Falamos de uma substância propagada no infinito
A décima chave do Tarô
A substância una que é céu e terra, isto é, conforme seus graus de
polarização, sutil ou fixa.
Essa substância é o que Hermes Trismegisto chama de grande
Telesma. Quando produz o esplendor, ela denomina-se luz.
É essa substância que Deus cria antes de todas as coisas,
quando diz: Que seja a luz.
Ela é ao mesmo tempo substância e movimento. É um fluido e uma
vibração perpétua.
A força que a põe em movimento e que lhe é inerente denomina-se
magnetismo.
No infinito, essa substância única é o éter ou a luz
etérea.
Nos astros que magnetiza, torna-se luz astral.
Nos seres organizados, luz ou fluido magnético.
No homem, forma o corpo astral ou o mediador
plástico.
A vontade dos seres inteligentes age diretamente sobre essa luz
e, por meio dela, sobre toda a natureza submetida às modificações da
inteligência.
Essa luz é o espelho comum de todos os pensamentos e de todas
as formas; guarda as imagens de tudo o que foi, os reflexos dos mundos passados
e, por analogia, os esboços dos mundos futuros. E o instrumento da taumaturgia e
da adivinhação, como nos resta explicar na terceira e última parte desta
obra.
Mesmer encontrou a ciência secreta da natureza, ele não a
inventou.
A substância primeira, única e elementar, cuja existência ele
proclama em seus aforismos, era conhecida por Hermes e por Pitágoras.
Sinésio, que a canta em seus hinos, encontrara sua revelação em
meio às lembranças platônicas da escola de Alexandria:
Mia paga, mic riza
Trifahj elcmfe morfc
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Peri gan spareisc pnoic
Cqonoj` ezwwse moifcj
Polndaidcloisi
morcij
"Uma única fonte, uma única raiz de luz jorra e abre-se em três
ramos de esplendor. Um sopro circula em volta da terra e vivifica, sob
inumeráveis formas, todas as partes da substância animada."
Hinos de Sinésio, hino 11
Mesmer viu na matéria elementar uma substância indiferente
tanto ao movimento quanto ao repouso. Submetida ao movimento é volátil, de volta
ao repouso é fixa, e ele não compreendeu que o movimento é inerente à substância
primeira, que resulta não de, sua indiferença, mas de sua aptidão combinada a um
movimento e a um repouso equilibrados um pelo outro: que o repouso não está em
nenhuma parte na matéria uníversalmente viva, mas que o fixo atrai o volátil
para fixá~lo, enquanto o volátil corrói o fixo para volatilizá-lo. Que o
pretenso repouso das partículas aparentemente fixadas é somente uma luta mais
encarniçada e uma tensão maior de suas forças fluídicas que se imobilizam
neutralizando-se. É assim que, segundo Hermes, o que está no alto é como o que
está embaixo, a mesma força que dilata o vapor contrai e endurece o gelo; tudo
obedece às leis da vida inerentes à substância primeira; essa substância atrai e
repele e coagula-se e dissolve-se numa constante harmonia; é dupla; é andrógina;
abraça-se e fecunda-se; luta, triunfa, destrui, renova, mas nunca se abandona à
inércia, pois a inércia seria a morte para ela.
É essa substância primeira que se designa na narrativa
hierática do Gênesis, quando o verbo dos Eloim faz a luz ordenando-lhe que
seja.
Eloim diz: Que seja a luz, e a luz foi.
Essa luz,cujo nome hebreu é r u t,
or, é o ouro fluido e vivo da filosofia hermética. Seu princípio positivo
é o enxofre deles; seu princípio negativo, o mercúrio, e seus princípios
equilibrados formam o que eles denominaram seu sal.
Seria preciso, pois, em vez do sexto aforismo de Mesmer assim
concebido:
"A matéria é indiferente a estar em movimento ou a estar em
repouso."
Estabelecer este:
A matéria universal é necessária ao movimento por sua dupla
magnetização e procura fatalmente o equilíbrio.
E deste deduzir os seguintes:
A regularidade e a variedade no movimento resultam das
combinações diversas do equilíbrio.
Um ponto equilibrado por todos os lados permanece imóvel pelo
próprio fato de ser dotado de movimento.
O fluido é uma matéria em grande movimento e sempre agitada
pela variação dos equilíbrios.
O sólido é a mesma matéria em pequeno movimento ou em repouso
aparente, porque está mais ou menos equilibrada.
Não há corpo sólido que não possa ser imediatamente
pulverizado, esvair-se em fumaça e tornar-se invisível, se o equilíbrio de suas
moléculas viesse a cessar de repente.
Não há corpo fluido que não possa tornar-se num segundo mais
duro que o diamante, sim se pudesse equilibrar imediatamente suas moléculas
constitutivas.
Dirigir os ímãs, portanto, é destruir ou criar as formas, é
produzir em aparência ou anular os corpos, é exercer a onipotência da
natureza.
Nosso mediador plástico é um ímã que atrai ou repele a luz
astral sob a pressão da vontade. É um corpo luminoso que reproduz com a maior
facilidade as formas correspondentes às idéias.
É o espelho da imaginação. Esse corpo alimenta-se de luz
astral, exatamente como o corpo orgânico alimenta-se dos produtos da terra.
Durante o sono ele absorve a luz por imersão e, durante a vigília, por uma
espécie de respiração mais ou menos lenta. Quando se produzem os fenômenos do
sonambulismo natural, o mediador plástico está sobrecarregado por uma
alimentação que digere mal. A vontade, então, embora ligada pelo torpor do sono,
impele instintivamente o mediador em direção aos órgãos para liberá-lo, e
produz-se uma reação, de certa forma mecânica, que equilibra pelo movimento do
corpo a luz do mediador. É por isso que é tão perigoso acordar os sonâmbulos com
um sobressalto, pois o mediador ingurgitado pode, então, retirar-se subitamente
para o reservatório comum e abandonar inteiramente os órgãos que se encontram,
nesse momento, separados da alma, o que ocasiona a morte.
O estado de sonambulismo, seja natural, seja factício, é, pois,
extremamente perigoso, porque, ao reunir os fenômenos da vigília aos do sono,
constitui uma espécie de grande lacuna entre dois mundos. Ao movimentar
as moias da vida particular, a alma, banhando-se na vida universal, experimenta
um bem-estar indizível e abandonaria de bom grado as ramificações nervosas que a
mantêm suspensa acima da corrente. Nos êxtases de todos os tipos a situação é a
mesma. Se a vontade aí mergulha num esforço apaixonado ou mesmo se a isso se
abandona inteiramente, o sujeito pode ficar idiota, paralisado ou morrer.
As alucinações e as visões resultam de ferimentos causados ao
mediador plástico e de sua paralisia local. Ora ele cessa de irradiar e
substitui as realidades mostradas pela luz por imagens de algum modo
condensadas, ora irradia com muita força e condensa-se fora, em torno de alguma
morada fortuita e desregulada, como o sangue nas excrescências da carne, então
as quimeras do nosso cérebro tomam um corpo e parecem tomar uma alma, parecemos
a nós mesmos radiosos ou disformes como o ideal de nossos desejos ou de nossos
temores.
Sendo as alucinações sonhos de pessoas acordadas, supõem sempre
um estado análogo ao sonambulismo, porém em sentido contrário; o sonambulismo é
o sono tomando emprestado ao despertar seus fenômenos; a alucinação é a vigília
sujeita ainda em parte à embriaguez astral do sono.
Nossos corpos fluídicos atraem-se e repelem-se uns aos outros,
segundo leis consoantes às da eletricidade. É o que produz as simpatias e as
antipatias instintivas. Equilibram-se, assim, uns aos outros, e é por isso que
as alucinações são frequentemente contagiosas; as projeções anormais mudam as
correntes luminosas; a perturbação de um doente ganha as naturezas mais
sensitivas, um círculo de ilusões estabelece-se e toda uma multidão é facilmente
arrastada para ele. É a história das aparições estranhas e dos prodígios
populares. Assim explicam-se os milagres dos médiuns da América e as vertigens
dos giradores de mesa, que reproduzem em nossos dias os êxtases dos dervixes
giradores. Os bruxos lapões com seus tambores mágicos e os malabaristas
curandeiros chegam a resultados parecidos por procedimentos semelhantes; seus
deuses ou seus diabos em nada contribuem.
Os loucos e os idiotas são mais sensíveis ao magnetismo do que
as pessoas sãs de espírito; deve-se compreender a razão disso; é preciso pouco
para virar completamente a cabeça de um homem embriagado, e contrai-se mais
facilmente uma doença quando todos os órgãos estão predispostos a sofrerem suas
impressões e a manifestarem suas desordens.
As doenças fluídicas têm suas crises fatais. Toda tensão
anormal do aparelho nervoso termina em tensão contrária segundo as leis
necessárias do equilíbrio. Um amor exagerado transforma-se em aversão, e todo
ódio exaltado está bem próximo do amor; a reação dá-se frequentemente com o
estrondo e a violência do raio. A ignorância, então, desola-se e indigna-se; a
ciência resigna-se e cala-se.
Há dois amores, o do coração e o da mente, o amor do coração
nunca se exalta, recolhe-se e cresce lentamente pelas provações e pelos
sacrifícios; o amor da mente, puramente nervoso e apaixonado, vive apenas de
entusiasmo, vai contra todos os deveres, trata o objeto amado como coisa
conquistada, é egoísta, exigente, inquieto, tirânico e traz fatalmente consigo o
suicídio por catástrofe final ou o adultério por remédio. Esses fenômenos são
constantes como a natureza, inexoráveis como a fatalidade.
Uma jovem artista cheia de futuro e de coragem tinha por marido
um homem de bem, um pesquisador científico, um poeta a quem não podia reprovar
senão um excesso de amor por ela, abandonou-o ultrajandoo e, desde então,
continua a odiá-lo. No entanto, ela também é uma boa mulher, mas o mundo
impiedoso a julga e condena. Todavia, não é agora que ela é culpada. Sua culpa,
se é permitido lhe imputar alguma, foi em primeiro lugar ter amado louca e
apaixonadamente seu marido.
Mas, dir-se-á, a alma humana então não é livre?
- Não, ela não o é mais desde que se abandona à vertigem das
paixões. Apenas a sabedoria é livre, as paixões desordenadas são o domínio da
loucura, e a loucura é a fatalidade.
O que dissemos do amor pode-se dizer também da religião, que é
o mais poderoso mas também o mais inebriante dos amores. A paixão religiosa tem
também seus excessos e suas reações fatais. Pode-se ter êxtases e estigmas, como
São Francisco de Assis, e cair em seguida em abismos de devassidão e
impiedade.
As naturezas apaixonadas são ímãs exaltados, atraem ou repelem
com força.
Podemos magnetizar de duas maneiras: primeiramente, agindo pela
vontade sobre o mediador plástico de outra pessoa, cuja vontade e atos
encontram-se, por conseguinte, subordinados a essa ação.
Em segundo lugar, agindo pela vontade de uma pessoa, seja por
intimidação, seja por persuasão, para que a vontade impressionada modifique,
segundo nosso desejo, o mediador plástico e os atos dessa pessoa.
Magnetiza-se pela irradiação, pelo contato, pelo olhar e pela
palavra.
As vibrações da voz modificam o movimento da luz astral e são
um veículo poderoso do magnetismo.
O sopro quente magnetiza positivamente, e o sopro frio
magnetiza negativamente.
Uma insuflação quente e prolongada na coluna vertebral, abaixo
do cerebelo, pode ocasionar fenômenos eróticos.
Se for colocada a mão direita sobre a cabeça e a mão esquerda
sob os pés de uma pessoa envolta em lã ou em seda, ela será inteiramente
atravessada por uma fagulha magnética, e pode-se ocasionar uma revolução nervosa
em seu organismo com a rapidez de um raio.
Os passes magnéticos servem apenas para dirigir a vontade do
magnetizador, confirmando-a através de atos. São sinais e nada além disso. O ato
da vontade é expresso, e não operado, por esses sinais.
O carvão em pó absorve e retém a luz astral. É o que explica o
espelho mágico de Dupotet.
Figuras desenhadas a carvão aparecem luminosas para uma pessoa
magnetizada e tomam para ela, segundo a direção dada pela vontade do
magnetizador, as mais graciosas ou as mais aterrorizantes formas.
A luz astral, ou melhor, vital do mediador plástico, absorvida
pelo carvão, torna-se totalmente negativa; é por isso que os animais que a
eletricidade atormenta, como por exemplo os gatos, gostam de rolar-se no carvão.
A medicina, um dia, utilizará essa propriedade, e as pessoas nervosas
e
O sono é uma morte incompleta; a morte é um sono perfeito.
A natureza submete-nos ao sono para habituar-nos à idéia da
morte, e adverte-nos por meio dos sonhos sobre a persistência de uma outra
vida.
A luz astral em que o sono nos mergulha é como um oceano onde
flutuam inumeráveis imagens, restos das existências naufragadas, miragens e
reflexos daquelas que passam, pressentimentos daquelas que vão nascer.
Nossa disposição nervosa atrai-nos para aquelas imagens que
correspondem à nossa agitação, à nossa fadiga especial, como um ímã colocado em
meio a detritos metálicos atrairia e escolheria, sobretudo, a limalha de
ferro.
Os sonhos revelam-nos a doença ou a saúde, a calma ou a
agitação de nosso mediador plástico e, por conseguinte, também de nosso aparelho
nervoso.
Formulam nossos presentimentos por meio da analogia das
imagens.
Pois todas as idéias têm um duplo signo para nós, relativo à
nossa dupla vida.
Existe uma língua do sono, de que é impossível, no estado de
vigília, compreender e até mesmo reunir as palavras.
A língua do sono é a da natureza, hieroglífica em seus
caracteres e ritmada apenas em seus sons.
O sono pode ser vertiginoso ou lúcido.
A loucura é um estado permanente de sonambulismo
vertiginoso.
Uma comoção violenta pode despertar os loucos, assim como pode
matá-los.
As alucinações, quando trazem consigo a adesão da inteligência,
são acessos passageiros de loucura.
Toda fadiga do espírito provoca o sono; mas, se a fadiga é
acompanhada de irritação nervosa, o sono pode ser incompleto e tomar os
caracteres do sonambulismo.
Adormece-se por vezes sem disso se aperceber em meio à vida
real, e então, em vez de pensar, sonha-se.
Por que temos reminiscências de coisas que nunca nos
aconteceram? É que as sonhamos acordados.
Esse fenômeno do sono involuntário e não sentido, que atravessa
de repente a vida real, produz-se freqüentemente em todos aqueles que
superexcitam seu organismo nervoso com excessos, quer de trabalho, quer de
vigílias, quer de bebida, quer de um eretismo qualquer.
Os monomaníacos dormem quando se entregam a atos insensatos, e
não têm mais consciência de nada ao acordarem.
