltimo resqucio
10 O procedimento de constru es dos sonhos faz-nos remeter narrativa A escrita do deus, de Borges.
Ademais a possibilidade de deglutir as crianas no caminho aponta, ainda, para o mito de Chronos.
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de independncia, lucidez e criticidade. O tom dramtico do conto constri-se,
justamente, na desiluso de Lcifer face capacidade de libertar-se, resgatar a sua
imagem e salvar os seres humanos, mostrando-lhes a verdade. Encarcerado em si,
reconhece a sua finitude, sua limitao. No desfecho da narrativa oferta uma advertncia
humanidade. Por ltimo, evocando a presena de sua luz nela, ele acalenta a esperana
de ganhar a compreenso pela inao.
Ainda sobre o conto, gostaramos de elucidar alguns pontos. O sono e o sonho
constituem a metfora do fim do narrador-personagem. Tentando compreender o
significado dos sonhos, Lcifer recupera a imagem de duas crianas: “A primeira se
chamava Is e tinha o nmero 14 selado a fogo na testa; a ltima era Rev e seu corpo
triturado trazia o nmero 1220. Das outras, lembro apenas de uma massa amorfa, em
forma de vmito e excreo” (GOUVEIA, 2007, p. 323). As crianas abortadas que
surgem em delrios onricos sequenciais, avolumam-se medida que exsurgem na
mente de Lcifer. As marcas e as denomina es da primeira e da ltima Is 14 e Rev
1220, respectivamente, so simblicas.
O nome Is remete ao livro de Isaas11, presente no Antigo Testamento. O nmero
14 denota o captulo. Associando essas express es, temos Isaas 14. Tal passagem
apresenta uma stira contundente a um oponente. H nos versculos bblicos a
celebrao da certeza da queda e morte do rei opressor e tirnico. O rei, a focalizado, ,
provavelmente Nabucodonosor, da Babilnia. Inobstante isso, encontramos uma
meno clara figura de Sat:
Tua majestade desceu morada dos mortos,
acompanhada do som de tuas harpas.
Jazes sobre um leito de vermes
e os vermes so a tua coberta.
Ento! Caste dos cus,
astro brilhante, filho da aurora!
(Is 14, 11-12)
Com fulcro nesses versos, temos a ao poderosa de Jav que arrasa o inimigo.
o prenncio do que acontecer a Nabucodonosor. A voz-potica canta a humilhao de
Lcifer (= astro brilhante). Fazendo isso, profetiza o destino do rei da Babilnia e de
todos os que se insurgem contra Jav. Logo, o referido governante liga-se a Sat.
Ressaltamos, ainda, que a humilhao do povo babilnico cruel: runa e extermnio do
11 Is a abreviatura usual de Isaas.
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seu povo, inclusive com o massacre de toda a descendncia (Is 14, 21-23). O versculo
19 do livro de Isaas refora, a partir de outra construo imagtica, o ultraje infligido
ao rei: “Todos os reis das na es, todos repousam com glria, cada um no seu tmulo; /
tu, porm, foste atirado para longe do teu sepulcro, como um aborto que causa horror”
(Is 14, 18-19).
J a ltima criana do sonho do “astro brilhante” chama-se Rev. Ela possui a
marca 1220. Rev, na nossa anlise, a abreviatura de Revelao, ou seja, Apocalipse,
mensagem reveladora. A numerao 1220 pode ser desmembrada. Destarte, passamos a
ter 12 e 20, que so dois captulos importantes do texto de Joo, livro que encerra o
Novo Testamento. As mencionadas se es do Livro do Apocalipse (ou da Revelao)
tratam da derrota da Serpente (Lcifer). Em Apo 12, deparamo-nos com a descrio de
um combate no cu, em que o Drago, que personifica o mal, tenciona lutar contra as
estrelas (Deus), bem como aspira a devorar o filho da Mulher12, o Messias, que veio
para extermin-lo. Contudo, as pretens es daquele so frustradas. No captulo 20, Joo
narra a sorte da Serpente e a vitria definitiva de Deus.
Refletindo sobre as profecias do livro de Isaas (14) e a mensagem do Apocalipse
(12 e 20), notamos que elas se presentificam no sonho de Lcifer. A Palavra Divina j
invadia os recnditos da mente luciferina (as crianas abortadas e marcadas). Elas eram
o sinal da revelao de Deus, anncio da derrota, priso, humilhao e violncia, o fim
de Lcifer.