Quando Papavoine foi preso pelos soldados, disse-lhes
tranqüilamente estas palavras notáveis:
- Vós tomais o outro por mim.
Era ainda o sonâmbulo que falava.
Edgar Poe, esse gênio infeliz que se embriagava, descreveu de
um modo terrível o sonambulismo dos monomaníacos. Ora é um assassino que ouve, e
acredita que todo o mundo ouve, o coração de sua vítima bater através das lajes
do túmulo, ora é um envenenador que, por força de dizer a si mesmo: Estou em
segurança, contanto que não vá denunciar a mim mesmo, termina por sonhar em voz
alta que se denuncia e denuncia-se de fato.
Edgar Poe não inventou ele próprio nem os personagens nem os
fatos de seus estranhos contos, sonhou-os acordado, e é por isso que tão bem
lhes dá as cores de uma horrível realidade.
O doutor Brière de Boismont, em sua notável obra sobre as
Alucinações, conta a história de um inglês, aliás muito sensato, que
acreditava ter encontrado um homem com quem travara conhecimento; este o
conduzira a almoçar em sua taberna, depois, tendo-o convidado a visitar a Igreja
de São Paulo, tentara precipitá-lo do alto da torre onde haviam subido
juntos.
Desde esse momento, o inglês estava obcecado por esse
desconhecido, que apenas ele podia ver, e que reencontrava sempre quando estava
só e acabava de jantar bem.
Os abismos atraem; a embriaguez chama a embriaguez; a loucura
possui irresistíveis atrativos para a loucura. Quando um homem sucumbe ao sono,
abomina tudo o que poderia acordá-lo.
Acontece o mesmo com os alucinados, os sonâmbulos extáticos, os
maníacos, os epiléticos e todos aqueles que se abandonam ao delírio de uma
paixão. Eles ouviram a música fatal, entraram na dança macabra e sentem-se
arrastados no turbilhão da vertigem. Vós lhes falais, não vos ouvem mais, vós os
advertis, não vos compreendem mais, mas vossa voz os importuna; têm sono do sono
da morte.
A morte é uma corrente que arrasta, um precipício que absorve,
mas de cujas profundezas o menor movimento vos pode trazer de volta. Sendo a
força de repulsão igual à de atração, freqüentemente, no instante mesmo de
expirar, fica-se violentamente preso à vida, freqüentemente também, pela mesma
lei de equilíbrio, passa-se do sono à morte; por complacência para com o
sono.
Um bote balança-se próximo às margens do lago. A criança nele
entra, a água brilhante de mil reflexos dança à sua volta chamando-a, a corrente
que retém o barco estira-se e parece querer romper-se; um pássaro maravilhoso
lança-se, então, da margem e plana cantando sobre as ondas alegres; a criança
quer segui-lo, leva a mão à corrente, solta o elo.
A Antigüidade adivinhara o mistério da morte atraente e
representara-o na fábula de Hilas. Cansado após uma longa navegação, Hilas chega
a uma ilha florida, aproxima-se de uma fonte para retirar água, uma miragem
graciosa lhe sorri; ele vê uma ninfa estender-lhe os braços, os seus enfraquecem
e não podem retirar o cântaro pesado; o frescor da fonte adormece-o, os perfumes
da margem embriagam-no, ei-lo debruçado sobre a água como um narciso cuja haste
fosse quebrada por uma criança a brincar; o cântaro cheio cai ao fundo e Hilas
segue-o, morre sonhando com ninfas que o acariciam, e não ouve mais a voz de
Hércules que o chama de volta aos trabalhos da vida, e que percorre todas as
margens gritando mil vezes: Hilas, Hilas!
Outra fábula, não menos comovente, que sai das sombras da
iniciação órfica, é a de Eurídice chamada de volta à vida pelos milagres da
harmonia e do amor, Eurídice, esta sensitiva rompida no próprio dia de seu
casamento e que se refugiou na tumba ainda trêmula de pudor! Logo, ela ouve a
lira de Orfeu, e lentamente sobe em direção à luz; as terríveis divindades do
Érebo não ousam fechar-lhe a passagem. Ela segue o poeta, ou antes, a poesia que
ela adora... Mas ai do amante se mudar a corrente magnética e se seguir, com um
único olhar, aquela que ele deve somente atrair! O amor sagrado, o amor
virginal, o amor mais forte que o túmulo busca apenas a dedicação e foge
desvairado diante do egoísmo do desejo. Orfeu sabe disso, mas por um instante
esquece. Eurídice, em suas brancas vestes de noiva, está deitada no leito
nupcial, ele, sob as vestimentas de grande hierofante, está em pé, a lira nas
mãos, a cabeça coroada com os louros sagrados, os olhos voltados para o Oriente,
e canta. Canta as flechas luminosas do amor que atravessam as sombras do antigo
caos, as ondas da doce claridade escorrendo da teta negra da mãe dos deuses,
Eros e Ânteros. Adônis que volta à vida para escutar os lamentos de Vênus e que
se reanima como uma flor sob o orvalho brilhante de suas lágrimas; Castor e
Pólux que a morte não pôde desunir e que se amam ora no inferno, ora na terra...
Depois ele chama suavemente Eurídice, sua querida Eurídice, sua Eurídice tão
amada:
Ah! miseram Eurydicen animâ fugiente vocabat,
Eurydicen! toto referebant flumine ripae.
Enquanto ele canta, aquela pálida estátua que a morte fez
colore-se com as primeiras nuanças da vida, seus lábios brancos começam a
avermelhar-se como a aurora da manhã... Orfeu a vê, treme, balbucia, o hino vai
expirar em sua boca, mas ela empalidece novamente; então o grande hierofante
tira de sua lira cantos dilacerantes e sublimes, não olha mais senão para o céu,
chora, implora, e Eurídice abre os olhos... Infeliz! não olhes para ela, canta
ainda, não afugentes a borboleta de Psiquê, que quer pousar nesta flor!... Mas o
insensato viu o olhar da ressuscitada, o grande hierofante cede à embriaguez do
amante, a lira cai de suas mãos, olha Eurídice, corre em sua direção... Aperta-a
em seus braços e a encontra ainda gelada, seus olhos tornaram a fechar-se, seus
lábios estão mais pálidos e mais frios do que nunca, a sensitiva estremeceu, e o
vínculo delicado da alma rompeu-se novamente e para sempre... Eurídice está
morta e os hinos de Orfeu não mais a trarão de volta à vida.
Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, ousamos dizer que
a ressurreição dos mortos não é um fenômeno impossível na própria ordem da
natureza, e nisso não negamos nem contradissemos de nenhum modo a fé fatal da
morte. Uma morte que pode cessar é apenas uma letargia e um sono, mas é sempre
pela letargia e pelo sono que a morte começa. O estado de quietude profunda que
se sucede, nesse momento, às agitações da vida leva então a alma distendida e
dormente, não se pode fazê-la voltar, forçá-la a novamente mergulhar, senão
excitando violentamente todas as suas feições e todos os seus desejos. Quando
Jesus, o Salvador do mundo, estava na terra, a terra era mais bela e mais
desejável do que o céu, e no entanto, para acordar a filha de Jairo, Jesus
precisou gritar e sacudi-la. Foi a poder de frémitos e de lágrimas que chamou de
volta do túmulo o amigo Lázaro, tão difícil é interromper uma alma cansada que
dorme o seu primeiro sono!
Todavia, o rosto da morte não tem a mesma serenidade para todas
as almas que o contemplam; quando se teve frustrado o objetivo da vida, quando
se levam consigo cobiças desenfreadas ou ódios insaciados, a eternidade aparece
para a alma ignorante ou culpada com tão formidáveis proporções de dores que ela
tenta algumas vezes lançar-se novamente na vida mortal. Quantas almas assim
agitadas pelo pesadelo do inferno refugiaram-se em seus corpos gelados e já
cobertos pelo mármore da tumba! Foram encontrados esqueletos revirados,
convulsos, retorcidos, e foi dito: Aí estão homens que foram enterrados vivos.
Enganavam-se frequentemente, e bem podiam ser retomados da morte, ressuscitados
da sepultura que, por se terem abandonado completamente às angústias do limiar
da eternidade, com ela foram ter por duas vezes.
Um magrietista célebre, o barão Dupotet, ensina no seu livro
secreto sobre a Magia que se pode matar pelo magnetismo como pela
eletricidade. Essa revelação nada tem de estranho para quem conhece bem as
analogias da natureza. É certo que, dilatando-se além dos limites-ou
coagulando-se repentinamente o mediador plástico de um sujeito, pode-se separar
sua alma de seu corpo. Basta algumas vezes provocar numa pessoa uma violenta
cólera ou um enorme susto para matá-la subitamente.
O uso habitual do magnetismo geralmente coloca o sujeito que a
ele se abandona à mercê do magnetizador. Quando a comunicação é bem
estabelecida, quando o magnetizador pode produzir à vontade o sono, a
insensibilidade, a catalepsia, etc., só lhe custaria um esforço a mais trazer
também a morte.
Contaram-nos, como verdadeira, uma história de que todavia não
garantimos a autenticidade.
Vamos contá-la porque pode ser verdadeira.
Pessoas que duvidavam ao mesmo tempo da religião e do
magnetismo, desses incrédulos que se prestam a todas as superstições e a todos
os fanatismos, haviam convencido, a peso de ouro, uma pobre moça a submeter-se
às suas experiências. Era uma natureza impressionável e nervosa, cansada além
disso pelos excessos de uma vida mais do que irregular, e já enojada da
existência. Adormecem-na; ordenam-lhe que veja; ela chora e debate-se. Falam-lhe
de Deus.... tremem-lhe todos os membros.
- Não - diz ela -, ele me dá medo; não quero olhar para
ele.
- Olhe para ele, eu quero.
Ela abre então os olhos; suas pupilas dilatam-se; fica
apavorante.
- O que você está vendo?
- Não consigo dizer... Oh! por misericórdia, por misericórdia,
acordem-me!
- Não, olhe e diga o que está vendo.
- Vejo uma noite negra em que turbilhonam fagulhas de todas as
cores em volta de dois grandes olhos que se movem sem parar. Desses olhos saem
raios que se enrolam em serpentinas e ocupam todo o espaço... Oh! isso me dói!
acordem-me!
- Não, olhe.
- Para onde mais querem que eu olhe?
- Olhe dentro do paraíso.
- Não, não posso subir até lá; a grande noite me rechaça e
volto sempre a cair.
- Então olhe dentro do inferno.
Aí, a sonâmbula agita-se convulsivamente.
- Não! Não! - grita soluçando -, não quero; me daria vertigem;
cairia. Oh! segurem-me! detenham-me!
- Não, desça.
- Aonde querem que eu desça?
- Ao inferno.
- É horrível! Não, não, não quero ir!
- Vá.
- Misericórdia!
- Vá, eu quero.
As feições da sonâmbula ficam terríveis de se ver; os cabelos
em pé; os olhos esbugalhados só mostram o branco; o peito arfa e deixa
escapar um som rouco.
- Vá até lá, eu quero - repete o magnetizador.
- Estou aqui - diz entre dentes a infeliz, caindo esgotada.
Depois, não responde mais; a cabeça inerte tomba sobre os ombros; os braços
pendem ao longo do corpo. Aproximam-se dela; tocam-na. Querem, já tarde demais,
acordá-la; o crime estava consumado; a mulher estava morta e os autores dessa
experiência sacrílega, graças à incredulidade pública em matéria de magnetismo,
não foram perseguidos. Coube à autoridade atestar um óbito, e a morte foi
atribuída à ruptura de um aneurisma. O corpo, aliás, não tinha nenhuma marca de
violência; mandaram-no enterrar e encerrou-se o caso.
Eis um outro caso que nos foi contado por companheiros da Volta
à França.
Dois companheiros hospedavarn-se no mesmo albergue e dividiam o
mesmo quarto. Um dos dois tinha o hábito de falar dormindo, quando então
respondia às perguntas que seu colega lhe fazia. Uma noite, ele começa, de
repente, a soltar gritos sufocados, o outro companheiro acorda e pergunta-lhe o
que está havendo.
- Mas então você não está vendo - diz o que está dormindo não
está vendo esta pedra enorme... está se soltando da montanha... está caindo
sobre mim, vai me esmagar.
- Pois então fuja!
- Impossível, meus pés estão enroscados num espinheiro que se
aperta cada vez mais... Ai! Socorro! lá... lá está a grande pedra que vem para
cima de mim.
- Toma, aqui está ela! - diz rindo o outro, que lhe atira na
cabeça o travesseiro para acordá-lo.
Um grito terrível, subitamente sufocado na garganta, uma
convulsão, um suspiro, depois mais nada. O desastrado brincalhão levanta-se,
puxa o colega pelo braço, chama-o, assusta-se por sua vez, grita, alguém traz
uma luz... o infeliz sonâmbulo estava morto.
nc
Uma alucinação é um ilusão produzida por um movimento irregular
da luz astral.
É, como dissemos antes, a mistura dos fenômenos do sono aos da
vigília.
Nosso mediador plástico aspira e respira a luz astral ou a alma
vital da terra, como nosso corpo aspira e respira a atmosfera terrestre. Ora, do
mesmo modo que em alguns lugares o ar é impuro e irrespirável, também algumas
circunstâncias fenomenais podem tornar a luz astral malsã e não assimilável.
Tal ar também pode ser muito vivo para algumas pessoas e convir
perfeitamente a outras, sendo assim também com a luz magnética.
O mediador plástico assemelha-se a uma estátua metálica
permanentemente em fusão. Se o molde está defeituoso, ela torna-se disforme; se
o molde se quebra, ela foge.
O molde do mediador plástico é a força vital equilibrada e
polarizada. Nosso corpo, por meio do sistema nervoso, atrai e retém essa forma
fugidia de luz especificada; mas a fadiga local ou a superexcitação parcial do
aparelho pode ocasionar disformidades fluídicas.
Essas disformidades alteram parcialmente o espelho da
imaginação e ocasionam alucinações habituais próprias aos visionários
extáticos.
O mediador plástico, feito à imagem e semelhança de nosso
corpo, cujos órgãos reproduz luminosamente, tem visão, tato, audição, olfato e
paladar que lhe são próprios; pode, quando está superexcitado, comunicá-los por
vibrações ao aparelho nervoso, de tal modo que a alucinação seja completa. A
imaginação parece, então, triunfar sobre a própria natureza e produz fenômenos
verdadeiramente estranhos. O corpo material inundado de fluido parece participar
das qualidades fluídicas, escapa às leis da gravidade, torna-se momentaneamente
invulnerável e mesmo invisível num círculo de alucinados por contágio. Sabe-se
que os convulsionários de São Medardo deixavam-se atenazar, espancar, triturar,
crucificar, sem que sentissem nenhuma dor, que se erguiam do chão, andavam de
cabeça para baixo, comiam alfinetes e os digeriam.
Achamos oportuno relatar aqui o que publicamos no jornal O
Estafeta sobre os prodígios do médium americano Home e sobre vários
fenômenos da mesma ordem.
Nunca fomos, nós mesmos, testemunhas dos milagres do senhor
Home, mas nossas informações vêm das melhores fontes, recolhemo-nas numa casa
onde o médium americano foi acolhido com benevolência quando estava infeliz, e
com indulgência quando chegou a tomar sua doença por uma felicidade e uma
ventura. É a casa de uma senhora nascida na Polônia, mas três vezes francesa
pela nobreza de seu coração, pelos encantos inefáveis de seu espírito e pela
celebridade européia de seu nome.
A publicação dessas informações no Estafeta atraiu-nos,
sem que saibamos bem por quê, as injúrias de um senhor De Pène, conhecido, desde
então, por seu duelo infeliz. Lembramo-nos, na ocasião, da fábula de La Fontaine
sobre o louco que atirava pedras num sábio. O senhor De Pène tratava-nos de
"padre que abandonou a batina" e de mau católico. Mostramo-nos pelo menos bom
cristão compadecendo-nos dele e perdoando-o, e, como é impossível ser "padre que
abandonou a batina" sem nunca ter sido padre, deixamos cair por terra uma
injúria que não nos atingia.
Na semana passada, o senhor Home queria mais uma vez deixar
Paris, essa Paris onde, se os próprios anjos e demônios aparecessem sob uma
forma qualquer, não passariam muito tempo por seres maravilhosos, e nada melhor
teriam a fazer senão retornar logo ao céu ou ao inferno, para escapar ao
esquecimento e ao abandono dos humanos.
O sr. Home, com ar triste e desiludido, despedia-se, então, de
uma nobre dama, cuja benevolente acolhida fora uma de suas primeiras alegrias na
França. Naquele dia, como sempre, a sra. B... foi gentil com ele, e quis retê-lo
para jantar; o misterioso personagem ia aceitar, quando alguém disse que era
esperado um cabalista conhecido no mundo das ciências ocultas pela publicação de
um livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia; as feições do sr. Home
alteraram-se de repente, e ele declarou balbuciando e com uma visível
perturbação que não podia ficar e que a aproximação daquele professor de magia
causava-lhe um insuperável terror. Tudo o que lhe disseram para tranqüilizá-lo
foi inútil. - Não julgo esse homem - dizia ele -, nem afirmo que ele seja bom ou
mau, nada sei sobre isso, mas sua atmosfera me faz mal, perto dele me sentiria
sem forças e como que sem vida.
E, depois dessa explicação, o sr. Home apressou-se a
despedir-se e a sair.
Esse terror dos homens de prestígio em presença dos verdadeiros
iniciados à ciência não é um fato novo nos anais do ocultismo. Pode-se ler em
Filóstrato a história da estrige que treme ao ouvir chegar Apolônio de Tiana.
Nosso admirável escritor Alexandre Dumas dramatizou essa lenda mágica no belo
resumo de todas as lendas que serviria de prólogo à sua grande epopéia romanesca
do Judeu Errante. A cena passa-se em Corinto; é uma cerimônia de
casamento antiga com belas crianças coroadas de flores que carregam archotes
nupciais e cantam epitalâmios graciosos e ornados de voluptuosas imagens como as
poesias de Catulo. A noiva está linda, em suas castas vestes, como a Polímnia
antiga; está amorosa e deliciosamente provocante em seu pudor, como uma Vênus de
Corrégio ou uma Graça de Cânova. Aquele que ela desposa é Clínias, um discípulo
do célebre Apolônio de Tiana. O mestre prometeu vir às núpcias de seu discípulo,
mas não vem, e a bela noiva respira mais aliviada, pois teme Apolônio. No
entanto, o dia não acabou. É chegada a hora do leito nupcial, e de repente Méroe
treme, empalidece, olha fixamente em direção à porta, estende a mão aterrorizada
e diz numa voz sufocada: "Ei-lo! é ele!" É Apolônio de fato. Eis o mago, eis o
mestre: a hora dos encantamentos passou, os prestígios caem diante da verdadeira
ciência. Procura-se a bela noiva, a branca Méroe, e vê-se apenas uma velha
mulher, a bruxa Canídie, a devoradora de criancinhas. Clínias está desiludido,
agradece seu mestre; está salvo.
O vulgo sempre se enganou sobre a magia, e confunde os adeptos
com os encantadores. A verdadeira magia, isto é, a ciência tradicional, dos
magos, é inimiga mortal dos encantamentos; ela impede ou faz cessar os falsos
milagres, hostis à luz e fascinadores de um pequeno número de testemunhas
preparadas ou crédulos. A desordem aparente nas leis da natureza é uma mentira;
não é, pois, uma maravilha. A maravilha verdadeira, o verdadeiro prodígio sempre
resplandecente aos olhos de todos é a harmonia sempre constante dos efeitos e
das causas; são os esplendores da ordem eterna!
Não saberíamos dizer se Cagliostro teria feito milagres diante
de Swedenborg, mas teria certamente temido a presença de Paracelso e de Henri
Khunrath, se esses dois grandes homens tivessem sido seus contemporâneos.
Longe de nós, no entanto, a idéia de denunciar o sr. Home como
um bruxo de baixa categoria, isto é, um charlatão. O célebre médium americano é
doce e ingênuo como uma criança. É um pobre ser muito sensitivo, sem intriga e
sem defesa; é o joguete de uma força terrível que ele ignora, e ele próprio é
certamente a primeira de suas vítimas.
O estudo dos estranhos fenômenos que se produzem em torno desse
moço é da maior importância. Trata-se de rever seriamente as denegações
demasiado levianas do século XVIII, e de abrir diante da ciência e da razão
horizontes menos estreitos que os da crítica burguesa, que nega tudo o que ainda
não pode explicar. Os fatos são inexoráveis, e a verdadeira boa fé nunca deve
recear examiná-los.
A explicação desses fatos que todas as tradições obstinam-se em
afirmar e que se reproduzem diante de nós com uma incômoda publicidade, essa
explicação, antiga como os próprios fatos, rigorosa como a matemática, mas pela
primeira vez tirada das sombras onde a escondiam os hierofantes de todas as
idades, seria um grande evento científico, se pudesse obter bastante luz e
publicidade. Vamos talvez preparar esse evento, pois não nos seria permitido a
esperança audaciosa de concluí-lo.
Em primeiro lugar, eis os fatos em toda sua singularidade.
Comprovamo-os e vamos restabelecê-los com uma rigorosa exatidão abstendo-nos,
inicialmente, de qualquer explicação ou comentário.
O sr. Home está sujeito a êxtases que o põem, segundo ele, em
contato diretamente com a alma de sua mãe, e, pela intermediação desta, com todo
o mundo dos espíritos. Descreve, como os sonâmbulos de Cahagnet, pessoas que
nunca viu e que são reconhecidas pelos que as evocam; vos dirá mesmo seus nomes
e responderá de sua parte a perguntas que só podem ser compreendidas por elas e
por vós mesmos.
Quando ele está num apartamento, ruídos inexplicáveis fazem-se
ouvir. Batidas violentas ecoam nos móveis e nas paredes; algumas vezes as portas
e as janelas abrem-se como se fossem impelidas por uma tempestade; fora,
chega-se a ouvir o vento e a chuva; ao sair, o céu está sem nuvens, e não se
sente nem o mais leve sopro de vento.
Os móveis são erguidos e deslocados sem que ninguém os
toque.
Lápis escrevem sozinhos. A caligrafia é a do sr. Home, e
cometem os mesmos erros que ele.
As pessoas presentes sentem-se tocar e agarrar por mãos
invisíveis. Esses contatos, que parecem escolher as damas, carecem de
seriedade, e por vezes mesmo de conveniência, em sua aplicação. Pensamos que nos
compreendem o suficiente.
Mãos visíveis e tangíveis saem ou parecem sair das mesas, mas
para isso é preciso que as mesas estejam cobertas. São necessários alguns
preparativos ao agente invisível, assim como aos mais hábeis sucessores de
Robert Houdin.
Essas mãos mostram-se sobretudo na escuridão; são quentes e
fosforescentes ou frias e negras. Escrevem tolices ou tocam piano; e quando
tocam piano é preciso vir o afinador, pois seu contado é sempre fatal à afinação
do instrumento.
Um dos mais recomendáveis personagens da Inglaterra, sir Edward
Bulwer Lytton, viu e tocou essas mãos; lemos a declaração escrita e assinada por
ele. Declara mesmo tê-las apertado e puxado para si com toda a força, para fazer
saírem do seu esconderijo os braços a que naturalmente elas deviam estar
ligadas. Mas a coisa invisível foi mais forte do que o romancista inglês, e as
mãos escaparam-lhe.
Um fidalgo russo, que foi o protetor do senhor Home e cujo
caráter e boa fé não poderiam ser alvo de nenhuma dúvida, o conde A.B... também
viu e apertou vigorosamente as mãos misteriosas. Eram, disse ele, formas
perfeitas de mãos humanas, quentes e vivas; só que não se sentiam os ossos.
Cerradas num aperto inevitável, as mãos não lutaram para escapar, mas
diminuíram, fundiram-se de algum modo, e o conde acabou por nada mais
segurar.
Outras pessoas que viram e tocaram essas mãos dizem que os
dedos são inchados e rígidos, e comparam-nos a luvas de borracha cheias de um ar
fosforescente e quente. Por vezes, no lugar de mãos, são pés que se exibem,
todavia, nunca a descoberto. O espírito, a quem provavelmente faltam sapatos,
respeita ao menos nisso a delicadeza das damas, e nunca mostra seu pé a
não ser sob um cortinado ou uma toalha.
A aparição desses pés cansa e assusta muito o senhor Home. Ele
procura então aproximar-se de alguma pessoa saudável, agarra-a como se temesse
afogar-se; e a pessoa assim agarrada pelo médium sente-se de repente num estado
singular de esgotamento e debilidade.
Um fidalgo polonês, que assistia a uma das sessões do senhor
Home, colocara no chão entre seus pés um lápis sobre um papel, e pedira um sinal
da presença do espírito. Durante alguns instantes nada se moveu. De repente, o
lápis foi lançado ao outro extremo do apartamento. O fidalgo abaixou-se, pegou o
papel e viu aí três signos cabalísticos que ninguém compreendia. Só o senhor
Home, ao vê-los, pareceu experimentar uma grande contrariedade e manifestou um
certo temor; porém recusou-se a explicar a natureza e a significação desses
caracteres. Guardaram-nos, então, e trouxeram-nos para este professor de magia,
cuja aproximação o médium tanto receara. Examinamo-os e aqui está sua minuciosa
descrição.
Estavam desenhados com força e o lápis quase rasgara o papel.
Estavam espalhados na folha sem ordem e sem alinhamento.
O primeiro era o signo que os iniciados egípcios geralmente
colocavam na mão de Tífon. Um tau com duplo traço vertical aberto em forma
de compasso, uma cruz com alça tendo no alto um círculo, abaixo do círculo
um duplo traço horizontal, sob o duplo traço horizontal um duplo traço oblíquo
em forma de V invertido.
O segundo caráter representava uma cruz de grande hierofante
com as três travessas hierárquicas. Esse símbolo, que remonta à mais alta
Antigüidade, é ainda o atributo de nossos soberanos pontífices e arremata a
extremidade superior de seu bastão pastoral. Mas o signo traçado pelo lápis
tinha de particular que o ramo superior, a cabeça da cruz, era duplo e formava
ainda o terrível V tifoniano, o signo do antagonismo e da separação, o símbolo
do ódio e do combate eterno.
O terceiro caráter era o que os maçons denominam cruz
filosófica, uma cruz de quatro ramos iguais com um ponto em cada um dos ângulos.
Porém, em vez de quatro pontos, havia somente dois, colocados nos dois ângulos
da direita, ainda um signo de luta, de separação e de negação.
O professor, que nos será permitido distinguir aqui do narrador
e nomear na terceira pessoa, para não cansar nossos leitores parecendo
falar-lhes de nós, o professor, pois, mestre Eliphas Levi, deu às pessoas
reunidas na sala da senhora B... a explicação científica das três assinaturas, e
eis o que ele disse:
"Estes três signos pertencem à série dos hieróglifos sagrados e
primitivos conhecidos somente pelos iniciados da primeira ordem, o primeiro é a
assinatura de Tífon. Ele exprime a blasfêmia desse espírito do mal estabelecendo
o dualismo no princípio criador. Pois a cruz com alça de Osíris é um linga
invertido, e representa a força paterna e ativa de Deus (a linha vertical saindo
do círculo) fecundando a natureza passiva (a linha horizontal). Dobrar a linha
vertical é afirmar que a natureza tem dois pais; é colocar o adultério no lugar
da maternidade divina, é afirmar, ao invés do primeiro princípio inteligente, a
fatalidade cega que tem por resultado o conflito eterno das aparências no nada;
é, pois, o mais antigo, o mais autêntico e o mais terrível de todos os estigmas
do inferno. Significa o deus ateu, é a assinatura de Satã.
"Essa primeira assinatura é hierática e refere-se aos
caracteres ocultos do mundo divino.
"A segunda pertence aos hieróglifos filosóficos, representa a
medida ascensional da idéia e a extensão progressiva da forma.
"É um triplo tau invertido, é o pensamento humano afirmando
alternativamente o absoluto nos três mundos, e esse absoluto termina aqui por um
forcado, ou seja, pelo signo da dúvida e do antagonismo. De tal modo que, se o
primeiro caráter queria dizer: Não existe Deus, este tem por significação
rigorosa: A verdade hierárquica não existe.
"O terceiro, ou a cruz filosófica, foi em todas as iniciações o
símbolo da natureza e de suas quatro formas elementares, os quatro pontos
representam as quatro letras indizíveis e incomunicáveis do tetragrama oculto,
esta fórmula eterna do grande arcano G.’. A.’.
"Os dois pontos da direita representam a força, os da esquerda
figuram o amor, e as quatro letras devem ser lidas da direita para a esquerda
começando pelo alto à direita, e indo daí para a letra embaixo à esquerda, e
assim para as outras fazendo a cruz de Santo André.
"A supressão dos dois pontos da esquerda exprime, pois, a
negação da cruz, a negação da misericórdia e do amor.
"A afirmação do reino absoluto da força, e de seu antagonismo
eterno, de alto a baixo e de baixo ao alto.
"A glorificação da tirania e da revolta.
"O signo hieroglífico do vício imundo, que se teve ou não razão
de reprovar aos Templários, é o signo da desordem e do desespero eternos."