Abraho Costa Andrade (2003, p. 176), afirma que Arturo Gouveia, em seus
contos, “desmantela certo esquema mental afeito a colocar em posio de atrito linear o
bem e o mal.” Com efeito, no dilogo entre o texto ficcional analisado e o cnone
bblico, percebemos uma ruptura total, visto que a escolha de Lcifer como narrador e
como protagonista manifesta uma atitude totalmente inventiva e questionadora, que
causa impacto e incompreens es para quem l (inverso da origem do mal13), haja vista
a forte herana judaico-crist que impera no Ocidente. a efetivao da chamada
potica do incmodo (ANDRADE, 2003, p. 177).
12 A Mulher estava prestes a dar luz a um menino, que era o alvo do Drago.
13 O conto materializa a transgresso dos evangelhos bblicos e, de certa maneira, a compreenso
agostiniana sobre o mal (ver SANTO AGOSTINHO. Confissões. So Paulo: Martin Claret, 2002). A
narrativa, alm de recuperar o maniquesmo, isentando a humanidade, inverte a origem: o Mal provm de
Deus.
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Pela verificação que fizemos da narrativa arturiana, fica patente a sua
classificação no rol da arte de segregação.
As consonâncias e as dissonâncias: uma breve comparação
A aplicabilidade do conceito de arte de segregação nas narrativas Três versões de
Judas, de Jorge Luis Borges, e, O evangelho segundo Lúcifer, de Arturo Gouveia,
viabiliza a comparação destas.
Considerando que a segregação não é absoluta, enfocamos os aspectos que a
caracterizam, visto que prevalecem nos textos mencionados. A incursão comparatista
está radicada no engendramento da transgressão e subversão da forma e do conteúdo
que marcam os contos estudados.
Os personagens são distintos, mas compartilham o mesmo papel antagônico ante à
construção do reino celeste e da salvação dos homens por Cristo, e, por este motivo,
recebem o desprezo, a marginalidade, a periferia, seja na bíblia e em outros textos
literários, ao longo do tempo. As narrativas aqui estudadas, uma do século XX e outra
do XXI, estabelecem uma visão atípica sobre tais personagens, respectivamente, Judas e
Lúcifer, que são alçados à posição de centralidade. Mudando-se o ângulo, encontramos
nas narrativas a exposição de pontos de vista desmistificadores em relação a ambos,
efetivando-se, assim, a desconstrução da imagem que a tradição cristalizara. Judas, de
traidor passa a salvador, e, Lúcifer, a personificação do mal, fonte de todo pecado,
mostra-se como Criador, vítima da truculência de Deus, este sim, sob seu prisma, o
próprio mal. É a consagração da subversão temática, discurso herético por natureza.
A despeito dessa convergência, os aspectos estruturais são dissonantes e, ao
mesmo, transgressores. Três versões de Judas consiste em um misto de narrativa e
ensaio. Com esta configuração, o narrador-ensaista explicita as teses de um heresiarca,
chamado Nils Runeberg, acerca da figura de Judas Iscariotes. Há um adensamento da
hermenêutica sobre a temática da traição de Judas no decorrer da exposição. Os
argumentos de Runeberg, delineados pelo narrador, ganham mais corpo, isto é, ficam
mais elaborados na medida em que avançamos na leitura do conto, até redundarem na
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decifrao do enigma de Judas: o salvador da humanidade. Esta situao leva Runeberg
a encontrar-se com a loucura e a morte. A narrao praticamente argumentao.
O evangelho segundo Lcifer no est pautado numa voz pretensamente
“imparcial” como no texto borgiano. o prprio Lcifer que propaga a sua notcia, ou
seja, a “boa-nova” no revelada por terceiros (diferentemente do que ocorre no cnone
bblico). O “Anjo de Luz” relata sua verso sobre os fatos da Criao, da queda, do
cativeiro. Imputando a Deus a responsabilidade pelas catstrofes no mundo, vocifera
que Ele o bero do mal e do pecado e que as escrituras no so sacrossantas, pelo
contrrio, constituem alienao e obscurem a verdade. A sua mensagem para que a
humanidade liberte-se da cegueira divina, evitando assim o Mal (Deus) e as misrias
que lhe sero infligidas. A Lcifer cabe resignar-se com o destino cruel e reconhecer-se
incapaz, clamando, humildemente, a compreenso do gnero humano. Este instante o
reconhecimento da vitria de Deus, ou seja, o fim dos tempos. H uma reinveno do
evangelho, da bblia, de si e, consequentemente, de Deus. D-se no conto uma complexa
e irnica construo textual, cujo tom subversor se acentua na circularidade de ideias,
na resistncia de Lcifer e na dominao por dentro (matria onrica) e por fora
(emparedamento) de Deus sobre a conscincia e a ao da Serpente, o que refora que
Ele o mal absoluto, desprovido da misericrdia. A narrao revelao s avessas.
Referências
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IV Congresso Internacional de 22 a 24 de setembro de 2009
Estudos Comparativos da ABRAEC UEPB, Campina Grande - Brasil
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