Tais são, portanto, as primeiras revelações da ciência oculta
dos magos sobre esses fenômenos de manifestações sobrenaturais. Agora, seja-nos
permitido relacionar essas assinaturas estranhas a outras aparições
contemporâneas de escrituras fenomenais, pois é um verdadeiro processo que a
ciência deve instruir antes de levá-lo ao tribunal da razão pública. É preciso,
pois, não desprezar nenhuma averiguação e nenhum indício.
Nas proximidades de Caen, em Tilly-sur-Seulles, uma série de
fatos inexplicáveis produziam-se, havia alguns anos, sob a influência de um
médium ou de um extático chamado Eugène Vintras.
Algumas circunstâncias ridículas e um processo fraudulento logo
fizeram cair no esquecimento e mesmo no desprezo esse taumaturgo, atacado aliás
com violência em panfletos cujos autores eram antigos admiradores de sua
doutrina, pois o médium Vintras também dogmatiza. No entanto, uma coisa é
notável nas invectivas de que ele é alvo: é que seus adversários, mesmo
esforçando-se em condená-lo, reconhecem a verdade de seus milagres e
contentam-se em atribuí-los ao demônio.
Quais são, pois, os milagres tão autênticos de Vintras?
Sobre esse assunto estamos melhor informados do que ninguém,
como logo se notará. Autos assinados por testemunhas honradas, artistas,
médicos, padres, aliás irrepreensíveis, foram-nos comunicados; interrogamos
testemunhas oculares, e, melhor do que isto, vimos. As coisas merecem ser
contadas com alguns detalhes.
Existe em Paris um escritor, no mínimo excêntrico, que se chama
Madrolle. É um ancião cuja família e relações são honradas. Escreveu
primeiramente no sentido católico mais exaltado, recebeu os estímulos mais
lisonjeiros das autoridades eclesiásticas e até mesmo breves emanações da Santa
Sé, depois conheceu Vintras; e, arrastado pelo prestígio de seus milagres,
tornou-se um sectário determinado e um inimigo irreconciliável da hierarquia e
do clero.
Na época em que Eliphas Levi publicava seu Dogma e Ritual da
Alta Magia, recebeu uma brochura de Madrolle que o surpreendeu. O autor
sustentava abertamente os paradoxos mais inauditos no estilo desordenado dos
extáticos. Para ele, a vida bastava para a expiação dos grandes crimes, uma vez
que ela era a conseqüência de uma sentença de morte. Os piores homens, por serem
os mais infelizes de todos, pareciam-lhe oferecer a Deus uma expiação mais
sublime. Enfurecia-se contra toda repressão e toda danação. "Uma religião que
condena", exclamava ele, "é uma religião condenada!" Depois pregava a licença
mais absoluta sob o pretexto de caridade, e chegava até a dizer que o ato de
amor mais imperfeito e aparentemente mais repreensível valia mais que a melhor
das preces. Era o Marquês de Sade tornado pregador. Depois negava o diabo
com um entusiasmo por vezes pleno de eloqüência.
"Podeis conceber", dizia ele, "um diabo que Deus tolera, que
Deus autoriza! Conceber além disso um Deus que fez o diabo e que o deixa
atormentar criaturas já tão fracas e tão prontas a se enganarem! Um Deus do
diabo enfim, secundado, preconceituoso e mal superado em suas vinganças por um
diabo de Deus!..." O restante da brochura tinha a mesma força. O professor de
magia esteve a ponto de aterrorizar-se e tratou de conseguir o endereço de
Madrolle. Não foi sem alguma dificuldade que ele chegou até esse singular
panfletário, e eis a seguir mais ou menos o que foi a conversa:
Eliphas Levi: - Senhor, recebi sua brochura. Venho
agradecer-lhe e testemunhar-lhe ao mesmo tempo meu espanto e meu pesar.
Madrolle: - Seu pesar, senhor! Queira explicar-se, não estou
entendendo.
- Lamento profundamente, senhor, vê-lo cometer erros que
outrora eu mesmo cometi. Mas eu tinha, então, pelo menos a desculpa da
inexperiência e da juventude. Falta alcance à sua brochura porque falta-lhe
medida. Por certo sua intenção era protestar contra erros na crença, contra
abusos na moral; e acontece serem a própria crença e a moral que o senhor ataca.
A exaltação que transborda em seu pequeno escrito deve mesmo causar-lhe muito
transtorno, e alguns de seus melhores amigos devem ter-se preocupado com seu
estado de saúde...
- Sem dúvida! Já se disse e ainda se diz que sou louco. Mas não
é de hoje que os crentes devem suportar a loucura da cruz. Estou exaltado
porque, no meu lugar, o senhor também estaria, pois é impossível permanecer frio
na presença dos prodígios.
- Oh! Oh! o senhor está falando de prodígios, isso me
interessa. Vejamos, cá entre nós e de boa fé, de que prodígios se trata?
- Ora! de que prodígios senão daqueles do grande profeta Elias,
que voltou à terra sob o nome de Pierre Michel.
- Estou ouvindo; o senhor quer dizer Eugène Vintras. Ouvi falar
de suas obras. Mas ele realmente faz milagres?
(Nesse momento, Madrolle dá um salto da cadeira, ergue os olhos
e as mãos para o céu, e termina por sorrir com uma condescendência que se
assemelha a uma profunda piedade.)
- Se ele faz milagres, meu senhor! E os maiores!... Os mais
surpreendentes!... Os mais incontestáveis!... Os mais verdadeiros milagres que
se tenham feito na terra desde Jesus Cristo!... Como! milhares de hóstias
aparecem sobre altares onde não havia nenhuma, o vinho brota em cálices vazios,
e não é uma ilusão, é vinho, um vinho delicioso... ouvem-se músicas celestes,
exalam-se aromas do outro mundo... e finalmente sangue... um verdadeiro sangue
humano (foi examinado por médicos!), um sangue de verdade, estou dizendo, goteja
e por vezes jorra das hóstias deixando nelas caracteres misteriosos! Estou lhe
dizendo o que vi, ouvi, toquei, provei! E o senhor quer que eu permaneça frio
diante de uma autoridade eclesiástica que acha mais cômodo negar tudo do que
examinar qualquer coisa...!
- Com licença, meu senhor; é sobretudo em matéria de religião
que a autoridade nunca pode errar... Em religião, o bem é a hierarquia, e o mal
é a anarquia; a que se reduziria, com efeito, a influência do sacerdócio, se o
senhor coloca como princípio que é preciso acreditar no testemunho dos sentidos
mais do que nas decisões da Igreja? A Igreja não é mais visível do que todos os
seus milagres? Os que vêem milagres e não vêem a Igreja são bem mais dignos de
compaixão do que os cegos, pois não lhes resta nem mesmo o recurso de se
deixarem conduzir...
- Meu senhor, sei tanto quanto o senhor essas coisas. Mas Deus
não pode estar em desacordo consigo próprio. Não pode permitir que a boa fé seja
ludibriada, e a própria Igreja não poderia decidir que sou cego quando tenho
dois olhos... Ouça, eis o que se lê nas cartas de Jan Hus, quadragésima terceira
carta, no final:
"Um doutor disse-me: "Em todas as coisas submeter-me-ia ao
concílio, tudo então seria bom e legítimo para mim." Acrescentou: "Se o concílio
dissesse que tendes apenas um olho, embora tenhais dois, ainda assim seria
preciso dizer que o concílio tem razão." Quando o mundo inteiro, respondi,
afirmasse tal coisa, enquanto tivesse o uso da razão, não poderia concordar sem
ferir minha consciência." Eu lhe direi como Jan Hus: Antes de haver uma Igreja e
concílios, há uma verdade e uma razão.
- Um momento, meu caro senhor. Antigamente o senhor era
católico, não é mais; as consciências são livres. Observarei apenas que a
instituição da infalibilidade hierárquica em matéria de dogma é de modo bem
diverso racional e bem mais incontestavelmente verdadeira que todos os milagres
do mundo. Aliás, o que não se deve fazer para conservar a paz! Acredita o senhor
que Jan Hus não teria sido um homem bastante superior, se tivesse sacrificado um
de seus olhos à concórdia universal, ao invés de inundar a Europa de sangue! Oh!
Senhor, que a Igreja decida quando lhe aprouver que sou caolho; só lhe peço uma
graça, a de me dizer de qual olho, para que eu possa fechá-lo e olhar através do
outro, com uma ortodoxia irrepreensível!
- Confesso que não sou ortodoxo ao seu modo.
- Estou percebendo. Mas voltemos aos prodígios! O senhor os
viu, tocou, sentiu, provou; mas, vejamos, exaltações à parte, queira me contar
um bem detalhado, bem circunstanciado, e que sobretudo seja evidentemente um
milagre. Estou sendo indiscreto ao lhe pedir isso?
- De modo nenhum; mas qual escolherei? Há tantos! Ouça -
acrescentou Madrofle após um instante de reflexão e com um leve tremor de emoção
na voz -, o profeta está em Londres e nós estamos aqui. Pois bem! se o senhor
lhe pedisse, apenas em pensamento, que lhe enviasse imediatamente a comunhão e
se, num lugar designado pelo senhor, em sua casa, numa peça de roupa, num livro,
o senhor encontrasse, ao voltar, uma hóstia, o que diria?
- Declararia esse fato inexplicável pelos meios usuais da
crítica. - Pois bem, senhor! - exclama então Madrolle triunfante - no entanto, é
isso que muitas vezes me acontece; quando quero, isto é, quando estou preparado
e quando espero ser digno! Sim, senhor, encontro a hóstia quando a peço; eu a
encontro real, palpável, mas freqüentemente decorada com pequenos corações
milagrosos que se acreditaria pintados por Rafael.
Eliphas Levi, que se sentia pouco à vontade para discutir fatos
a que se misturava uma espécie de profanação das coisas mais veneradas,
despediu-se do antigo escritor católico e saiu meditando sobre a estranha
influência desse Vintras, que modificara assim esta velha crença e esta velha
mente de sábio.
Alguns dias depois, o cabalista Eliphas foi acordado muito cedo
por um visitante desconhecido. Era um homem de cabelos brancos, todo vestido de
preto, a fisionomia de um padre extremamente devoto, de aspecto, em suma,
inteiramente respeitável.
Esse eclesiástico estava munido de uma carta de recomendação
assim escrita:
"Caro Mestre,
Envio-lhe um velho sábio que deseja "arranhar" com o senhor o
hebraico da bruxaria. Receba-o como eu mesmo (quero dizer como eu mesmo o
recebi), desembaraçando-se dele da melhor maneira possível.
Todo seu na sacrossanta
Cabala.
Ad. Desbarolles."
- Senhor Abade - diz Eliphas sorrindo após haver lido -, estou
à sua inteira disposição e nada posso recusar ao amigo que me escreve, então o
senhor esteve com meu excelente discípulo Desbarolles?
- Sim, senhor, e encontrei nele um homem muito amável e muito
sábio. O senhor e ele, acredito serem dignos da verdade que recentemente se
manifestou através de surpreendentes milagres e das revelações positivas do
arcanjo São Miguel.
- O senhor nos deixa honrados. O prezado Desbarolles
surpreendeu-o, então, por sua ciência?
- Oh! com certeza ele possui os segredos da quiromancia num
grau bastante notável; apenas com a leitura de minha mão contou-me quase toda
minha vida.
- Ele é bem capaz disso. Mas entrou em detalhes?
- O suficiente, senhor, para convencer-me de seus conhecimentos
extraordinários.
- Disse-lhe que o senhor é o antigo pároco de Mont-Louis, na
diocese de Tours? Que é o discípulo mais zeloso do extático Eugène Vintras? E
que se chama Charvoz?
Tamanha reviravolta causou-lhe um choque: o velho padre, a cada
uma dessas três frases, dera um salto na cadeira. Quando ouviu seu nome
empalideceu e levantou-se como se fosse impulsionado por uma mola.
- O senhor é realmente um mágico? - exclamou ele. - Charvoz é
de fato meu nome, mas não é o que uso; faço-me chamar La Paraz...
- Eu sei. La Paraz é o sobrenome de sua mãe. O senhor deixou
uma posição bastante invejável: a de pároco de um cantão e de um encantador
presbitério, para compartilhar da existência agitada de um sectário...
- Diga de um grande profeta!
- Senhor, acredito inteiramente em sua boa fé. Mas vai me
permitir examinar um pouco a missão e o caráter de seu profeta.
- Pois não, senhor, o exame, o grande dia, a luz da ciência,
eis o que pedimos. Venha a Londres e verá! Os milagres são permanentes.
- Pode me dar, antes, alguns detalhes exatos e conscienciosos
sobre os milagres?
- Oh! quantos quiser.
E o velho padre começou imediatamente a contar coisas que todo
o mundo teria considerado impossíveis, mas que não fizeram o professor de alta
magia sequer franzir as sobrancelhas.
Coisas como por exemplo:
- Um dia, Vintras, num acesso de entusiasmo, pregava diante de
seu altar heterodoxo; vinte e cinco pessoas assistiam a esse sermão. Um cálice
vazio estava sobre o altar, cálice bem conhecido pelo abade Charvoz; trouxera-o
ele próprio de sua igreja de Mont-Louis, e tinha absoluta certeza de que esse
cálice sagrado não tinha nem conduto misterioso nem fundo duplo.
"Para vos provar", diz Vintras, "que é o próprio Deus quem me
inspira, ele me faz saber que o cálice vai se encher com as gotas de seu sangue
sob a aparência de vinho, e todos vós podereis saborear o produto das vinhas do
porvir, o vinho que devemos beber com o Salvador no reino de seu pai..."
- Tomado de espanto e medo - continua o abade Charvoz subo ao
altar, pego o cálice, olho no fundo: estava inteiramente vazio. Viro-o diante de
todos, depois volto a me ajoelhar ao pé do altar, segurando o cálice entre as
mãos... De repente ouve-se um leve ruído, como se tivesse caído do teto
uma gota de água no cálice, e uma gota de vinho aparece no fundo. Todos os
olhares voltam-se para mim, olha-se para o teto, pois nossa simples capela
estava armada num quarto pobre; no teto não havia buraco nem fenda, nada se via
cair, e no entanto o barulho da queda das gotas multiplicava-se mais rápido e
mais apressado... e o vinho brotava do fundo do cálice para a borda. Quando o
cálice ficou cheio, passei-o lentamente sob os olhares da assembléia,
depois o profeta molhou aí seus lábios, e todos, um após o outro,
provaram o vinho milagroso. Qualquer lembrança de um sabor delicioso não
poderia dar a idéia de seu gosto. E o que lhe direi - acrescentou o abade
Charvoz - dos prodígios de sangue que nos surpreendem todos os dias. Milhares de
hóstias feridas e sangrentas refugiam-se em nossos altares. Os estigmas sagrados
aparecem diante de todos aqueles que os querem ver. As hóstias, inicialmente
brancas, marmorizam-se lentamente de caracteres e de corações ensangüentados...
Deve-se acreditar que Deus abandona aos prestígios do demônio as coisas mais
santas? ou antes de mais nada é preciso adorar e crer que é chegada a hora da
suprema e última revelação?
O abade Charvoz, ao falar assim, tinha na voz aquela espécie de
tremor nervoso que Eliphas Levi já observara em Mandrolle. O mágico balançava a
cabeça com um ar pensativo; depois, de repente:
- Senhor - diz ao abade -, o senhor traz consigo uma ou várias
dessas hóstias. Seja gentil deixando-me vê-Ias.
- Senhor...
- Eu sei que o senhor as tem; por que tentar negar?
- Não o nego - diz o abade Charvoz -, mas o senhor me permitirá
não expor às investigações da incredulidade os objetos da mais sincera e
devotada crença.
- Senhor Abade - diz gravemente Eliphas -, a incredulidade é a
desconfiança de uma ignorância quase certa de estar enganada. A ciência não é
incrédula. A princípio creio em sua convicção, uma vez que o senhor aceitou uma
vida de privações e mesmo de reprovações por essa infeliz crença. Mostre-me,
pois, suas hóstias milagrosas e creia em todo o meu respeito pelos objetos de
uma sincera adoração.
- Pois bem! - diz o abade Charvoz após ter ainda hesitado um
pouco -, vou mostrar-lhe.
Então ele desabotoou o alto de seu colete negro e tirou um
pequeno relicário de prata, diante do qual pôs-se de joelhos com lágrimas nos
olhos e preces nos lábios; Eliphas ajoelhou-se perto dele, e o abade abriu o
relicário.
Havia no relicário três hóstias, uma inteira, as duas outras
quase em pasta e como que amassadas com sangue.
A hóstia inteira tinha no centro um coração em relevo dos dois
lados; um grumo de sangue moldado na forma de coração, e que parecia ter-se
formado na própria hóstia de modo inexplicável. O sangue não poderia ter sido
aplicado por fora, pois a coloração por embebição deixara brancas as partes
aderentes à superfície exterior. A aparência do fenômeno era a mesma dos dois
lados. O mestre de magia foi tomado por um tremor involuntário.
Essa emoção não escapou ao velho pároco que, tendo adorado mais
uma vez e fechado seu relicário, tirou do bolso um álbum e entregou-o a Eliphas
sem nada dizer. Eram cópias de todos os caracteres sangrentos observados nas
hóstias desde o começo dos êxtases e dos milagres de Vintras.
Havia corações de todos os tipos, emblemas de todos os gêneros.
Mas três sobretudo excitaram ao máximo a curiosidade de Eliphas...
- Senhor Abade - diz ele a Charvoz -, conhece estes três
signos?
- Não - disse ingenuamente o abade -, mas o profeta garante que
são da mais alta importãncia e que sua significação oculta deverá ser conhecida
logo, isto é, no final dos tempos.
- Pois bem, senhor - diz solenemente o professor de magia -
antes mesmo do fim dos tempos vou explicar-lhe: estes três signos cabalísticos
são a assinatura do diabo!
- É impossível! - exclama o velho padre.
- É isso mesmo - continuou com firmeza Eliphas.
Ora, eis que signos eram esses:
1º - A estrela do microcosmo, ou o pentagrama mágico. É a
estrela de cinco pontas da maçonaria oculta, a estrela em que Agripa desenhou a
figura humana, a cabeça na ponta superior, os quatro membros nas quatro outras.
A estrela flamejante que, invertida, é o signo hieroglífico do bode da magia
negra, cuja cabeça pode, então, estar desenhada na estrela, os dois chifres no
alto, à direita e à esquerda as orelhas, a barba embaixo. É o signo do
antagonismo e da fatalidade. É o bode da luxúria atacando o céu com seus
chifres. É um signo execrado mesmo no sabbat pelos iniciados de uma ordem
superior.
2º - As duas serpentes herméticas, porém as cabeças e as
caudas, ao invés de se juntarem em dois semicírculos paralelos, estavam de fora,
e não havia linha intermediária representando o caduceu. Acima da cabeça das
serpentes via-se o V fatal, o forcado tifoniano, o caráter do inferno. À direita
e à esquerda, os números sagrados III e VII relegados sobre a linha horizontal
que representa as coisas passivas e secundárias. O sentido do caráter, portanto,
era este:
O antagonismo é eterno.
Deus é a luta das forças fatais que criam sempre
destruindo.
As coisas religiosas são passivas e passageiras.
A audácia delas se serve, a guerra delas se aproveita, e é
através delas que a discórdia se perpetua.
3º - Finalmente, o monograma cabalístico de Jehova, o Iod e o
He, porém invertidos, o que forma, segundo os doutores da ciência oculta, a mais
terrível de todas as blasfêmias e significa, de qualquer modo que se leia:
"Só a fatalidade existe: Deus e o espírito não são. A matéria é
tudo, e o espírito é apenas uma ficção dessa mesma matéria em demência. A forma
é mais que a idéia, a mulher mais que o homem, o prazer mais que o pensamento, o
vício mais que a virtude, a multidão mais que seus chefes, os filhos mais que
seus pais, a loucura mais que a razão!"
Eis o que estava escrito em caracteres de sangue nas hóstias
supostamente milagrosas de Vintras!
Damos nossa palavra de honra de que todos os fatos acima
enunciados são tais como os relatamos e de que nós mesmos vimos e explicamos os
caracteres, segundo a verdadeira ciência mágica e as verdadeiras chaves da
Cabala.
O discípulo de Vintras comunicou-nos também a descrição e o
desenho das vestes pontificais dadas, dizia ele, pelo próprio Jesus Cristo ao
pretenso profeta durante um de seus sonos extáticos. Vintras mandou confeccionar
essas vestes e enfeita-se com elas para fazer seus milagres. São vermelhas. Ele
deve trazer na fronte uma cruz em forma de linga, ter um bastão pastoral
encimado por uma mão, cujos dedos estão todos fechados, à exceção do polegar e
do auricular.
Ora, tudo isso é diabólico por excelência, e não é uma coisa
verdadeiramente maravilhosa essa intuição dos signos de uma ciência perdida?
Pois foi a alta magia que, apoiando o universo sobre as duas colunas de Hermes e
de Salomão, dividiu o mundo metafísico em duas zonas intelectuais, uma branca e
luminosa encerrando as idéias positivas, a outra negra e obscura contendo as
idéias negativas, e que deu à noção sintética da primeira o nome de Deus, à
síntese da outra o nome do diabo, ou de Satã.
O signo do linga trazido na fronte é, na Índia, a marca
distintiva dos adoradores de Shiva, o destruidor; sendo esse signo o do grande
arcano mágico que detém o mistério da geração universal, trazê-lo sobre a fronte
é fazer profissão de impudor dogmático. Ora, dizem os orientais, no dia em que
não houver mais pudor no mundo, e este estiver abandonado à devassidão, que é
estéril, logo acabará por falta de mães. O pudor é a aceitação da
maternidade.
A mão com os três grandes dedos fechados expressa a negação do
ternário e a afirmação das únicas forças naturais.
Os antigos hierofantes, como vai explicar nosso sábio e
espirituoso amigo Desbarolles num belo livro, haviam feito da mão humana o
resumo da ciência mágica. O indicador, para eles, representava Júpiter; o grande
dedo ou dedo médio, Saturno; o anular, Apolo ou o Sol. Para os egípcios, o dedo
médio era Ops, o indicador, Osíris e o anular, Hórus; o polegar representava a
força geradora, e o auricular, a habilidade insinuante. A mão mostrando apenas o
polegar e o auricular equivale, em língua hieroglífica sagrada, à afirmação
exclusiva da paixão e da habilidade. É a tradução abusiva e material desta
grande fala de Santo Agostinho: "Amai e fazei o que quiserdes." Comparai agora
esse signo à doutrina de Madrolle: o ato de amor mais imperfeito e
aparentemente mais condenável vale mais do que a melhor das preces. E vós
vos perguntareis qual força é essa que, independentemente da vontade e da maior
ou menor ciência dos homens (pois Vintras é um homem sem letras e sem
instrução), formula seus dogmas com signos enterrados nos destroços do antigo
mundo, reencontra os mistérios de Tebas e de Elêusis, e escreve-nos os mais
doutos devaneios da Índia com os alfabetos ocultos de Hermes.
Que força é essa? Eu vos direi. Mas tenho ainda muitos outros
prodígios a vos contar, e este trabalho é, digamos, como uma instrução jurídica.
Devemos antes de mais nada completá-la.
No entanto, ser-nos-á permitido, antes de passar a outros
relatos, transcrever aqui uma página de um iluminado alemão, Ludwig Tieck.
"Se, por exemplo, como narra uma antiga tradição, uma parte dos
anjos criados não tardou em decair, e se foram precisamente, como é dito ainda,
os mais brilhantes, pode-se depreender dessa queda apenas que eles buscavam um
caminho novo, uma outra atividade, outras ocupações e uma outra vida, ao
contrário daqueles espíritos ortodoxos, ou mais passivos, que permaneceram na
região que lhes era destinada e não fizeram nenhum uso da liberdade, seu
apanágio comum. Sua queda foi essa gravidade da forma que agora chamamos
realidade, e que é a reabsorção do espírito universal nos abismos. É assim que a
morte conserva e reproduz a vida, é assim que a vida é noiva da morte...
Compreendeis agora o que é Lúcifer? Não é o gênio mesmo do antigo
Prometeu, essa força que impulsiona o mundo, a vida, o próprio
movimento, e que regula o curso das forças sucessivas? Essa força, por sua
resistência, equilibrou o princípio criador. Foi assim que os Eloim criaram o
mundo. Quando em seguida os homens foram colocados na terra, pelo Senhor, como
espíritos intermediários, em seu entusiasmo que os levava a investigar a
natureza e suas profundezas, abandonaram-se à influência daquele soberbo e
poderoso gênio, e quando num doce enlevo precipitaram-se na morte, para aí
encontrar a vida, começaram então a existir de modo verdadeiro, natural e como
convém às criaturas."
Esta página não necessita de comentário e explica o suficiente
as tendências do que se denomina espiritualismo, ou a doutrina
espírita.
Há muito tempo já essa doutrina, ou essa antidoutrina,
trabalha o mundo para precipitá-lo numa anarquia universal. Porém a lei
de equilíbrio nos salvará, e o grande movimento de reação já começou.
Retomemos o relato dos fenômenos.
Um operário apresentou-se um dia na casa de Eliphas Levi. Era
um homem de uns cinqüenta anos, alto, de olhar direto e que falava de modo
bastante sensato. Perguntado sobre o motivo de sua visita, respondeu:
- O senhor deve saber, venho pedir-lhe e suplicar-lhe que me
devolva o que perdi.
Devemos dizer, para sermos sinceros, que Eliphas nada sabia
sobre esse visitante nem sobre o que ele pudesse ter perdido. Assim,
respondeu-lhe:
- Acredita-me muito mais bruxo do que na realidade sou; não sei
quem é nem o que procura, portanto, se acredita que lhe possa ser útil em alguma
coisa, é necessário que se explique e esclareça o seu pedido.
- Pois bem! uma vez que não quer me compreender, reconhecerá
pelo menos isso - disse então o desconhecido, tirando do bolso um pequeno livro
negro e roto.
Era o grimório do papa Honório.
Uma palavra sobre esse pequeno livro tão desacreditado.
O grimório de Honório compõe-se de uma constituição apócrifa de
Honório II para a evocação e o governo dos espíritos; e mais, de algumas
receitas supersticiosas... Era o manual dos maus padres que exerciam a magia
negra durante os mais tristes períodos da Idade Média. Encontram-se aí ritos
sangrentos misturados a profanações da missa e das espécies consagradas,
fórmulas de bruxaria e de malefícios, e também práticas que só a estupidez pode
admitir e a perfídia aconselhar. Enfim, é um livro completo em seu gênero;
assim, tornou-se muito raro nas livrarias, e os apreciadores fazem seu preço
subir muito nos leilões.
- Meu caro senhor - disse o operário suspirando -, desde a
idade de seis anos, não deixei uma única vez de fazer meu serviço. Este livro
não me deixa, e sigo rigorosamente todas as prescrições que ele contém. Por que
então os que me visitavam abandonaram-me? Eli, Eli, Lamma...
- Pare - disse Eliphas -, não parodie as mais formidáveis
palavras que uma agonia já fez o mundo ouvir! Quais são os seres que o visitavam
pelo poder deste livro horrível? Conhece-os? Prometeu-lhes alguma coisa? Assinou
um pacto?
- Não - interrompeu o proprietário do grimório -, não os
conheço e não assumi com eles nenhum compromisso. Sei apenas que entre eles os
chefes são bons, os intermediários alternativamente bons e maus; os inferiores
maus, mas não cegamente e sem que lhes seja possível fazer melhor. Aquele a quem
evoquei e que freqüentemente me apareceu pertence à hierarquia mais elevada,
pois tinha boa aparência, era bem vestido e sempre me dava respostas favoráveis.
Mas perdi uma página do meu grimório, a primeira, a mais importante, a que
trazia a assinatura do espírito, e, desde então, não aparece mais quando o
chamo. Sou um homem perdido. Estou nu como Jó, não tenho mais força nem coragem.
Oh! mestre, eu lhe suplico, o senhor a quem a uma única palavra, a um único
sinal os espíritos obedecerão, tenha piedade de mim e devolva-me o que
perdi!
- Dê-me seu grimório - disse Eliphas. - Que nome dava ao
espírito que lhe aparecia?
- Chamava-o Adonai.
- Em que língua era sua assinatura?
- Ignoro, mas suponho que fosse hebraico.
- Tome - disse o professor de alta magia após haver traçado
duas palavras hebraicas no começo e no final do livro. - Eis duas assinaturas
que os espíritos das trevas nunca falsificarão. Vá em paz, durma bem e não
evoque mais os fantasmas.
O operário retirou-se.
Oito dias depois voltou a procurar o homem de ciência.
- O senhor devolveu-me a esperança e a vida, minha força voltou
em parte, posso, com as assinaturas que me deu, aliviar a dor dos que sofrem e
livrar os obcecados, mas ele não posso mais ver, e, enquanto não o vir de
novo, estarei triste até a morte. Antigamente, ele estava sempre perto de mim,
tocava-me por vezes e acordava-me à noite para me dizer tudo o que eu precisava
saber. Mestre, eu lhe suplico, faça com que o veja de novo.
- Quem?
- Adonai.
- Sabe quem é Adonai?
- Não, mas gostaria de revê-lo.
- Adonai é invisível.
- Eu o vi.
- Ele não tem forma.
- Eu o toquei.
- Ele é infinito.
- É mais ou menos do meu tamanho.
- Os profetas dizem que a orla de sua roupa, do Oriente ao
Ocidente, varre as estrelas da manhã.
- Tinha um sobretudo muito limpo e a roupa muito branca.
- A Sagrada Escritura diz ainda que não se pode vê-lo sem
morrer.
- Tinha um rosto bom e jovial.
- Mas como o senhor procedia para obter essas aparições?
- Ora! Fazia tudo o que está indicado no grande grimório.
- O quê! mesmo o sacrifício de sangue?
- Sem dúvida.
- Infeliz! mas quem era a vítima?
A essa pergunta, o operário teve um leve tremor, empalideceu,
seu olhar perturbou-se.
- Mestre, o senhor sabe melhor do que eu - disse humildemente e
em voz baixa. - Oh! custou-me muito; sobretudo a primeira vez, num único golpe
com a faca mágica cortar a garganta dessa criatura inocente! Uma noite, tinha
acabado de cumprir os ritos fúnebres, estava sentado dentro do círculo, na
soleira interna da minha porta, e a vítima acabava de se consumir num grande
fogo feito com álamos e ciprestes... De repente, perto de mim... vi, ou antes
senti, que ele passava... Ouvi um lamento dilacerante... parecia chorar, e a
partir desse momento tinha a impressão de ouvi-lo sempre.
Eliphas levantara-se e olhava fixamente seu interlocutor. Teria
diante de si um louco perigoso capaz de repetir as atrocidades do Senhor de
Retz? No entanto, a aparência desse homem era suave e honesta. Não, isso não era
possível.
- Mas enfim, essa vítima... diga-me claramente o que era. O
senhor supõe que eu já saiba, e talvez saiba mesmo, mas tenho razões para querer
que me diga.
- Era, de acordo com o ritual mágico, um cabritinho de um ano,
virgem e sem defeitos.
- Um cabrito de verdade?
- Sem dúvida. Acredite, não era nem um brinquedo de criança nem
um animal empalhado.
Eliphas respirou.
"Ainda bem!" pensou, "este homem não é um bruxo digno da
fogueira. Não sabe que os abomináveis autores dos grimórios, quando falavam do
cabrito virgem, queriam dizer uma criancinha."
- Pois bem! - disse então àquele que o consultava -, dê-me
detalhes sobre essas visões. O que me conta interessa-me muitíssimo.
O bruxo, pois é preciso chamá-lo pelo seu nome, o bruxo
contou-lhe então uma série de fatos estranhos de que duas famílias haviam sido
testemunhas, e esses fatos eram precisamente idênticos aos fenômenos do senhor
Home: mãos que saíam das paredes, agitações de móveis, aparições fosforescentes.
Um dia, o temerário aprendiz de mágico ousara chamar Astaroth, e vira aparecer
um monstro gigantesco que tinha o corpo de um porco e a cabeça tirada de um
colossal esqueleto de boi. Mas tudo isso era contado num tom de verdade, com uma
certeza de ter visto, que excluía qualquer dúvida sobre a boa fé e a inteira
convicção do narrador. Eliphas, que é artista em magia, encantou-se com esse
achado. No século XIX, um verdadeiro bruxo da Idade Média, um bruxo ingênuo e
convicto! Um bruxo que viu Satã sob o nome de Adonai, Satã vestido como um
burguês e Astaroth sob sua verdadeira forma diabólica! que obra de arte! que
tesouro de arqueologia!
- Meu amigo - disse a seu novo discípulo -, quero ajudá-lo a
encontrar o que diz ter perdido. Pegue meu livro, observe as prescrições do
ritual e venha ver-me daqui a oito dias.
Oito dias depois, nova conferência, e então o operário declarou
que inventou uma máquina de salvamento da maior importância para a marinha. A
máquina está perfeitamente montada; falta apenas uma coisa... não funciona: um
defeito imperceptível está no mecanismo. Que defeito é esse? Só o espírito de
malícia poderia dizer. É, pois, absolutamente necessário evocá-lo!...
- Cuidado - disse Eliphas -; antes, diga durante nove dias esta
invocação cabalística (e entregou-lhe uma folha manuscrita). Comece esta noite,
e volte amanhã para me dizer o que viu, pois esta noite o senhor terá uma
manifestação.
No dia seguinte, nosso homem não faltou ao encontro.
- Acordei de repente, mais ou menos à uma hora da manhã. Vi
diante de minha cama uma grande luz, e dentro dessa luz um braço de sombra
que passava e repassava diante de mim como para magnetizar-me. Então, tornei
a dormir, e, alguns instantes depois, tendo novamente acordado, revi a mesma
luz, mas ela mudara de lugar. Passara da esquerda para a direita, e sobre o
fundo luminoso distingui a silhueta de um homem que cruzava os braços e me
olhava.
- Como era esse homem?
- Aproximadamente da sua estatura e do seu peso.
- Está bem. Vá e continue a fazer o que eu lhe disse.
Passaram-se os nove dias; ao final desse tempo, nova visita do
adepto; mas dessa vez muito feliz e agradecido. Ao ver ao longe Eliphas:
- Obrigado, mestre! - exclamou -, a máquina funciona, pessoas
que eu não conhecia vieram colocar à minha disposição o capital de que
necessitava para terminar meu empreendimento, reencontrei a paz do sono, e tudo
isso graças ao seu poder.
- Diga antes graças à sua fé e à sua docilidade, e agora adeus,
preciso trabalhar... E então? por que este ar suplicante, o que ainda quer de
mim?
- Oh! se o senhor quisesse!...
- Se quisesse o quê? Não obteve tudo o que pediu, e até mais do
que pediu, pois o senhor não havia falado em dinheiro.
- Sim, certamente, disse o outro suspirando, mas gostaria muito
de revê-lo!
- Incorrigível!
Algumas semanas depois, o professor de alta magia foi acordado
mais ou menos às duas horas da manhã por uma dor de cabeça aguda. Durante alguns
instantes, receou uma congestão cerebral, levantou-se, acendeu a lâmpada, abriu
a janela, passeou pelo seu gabinete de estudos, depois, acalmado pelo ar fresco
da manhã, voltou a deitar-se e adormeceu profundamente; teve, então, um
pesadelo; viu, com uma aparência terrível de realidade, o gigante de cabeça de
boi descarnada de que lhe falara o mecânico. Esse monstro perseguia-o e lutava
com ele. Quando acordou já era dia e alguém batia à sua porta. Eliphas
levantou-se, jogou uma roupa sobre o corpo e foi abrir: era o operário.
- Mestre - disse entrando apressadamente e com um ar alarmado
-, como o senhor está se sentindo?
- Muito bem - respondeu Eliphas.
- Mas essa noite, às duas horas da manhã, o senhor não correu
perigo?
Eliphas não sabia do que se tratava e já não se lembrava de sua
indisposição da noite.
- Um perigo? não, nenhum que eu saiba.
- O senhor não foi atacado por um fantasma monstruoso que
tentava estrangulá-lo? O senhor não sofreu?
Eliphas lembrou-se.
- Sim, certamente tive um começo de apoplexia e um sonho
horrível. Mas como sabe disso?
Na mesma hora, uma mão invisível bateu-me com força no ombro e
acordou-me em sobressalto. Sonhava, então, que o via lutando com Astaroth.
Sentei-me na cama e uma voz disse-me ao ouvido: "Levante-se e vá em socorro de
seu mestre; ele está em perigo." Levantei-me precipitadamente.
Mas, em primeiro lugar, para onde era preciso correr? Que
perigo o ameaçava? Era em sua casa ou em outra parte? A voz nada dissera sobre
isso. Tomei a decisão de esperar o nascer do sol, e, desde que o dia clareou,
vim em seu auxílio, e aqui estou.
- Obrigado, meu amigo - disse-lhe o mágico estendendo-lhe a
mão, Astaroth é um bufão desagradável, e essa noite um pouco de sangue subiu-me
à cabeça, apenas isto. Agora estou perfeitamente bem. Pode, portanto, ficar
tranqüilo e voltar ao trabalho.
Por mais estranhos que sejam os fatos que acabamos de contar,
resta-nos revelar um drama fúnebre ainda bem mais extraordinário.
Trata-se do fato cruento, que no início deste ano, mergulhou no
luto e no estupor Paris e toda a cristandade; fato a que ninguém suspeitou que a
magia negra não fosse estranha.
Eis o que aconteceu:
Durante o inverno, no início do ano passado, um livreiro
informou ao autor de Dogma e Ritual da Alta Magia que um eclesiástico
procurava seu endereço e demonstrava o maior desejo de vê-lo. Eliphas Levi não
se sentiu, de início, tomado de confiança por esse desconhecido a ponto de
expor-se sem precauções à sua visita; indicou uma casa amiga, onde deveria estar
com seu fiel amigo Desbarolles. Na hora combinada e no dia marcado, eles foram à
casa da senha A..., e encontraram o eclesiástico que já há alguns instantes os
esperava.
Era um moço bastante magro, de nariz pontiagudo e arqueado, de
olhos azuis e ternos. Sua testa ossuda e saliente era mais larga do que alta: a
cabeça era alongada atrás, os cabelos lisos e curtos, repartidos de lado, eram
de um loiro acinzentado, pendendo para o castanho claro, mas com uma nuança
particular e desagradável. A boca era sensual e batalhadora; seus modos, aliás,
eram afáveis, a voz doce e a fala algumas vezes um pouco embaraçada. Perguntado
por Eliphas Levi sobre o objetivo sua visita, respondeu que estava à procura do
grimório de Honório e que vinha informar-se com o professor de ciências ocultas
sobre o modo de se obter esse pequeno livro negro, que se tornara praticamente
impossível de encontrar.
- Eu daria cem francos por um exemplar desse grimório - dizia
ele.
- A obra em si nada vale - disse Eliphas. - É uma constituição,
que se supõe ser de Honório II, que o senhor talvez encontre citada por algum
colecionador de constituições apócrifas; o senhor poderia procurar na
biblioteca.
- Farei isso, pois em Paris passo quase todo o meu tempo na
bibliotecas públicas.
- Não está ocupado no ministério de Paris.
- Não, no momento não. Estive trabalhando durante algum tempo
na paróquia São Germano de Auxerre.
- E, pelo que vejo, ocupa-se agora com pesquisas curiosas sobre
as ciências ocultas.
- Não exatamente; mas persigo a realização de uma idéia...
Tenho alguma coisa a fazer.
- Suponho que essa alguma coisa não seja uma operação de magia
negra; sabe, como eu, senhor abade, que a Igreja sempre condenou e ainda condena
severamente tudo o que se relaciona com essas práticas proibidas.
Um pálido sorriso, marcado por uma espécie de ironia
sarcástica, foi toda a resposta do abade, e a conversa interrompeu-se.
No entanto, o quiromante Desbarolles observava atentamente a
mão do padre; este percebeu e seguiu-se, naturalmente, uma explicação, o abade
então ofereceu de bom grado sua mão ao experimentador. Desbarolles franziu as
sobrancelhas e pareceu embaraçado. A mão era úmida e fria, os dedos lisos e
espatulados; o monte de Vênus, ou a parte da palma da mão que corresponde ao
polegar, de um desenvolvimento bastante notável, a linha da vida curta e
interrompida, cruzes no centro da mão, estrelas no monte da Lua.
- Senhor abade - disse Desbarolles -, se o senhor não tivesse
uma sólida instrução religiosa, tornar-se-ia um perigoso sectário, pois, por um
lado, é inclinado ao misticismo mais exaltado e, pelo outro, à obstinação mais
concentrada e menos comunicativa que possa existir no mundo. O senhor procura
muito, mas imagina mais ainda, e como não confia a ninguém suas imaginações elas
poderiam atingir proporções que as transformariam em suas verdadeiras inimigas.
Seus hábitos são contemplativos e um pouco indolentes, mas é uma sonolência
cujos despertares podem ser dignos de temor. É levado a uma paixão que seu
estado... Mas, perdoe-me, senhor abade, receio ter ultrapassado os limites da
discrição.
- Diga tudo, senhor, posso ouvir tudo e desejo tudo saber.
- Pois bem! se, como não duvido, o senhor dedica à caridade
toda a atividade inquieta que as paixões do coração lhe dariam, deve ser muitas
vezes bendito por suas boas obras.
Mais uma vez o abade deu aquele sorriso duvidoso e fatal que
dava ao seu pálido rosto tão singular expressão.
Levantou-se e despediu-se sem ter dito seu nome e sem que
ninguém se tivesse lembrado de perguntá-lo.
Eliphas e Desbarolles reconduziram-no até a escada em respeito
à sua dignidade de padre. Perto da escada, voltou-se e disse lentamente:
- Em breve os senhores ouvirão dizer algo... Ouvirão
falar de mim, acrescentou sublinhando cada palavra. Depois saudou-os com um
gesto de cabeça e com a mão, virou-se sem acrescentar uma só palavra e desceu a
escada.
Os dois amigos retomaram à casa da senhora A...
- Eis aí um singular personagem - disse Eliphas. -
Pareceu-me ver Pierrot des Furnambules no papel de um traidor. O que nos disse
ao partir parece-se bastante com uma ameaça.
- O senhor intimidou-o - disse a senhora A... - Antes de sua
chegada, ele começava a expor todo seu pensamento, mas o senhor falou-lhe de
consciência e das leis da Igreja, ele não ousou confessar o que queria.
- Ora essa! o que ele queria então?
- Ver o diabo.
- Pensaria, por acaso, que o trago no bolso?
- Não, mas sabe que o senhor dá aulas de cabala e de magia,
esperava que o ajudasse em seus empreendimentos. Contou-nos, à minha filha e a
mim, que em seu presbitério, no campo, já fizera uma noite uma evocação com o
auxílio de um grimório vulgar. Então, disse ele, um redemoinho pareceu abalar o
presbitério, as vigas rangeram, a madeira do forro estalou, as portas
balançaram-se, as janelas abriram-se com estrondo, e ouviram-se assovios em
todos os cantos da casa. Esperava, então, a visão formidável, mas nada viu,
nenhum monstro se apresentou; numa palavra, o diabo não quis aparecer. É por
isso que ele procura o grimório de Honório, pois espera encontrar aí conjurações
mais fortes e ritos mais eficazes.
- Realmente! esse homem então é um monstro... ou um louco.
- Deve estar apenas ingenuamente apaixonado - disse
Desbarolles. - Está tormentado por alguma paixão absurda e não espera
absolutamente nada, a menos que o diabo se intrometa.
- Mas como, então, ouviremos falar dele?
- Quem sabe? Talvez tencione seqüestar a rainha da Inglaterra
ou a mãe do sultão.
A conversa parou por aí, e um ano inteiro se passou sem que nem
a senhora A.... nem Desbarolles, nem Eliphas ouvissem falar do jovem padre
desconhecido.
Na noite do primeiro para o segundo dia de janeiro do ano de
1857, Eliphas Levi acordou sobressaltado com as emoções de um sonho estranho e
fúnebre. Parecia-lhe estar num quarto gótico em ruínas muito semelhante à capela
abandonada de um velho castelo. Uma porta oculta por um pano negro dava para
esse quarto, atrás do pano adivinhava-se a luz tênue e avermelhada dos círios, e
parecia a Eliphas que, levado por uma curiosidade cheia de terror, aproximava-se
do pano negro... Então o pano entreabriu-se, uma mão estendeu-se e agarrou o
braço de Eliphas. Ele não viu ninguém, mas ouviu uma voz baixa que dizia em seu
ouvido:
- Venha ver seu pai que vai morrer!
O magista acordou com o coração palpitante e a testa banhada de
suor.
"O que quer dizer esse sonho?", pensou. "Meu pai morreu há
muito tempo; por que me dizem que ele vai morrer, e por que essa advertência
perturbou meu coração?"
Na noite seguinte, o mesmo sonho voltou com as mesmas
circunstâncias, e Eliphas Levi acordou mais uma vez ouvindo repetir ao seu
ouvido:
- Venha ver seu pai que vai morrer!
Essa repetição de pesadelos impressionou Eliphas penosamente:
ele aceitara para 3 de janeiro um convite para jantar em companhia alegre,
escreveu para desculpar-se, achando-se pouco disposto para a alegria de um
banquete de artistas. Permaneceu, então, em seu gabinete de estudos; o tempo
estava carregado; ao meio-dia, recebeu a visita de um de seus discípulos de
magia, o visconde de M... A chuva caiu, então, com tal abundância que Eliphas
ofereceu seu guarda-chuva ao visconde, que recusou-se a aceitá-lo.
Seguiu-se uma discussão de polidez, cujo resultado foi que Eliphas saiu para
reconduzir o visconde. Enquanto estavam fora, a chuva cessou, o visconde
encontrou um carro, e Eliphas, ao invés de voltar para casa, atravessou
maquinalmente o Luxemburgo, saiu pelo portão que dá para a Rua do Inferno, e
encontrou-se diante do Panteão.
Uma dupla fileira de barracas improvisadas para a novena de
Santa Genoveva indicava aos peregrinos o caminho de Santo Estêvão do Monte.
Eliphas, cujo coração estava triste e, por conseguinte, disposto às orações,
seguiu essa via e entrou na Igreja. Podiam ser, nesse momento, quatro horas da
tarde.
A igreja estava cheia de fiéis, e o ofício realizava-se com um
grande recolhimento e uma solenidade extraordinária. Os estandartes das
paróquias da cidade e do subúrbio atestavam a veneração pública por essa virgem
que salvou Paris da fome e das invasões. No fundo da igreja, o túmulo de Santa
Genoveva resplandecia de luz. Cantavam-se as ladainhas e a procissão saía do
coro.
Após a cruz, acompanhada de seus acólitos e seguida pelos
meninos do coro, vinha o estandarte de Santa Genoveva; depois caminhavam em duas
filas as senhoras genovevinas, vestidas de preto com um véu branco na cabeça,
uma fita azul ao pescoço e a medalha da legenda, um círio na mão encimado por
uma pequena lanterna gótica, como as que a tradição atribui às imagens da santa.
Pois, nos antigos legendários, Santa Genoveva é sempre representada com uma
medalha ao pescoço, a que lhe deu São Germano de Auxerre, e segurando um círio
que o demônio esforça-se em apagar, mas que é preservado do sopro do espírito
imundo por um pequeno tabernáculo milagroso.
Após as senhoras genovevinas vinha o clero, depois, finalmente,
aparecia o venerável arcebispo de Paris, mitrado de branco, portando uma capa
levantada de cada lado por dois grandes vigários; o prelado, apoiando-se em seu
báculo, caminhava lentamente e abençoava à direita e à esquerda a multidão que
se ajoelhava à sua passagem. Eliphas via o arcebispo pela primeira vez e
observou os traços de seu rosto. Expressavam a bonomia e a doçura; mas podia-se
notar aí a expressão de um grande cansaço e mesmo de um sofrimento nervoso
penosamente dissimulado.
A procissão desceu até o ádrio da igreja atravessando a nave,
subiu pela nave à esquerda da porta de entrada e chegou ao túmulo de Santa
Genoveva; depois voltou pela nave da direita continuando a cantar ladainhas.
Um grupo de fiéis seguia a procissão e caminhava logo atrás do
arcebispo.
Eliphas misturou-se a esse grupo para atravessar mais
facilmente a multidão que ia se formar novamente e para alcançar a porta da
igreja, pensativo e enternecido com essa piedosa solenidade.
A frente da procissão já tornava a entrar no coro, o arcebispo
chegava à grade da nave: aí o vão era muito estreito para que três pessoas
pudessem passar de frente; o arcebispo, portanto, estava adiante e os
dois grandes vigários atrás sempre segurando as extremidades de sua capa,
que encontrava-se, assim, jogada e puxada para trás, de modo que o prelado
apresentava seu peito descoberto e protegido apenas pelos bordados cruzados da
estola.
Então, os que estavam atrás do arcebispo viram-no estremecer, e
ouviu-se uma interpelação feita em voz alta, todavia sem clamor. O que fora
dito? Parecia ter sido: Abaixo as deusas! mas acreditava-se ter ouvido mal, tão
deslocada e sem sentido parecia essa frase. No entanto, a exclamação repetiu-se
duas ou três vezes, alguém gritou: "Salvem o arcebispo!" outras vozes
responderam: "Às armas!" A multidão dispersou-se, então, revirando as cadeiras e
as barreiras, precipitou-se para as portas gritando. Eram choros de criança,
gritos de mulheres, e Eliphas, arrastado pela multidão, foi de certo modo
carregado para fora da igreja; mas os últimos olhares que pôde lançar aí dentro
depararam-se com um terrível e indelével quadro.
No meio de um círculo alargado pelo terror dos que o rodeavam,
o prelado estava em pé, só, sempre apoiado em seu báculo e sustentado pela
rigidez de sua capa, que os grandes vigários haviam soltado, e que pendia agora
até o chão.
A cabeça do arcebispo estava um pouco inclinada, os olhos e a
mão que não segurava o báculo estavam erguidos para o céu. Sua atitude era a que
Eugênio Delacroix deu ao Bispo de Liège assassinado por bandidos do Javali das
Ardenas; havia no seu gesto toda a epopéia do martírio, era uma aceitação e uma
oferenda, uma prece por seu povo e um perdão para o seu algoz.
A tarde caía, e a igreja começava a escurecer. O arcebispo, com
os braços erguidos para o céu e iluminado por um último raio de luz vindo dos
caixilhos da nave, destacava-se contra um fundo sombrio, onde se distinguia
apenas um pedestal sem estátua em que estavam escritas estas duas palavras da
paixão de Cristo: ECCE HOMO, e mais adiante, no fundo, uma pintura apocalíptica
representando os quatro flagelos prontos a lançarem-se sobre o mundo, e os
turbilhões do inferno seguindo os rastros poeirentos do cavalo pálido da
morte.
Diante do arcebispo, um braço erguido, que se desenhava na
sombra como uma silhueta infernal, segurava e brandia uma faca: soldados
avançavam com a espada em punho.
E enquanto todo esse tumulto acontecia no ádrio da igreja, o
canto das ladainhas continuava no coro como a harmonia das esferas celestes
perpetua-se, atenta às nossas revoluções e às nossas angústias.
Eliphas Levi fora arrastado para fora pela multidão. Saíra pela
porta da direita. Quase no mesmo instante, a porta da esquerda abria-se com
violência, e um grupo furioso precipitava-se para fora da igreja.
Esse grupo girava em volta de um homem que cinqüenta braços
pareciam segurar, que cem punhos estendidos queriam socar.
Esse homem, mais tarde, queixou-se de ter sido maltratado pelos
soldados; mas, tanto quanto se podia observar nesse tumulto, os soldados
protegiam-no contra a exasperada multidão.
Mulheres corriam em seu encalço gritando: Matem-no! - Mas o que
ele fez? - diziam outras vozes.
- O miserável! deu um soco no arcebispo, diziam as mulheres.
Depois outras pessoas saíram da igreja, e as versões contraditórias
entrecruzavam-se.
- O arcebispo teve medo e passou mal - diziam alguns.
- Ele morreu - respondiam outros.
- Viram a faca? - acrescentava um novo interlocutor.
- Era longa como um sabre, e o sangue escorria na lâmina.
Esse pobre monsenhor perdeu um de seus sapatos - observava uma
velha senhora juntando as mãos.
- Não foi nada! Não foi nada! - veio anunciar, então, uma
locadora de cadeiras.
- Podem voltar para a igreja: monsenhor não está ferido, acabam
de declará-lo no púlpito.
A multidão, então, fez um movimento para retornar à igreja.
- Saiam! Saiam! - disse nesse mesmo instante a voz grave e
desolada de um padre.
- O ofício não pode prosseguir. A igreja será fechada; está
profanada.
- Como está o arcebispo? - disse então um homem.
- Senhor - respondeu o padre -, o arcebispo está morrendo, e
talvez nesse momento mesmo em que falamos ele esteja morto!
A multidão dispersou-se consternada, para ir divulgar essa
funesta notícia em toda Paris.
Uma circunstância estranha envolveu Eliphas, e de certo modo
desviou o seu espírito da profunda dor pelo que acabava de acontecer.
Na hora do tumulto, uma mulher idosa e de aparência muito
respeitável tomara-lhe o braço solicitando sua proteção.
Ele achou-se no dever de responder a esse apelo, e, quando saiu
da multidão com essa senhora:
- Como estou feliz - disse-lhe - por ter encontrado um homem
que se aflige com esse grande crime com o qual alegram-se, nesse momento, tantos
miseráveis!
- O que diz, senhora, e como é possível existirem seres tão
depravados para alegrarem-se com tamanha infelicidade?
- Silêncio! - disse a velha senhora - talvez nos ouçam... Sim -
acrescentou, abaixando a voz -, há pessoas que estão encantadas com o que
aconteceu, e olhe, ali, há poucos minutos, havia um homem de aparência sinistra,
que dizia para a multidão inquieta, quando interrogado sobre o que acabava de
acontecer... Oh! não foi nada! foi uma aranha que tombou!
- Não, a senhora deve ter ouvido mal. A multidão não teria
permitido esse abominável propósito, e o homem teria sido imediatamente
preso.
- Quisera Deus que todo o mundo pensasse como o senhor - disse
a dama.
Depois acrescentou:
- Recomendo-me às suas orações, pois vejo que é um homem de
Deus.
- Talvez não seja a opinião de todo o mundo - respondeu
Eliphas.
- E o que nos importa o mundo? - continuou a senhora com
vivacidade - ele é mentiroso, caluniador, ímpio! talvez fale mal do senhor. Não
me espanto com isso, e se o senhor pudesse saber o que ele diz de mim,
compreenderia por que desprezo sua opinião.
- O mundo fala mal da senhora!
- Certamente, e o pior mal que se possa dizer.
- Como assim?
- Acusa-me de sacrilégio.
- A senhora está me assustando. E de qual sacrilégio, por
favor?
- De uma indigna comédia que teria representado para enganar
duas crianças na montanha da Salette.
- Quê! seria...
- Sou a senhorita Merlière.
- Ouvi falar de seu processo, senhorita, e do escândalo que
provocou, mas parece-me que sua idade e sua responsabilidade deveriam protegê-la
de semelhante acusação.
- Venha ver-me, senhor, e o apresentarei a meu advogado, senhor
Farre, é um homem talentoso que eu gostaria de ganhar para Deus.
Conversando assim os dois interlocutores haviam chegado à Rua
do Velho Pombal. A dama agradeceu ao seu cavalheiro improvisado e renovou o
convite para que fosse vê-Ia.
- Vou tentar - disse Eliphas. - Mas, se for, perguntarei ao
porteiro pela senhorita Merlière?
- Cuidado! não me conhecem por esse nome; pergunte pela senhora
Dutruck.
- Dutruck, está bem, senhora, queira aceitar meus humildes
cumprimentos.
E separaram-se.
O julgamento do assassino começou, e Eliphas, ao ler nos
jornais que esse homem era padre, que fizera parte do clero de São Germano de
Auxerre, que fora pároco no interior, que parecia furioso, lembrou-se do padre
pálido que um ano antes procurava o grimório de Honório. Mas a descrição que as
páginas públicas davam desse criminoso contrariava as lembranças do professor de
magia. Com efeito, a maioria dos jornais atribuíam-lhe cabelos negros...
Portanto, não é ele, pensava Eliphas. No entanto, tenho ainda no ouvido e na
memória as palavras que para mim estariam agora explicadas por esse grande
crime:
- Não tardarão a saber algo. Em breve ouvirão falar de mim.
O julgamento teve lugar com todas as horríveis peripécias que
todos conhecem, e o acusado foi condenado à morte.
No dia seguinte, Eliphas leu numa folha judiciária o relato
dessa cena inaudita nos anais da justiça; e sentiu a vista turvar-se quando leu
o trecho em que se descrevia o acusado: "Ele é loiro".
- Deve ser ele - disse o professor de magia.
Alguns dias depois, uma pessoa que na audiência pudera traçar
um esboço do perfil do condenado mostrou-o a Eliphas.
- Deixe-me copiar este desenho - disse, tremendo de
espanto.
Fez a cópia e levou-a ao seu amigo Desbarolles a quem perguntou
sem maiores explicações:
- Conhece este rosto?
- Sim - assentiu vivamente Desbarolles -; espere, é o padre
misterioso que vimos na casa da senhora A.... e que queria fazer evocações
mágicas.
- Pois bem, meu amigo! o senhor confirma minha triste
convicção. O homem que vimos, não tornaremos mais a ver, a mão que o senhor
examinou tornou-se sanguinária. Ouvimos falar dele, como nos anunciara, pois
este padre pálido, sabe qual era seu nome?
- Oh! meu Deus! - disse Desbarolles mudando de cor - receio
saber.
- Pois o senhor sabe, era o infeliz Louis Verger!
Algumas semanas depois do que acabamos de contar, Eliphas Levi
conversava com um livreiro que tem por especialidade colecionar velhos livros de
ciências ocultas sobre o grimório de Honório.
- É agora um artigo impossível de ser encontrado, dizia o
comerciante. O último que tive nas mãos cedi-o a um padre que ofereceu cem
francos por ele.
- Um jovem padre! e lembra-se qual era sua fisionomia?
- Oh! perfeitamente. Mas o senhor deve conhecê-lo, pois ele
contou-me tê-lo visto, e fui eu quem o indicou.
Assim, não havia mais dúvida, o infeliz padre encontrara o
fatal grimório, fizera a evocação e preparara-se para o crime através de uma
série de sacrilégios, pois eis no que consiste a evocação infernal, segundo o
grimório de Honório:
"Escolher um galo preto e dar-lhe o nome do espírito das trevas
que se quer evocar."
"Matar o galo, reservar sua língua, o coração e a primeira pena
da asa esquerda."
"Deixar secarem a língua e o coração e reduzi-los a pó."
"Não comer carne e não beber vinho nesse dia."
"Na terça-feira, ao nascer do dia, dizer uma missa dos
anjos."
"Traçar sobre o altar com a pena do galo molhada em vinho
consagrado assinaturas diabólicas (aquelas do lápis do senhor Home e das hóstias
ensangüentadas de Vintras)."
"Na quarta-feira, preparar uma vela de cera amarela;
levantar-se à meia-noite, e, sozinho numa igreja, começar o ofício dos
mortos."
"Misturar a esse ofício evocações infernais."
"Terminar o ofício à luz de uma única vela, que será em seguida
apagada, e permanecer sem luz na igreja assim profanada até o nascer do
sol."
"Na quinta-feira, misturar à água benta o pó da língua e do
coração do galo preto, e fazer um cordeiro macho de nove dias engolir a
mistura..."
A mão recusa-se a escrever o resto. É um misto de práticas
brutais e atentados revoltantes apropriados a matar o discernimento e a
consciência.
Mas para comunicar-se com o fantasma do mal absoluto, para
realizar o fantasma a ponto de vê-lo e tocá-lo, não é preciso estar,
necessariamente, sem consciência e sem discernimento?
Aí está certamente o segredo dessa inacreditável perversidade,
dessas fúrias assassinas, desse ódio doentio contra toda ordem, toda
magistratura, toda hierarquia, dessa fúria sobretudo contra o dogma que
santifica a paz, a obediência, a doçura sob o símbolo tão comovente de uma
mãe.
Esse infeliz estava certo de que não morreria. O imperador,
acreditava ele, seria forçado a perdoá-lo, um exílio honroso esperava-o, seu
crime lhe daria uma enorme celebridade, seus devaneios seriam comprados a peso
de ouro pelos livreiros. Tornar-se-ia imensamente rico, atrairia a atenção de
uma grande dama e se casaria do outro lado do mar. Era com promessas semelhantes
que outrora o fantasma do demônio também tentava e fazia saltar de um crime a
outro Gilles de Laval, senhor de Retz. Um homem capaz de evocar o diabo, segundo
os ritos do grimório de Honório, engajou-se de tal maneira na trilha do mal que
está disposto a todas as alucinações e a todas as mentiras. Assim Verger
adormecia no sangue para acordar em não sei que abominável Panteão; e acordou no
cadafalso.
Mas as aberrações da perversidade não constituem uma loucura; a
execução desse miserável provou-o.
Sabe-se que resistência desesperada ele opôs aos executores. "É
uma traição", dizia, "não posso morrer assim! Uma hora apenas, uma hora para
escrever ao Imperador! O Imperador deve salvar-me."
Quem, pois, o traía?
Quem, pois, prometera-lhe a vida?
Quem, pois, assegurara-lhe de antemão uma clemência impossível,
visto que ela teria revoltado a consciência pública?
Perguntai tudo isso ao grimório de Honório!
Duas coisas nessa história tão trágica relacionam-se com os
fenômenos do senhor Home: o ruído de tempestade ouvido pelo mau padre quando de
suas primeiras evocações e a perturbação que o impediu de expor todo seu
pensamento na presença de Eliphas Levi.
Pode-se observar também a aparição de um homem sinistro
regozijando-se com o luto público e sustentando um propósito verdadeiramente
infernal em meio à multidão consternada, aparição observada apenas pela extática
da Salette, a tão célebre senhorita Merlière, que, não obstante ter a aparência
de uma pessoa boa e respeitável, é muito exaltada e capaz talvez de agir e de
falar, sem se aperceber, sob a influência de um sonambulismo ascético.
Esta palavra sonambulismo traz-nos de volta ao senhor Home, e
nossos relatos não nos fizeram esquecer do que o título deste trabalho prometia
a nossos leitores.
Devemos dizer-lhes o que é o senhor Home.
Vamos manter nossa promessa.
O senhor Home é um doente afetado por um sonambulismo
contagioso.
Isso é uma asserção.
Restou-nos uma explicação e uma demonstração a dar.
Essa explicação e essa demonstração, para serem completas,
pediam um trabalho capaz de encher um livro.
Esse livro está pronto e publicá-lo-emos brevemente.
Eis seu título: A Razão dos Prodígios, ou o Diabo diante da
Ciência.
Por que o diabo? Porque demonstramos através de fatos o que
antes de nós o senhor Mirville incompletamente pressentira.
Dizemos incompletamente porque o diabo é, para o senhor
Mirville, uma personagem fantástica, enquanto para nós é o uso abusivo de uma
força natural.
Um médium disse: O inferno não é um lugar, é um Estado.
Poderíamos acrescentar: O diabo não é nem uma pessoa nem uma
força; é um vício e, por conseguinte, uma fraqueza.
Voltemos por um momento ao estudo dos fenômenos.
Os médiuns geralmente são seres doentes e limitados.
Nada de extraordinário podem fazer diante das pessoas calmas e
instruídas.
É preciso estar habituado a seu contato para ver e sentir
algo.
Os fenômenos não são os mesmos para todos os espectadores.
Assim, onde um verá uma mão, o outro notará apenas um vapor esbranquiçado.
As pessoas impressionáveis pelo magnetismo do senhor Home
experimentam uma espécie de mal-estar; parece-lhes que a sala gira, e têm a
sensação de que a temperatura abaixa-se rapidamente.
Os prodígios ou os prestígios realizam-se melhor diante de um
pequeno número de testemunhas escolhidas pelo próprio médium.
Numa reunião de pessoas que verão os prestígios, pode
encontrar-se uma que não verá absolutamente nada.
Dentre as pessoas que vêem, não vêem todas a mesma coisa.
Assim, por exemplo:
Numa noite, na casa da senhora B... I o médium fez
aparecer o filho que essa senhora perdeu. Apenas a senhora B... via a criança, o
conde de M... via um pequeno vapor esbranquiçado em forma de pirâmide, as outras
pessoas nada viam.
Todo mundo sabe que certas substâncias, o haxixe, por exemplo,
entorpecem sem privar do uso da razão, e fazem ver, com uma surpreendente
impressão de realidade, coisas que não existem.
Grande parte dos fenômenos do senhor Home pertencem a uma
influência natural semelhante à do haxixe.
Eis por que o médium quer operar apenas diante de um pequeno
número de pessoas escolhidas por ele.
O restante desses fenômenos deve ser atribuído ao poder
magnético.
Ver algo com o senhor Home não é um indício tranqüilizador para
a saúde de quem vê.
Aliás, mesmo que a saúde fosse excelente, essa visão revela uma
perturbação passageira do aparelho nervoso em suas relações com a imaginação e
com a luz.
Se essa perturbação fosse frequentemente repetida, a pessoa se
tornaria seriamente doente.
Quem sabe quantas catalepsias, tétanos, loucuras e mortes
violentas a mania das mesas girantes já produziu?
Esses fenômenos tornam-se particularmente terríveis quando
deles a perversidade se apodera.
É então que se pode realmente afirmar a intervenção e a
presença do espírito do mal.
Perversidade ou fatalidade, os pretensos milagres obedecem a um
desses dois poderes.
Quanto às escrituras cabalísticas e às assinaturas misteriosas,
diremos que se reproduzem pela intuição magnética das imagens do pensamento no
fluido vital universal.
Esses reflexos instintivos podem produzir-se se o Verbo mágico
nada tiver de arbitrário e se os signos do santuário oculto forem a expressão
natural das idéias absolutas.
É o que demonstramos em nosso livro.
Mas, para não remetermos nossos leitores do desconhecido ao
futuro, vamos antecipar dois capítulos dessa obra inédita, um sobre o Verbo
cabalístico, o outro sobre os segredos da cabala, e deles tiraremos conclusões
que completarão de modo satisfatório para todos a explicação que prometemos para
os fenômenos do senhor Home.
Existe um poder gerador das formas; este poder é a luz.
A luz cria as formas segundo as leis das matemáticas eternas,
pelo equilíbrio universal do dia e da sombra.
Os signos primitivos do pensamento delineiam-se por si sós na
luz, que é o instrumento material do pensamento.
Deus é a alma da luz. A luz universal e infinita é para nós
como o corpo de Deus.
A cabala ou a alta magia é a ciência da luz.
A luz corresponde-se com a vida.
O reino das trevas é a morte.
Todos os dogmas da verdadeira religião estão escritos na cabala
em caracteres de luz numa página de sombra.
A página de sombra são as crenças cegas.
A luz é o grande mediador plástico.
A aliança da alma com o corpo é um casamento de luz e de
sombra.
A luz é o instrumento do Verbo, é a escritura branca de Deus no
grande livro da noite.
A luz é a fonte dos pensamentos, e é nela que se deve buscar a
origem de todos os dogmas religiosos. Mas só há um verdadeiro dogma, como só há
uma pura luz; apenas a sombra é infinitamente variada.
A luz, a sombra e sua união que é a visão dos seres, tal é o
princípio analógico dos grandes dogmas da Trindade, da Encarnação e da
Redenção.
Tal é também o mistério da cruz.
Eis o que nos será fácil provar pelos monumentos religiosos,
pelos signos do Verbo primitivo, pelos livros iniciados na cabala, pela
explicação racional, enfim, de todos os mistérios por meio das chaves da magia
cabalística.
Com efeito, em todos os simbolismos encontramos as idéias de
antagonismo e de harmonia produzindo uma noção trinitária na concepção divina,
depois a personificação mitológica dos quatro pontos cardeais do céu completa o
setenário sagrado, base de todos os dogmas e de todos os ritos. Para
convencermo-nos disto, bastará relermos e meditarmos sobre a sábia obra de
Dupuis, que seria um grande cabalista se tivesse visto uma harmonia de verdades
onde suas preocupações negativas apenas o deixaram ver um concerto de erros.
Não devemos refazer aqui o seu trabalho, que todos conhecem;
mas o que importa provar é que a reforma religiosa de Moisés era inteiramente
cabalística, e que o cristianismo, ao instituir um dogma novo, simplesmente
reaproximou-se das fontes primitivas do mosaísmo, e que o Evangelho não é mais
do que um véu transparente lançado sobre os mistérios universais e naturais da
iniciação oriental.
Um sábio notável, mas muito pouco conhecido, M. P. Lacour, em
seu livro sobre os Eloim ou deuses de Moisés, lançou nova luz sobre essa questão
e encontrou nos símbolos do Egito todas as figuras alegóricas do Gênesis. Mais
recentemente, um bravo pesquisador, de vasta erudição, M. Vincent (de Yonne),
publicou um tratado sobre a idolatria entre os antigos e os modernos, onde ergue
o véu da mitologia universal.
Convidamos os homens de estudos conscienciosos a lerem essas
diferentes obras e nós nos concentraremos no estudo especial da cabala entre os
hebreus.
Sendo o Verbo, ou a palavra, segundo os iniciados nessa
ciência, toda a revelação, os princípios da alta cabala devem se encontrar
reunidos nos próprios sinais que compõem o alfabeto primitivo.
Ora, eis o que encontramos em todas as gramáticas
hebraicas.
Há uma letra principiante e universal geradora de todas as
outras. É o Iod h .
Há duas outras letras mães opostas e análogas entre si; o Aleph
t e o Mem n ,
seguindo-se a outras o Schin a .
Há sete letras duplas, o Beth c , o
Ghimel d , o Daleth s , o Caph f , o Phé p , o Resch r e o Tau
, .
Finalmente há doze simples que são as outras letras; ao todo,
vinte e duas.
A unidade é representada de modo relativo pelo aleph, o
ternário é figurado ou por iod, mem, schin, ou por aleph, mem, schin.
O setenário por beth, ghimel, daleth, caph, phé, resch,
tau.
O duodenário pelas outras letras. O duodenário é o ternário
multiplicado por quatro; e entra também no simbolismo do setenário.
Cada letra representa um número:
Cada conjunto de letras uma série de números.
Os números representam idéias filosóficas absolutas.
As letras são hieróglifos abreviados.
Vejamos agora as significações hieroglíficas e filosóficas de
cada uma das vinte e duas letras. (Ver Belarmino, Reuchlin, São Jerônimo,
Kabbala denudata, o Sepher Yétsírah, Technica curiosa do padre
Schott, Pico delia Mirandola e os outros autores, especialmente os da coleção de
Pistorius.)
o
O iod - o princípio absoluto, o ser produtor;
O mem - o espírito, ou o Jaquim de Salomão;
O schin - a matéria, ou a coluna Boaznt
Beth - o reflexo, o pensamento, a lua, o anjo Gabriel, príncipe
dos mistérios;
Ghimel - o amor, a vontade, Vênus, o anjo Anael, príncipe da
vida e da morte;
Daleth - a força, o poder, Júpiter, Sachiel Melech, rei dos
reis;
Caph - a violência, a luta, o trabalho, Mars Samaël Zébaoth,
príncipe das falanges;
Phé - a eloqüência, a inteligência, Mercúrio, Rafael, príncipe
das ciências;
Resch - a destruição e a regeneração, o Tempo, Saturno,
Cassiel, rei dos túmulos e das solidões;
Tau - a verdade, a luz, o Sol, Micael, rei dos Eloim.
ra
As simples dividem-se em quatro ternários trazendo por títulos
as quatro letras do tetragrama divino v u v h .
No tetragrama divino, o iod, como acabamos de dizer, figura o
princípio produtor ativo. O he v representa o
princípio produtor passivo, o ctëiss. O vau , figura a união dos dois ou o
linga, e o he final é a imagem do princípio produtor secundário, isto é, da
reprodução passiva no mundo dos efeitos e das formas.
As doze letras simples v u z y
j h k
b o g
m e , divididas em grupos de três, reproduzem a noção do
triângulo primitivo, com a interpretação e sob a influência de cada uma das
letras do tetragrama.
Vê-se que a filosofia e o dogma religioso da cabala estão
indicados aí de modo completo mas velado.
Interroguemos agora as alegorias do Gênesis.
"No princípio (iod, a unidade do ser), Eloim, as forças
equilibradas (Jaquin e Boaz) fizeram o céu (o espírito) e a terra (a matéria),
em outras palavras, o bem e o mal, a afirmação e a negação." Assim começa o
relato de Moisés.
Depois, quando se trata de dar um lugar ao homem e um primeiro
santuário à sua aliança com a divindade, Moisés fala de um jardim no meio do
qual uma fonte única dividia-se em quatro rios (o Jod e o Tetragrama), depois de
duas árvores, uma da vida, outra da morte, plantadas perto do rio. Aí são
colocados o homem e a mulher, o ativo e o passivo, a mulher simpatiza com a
morte e arrasta consigo em sua ruína Adão, eles são, pois, expulsos do
santuário da verdade e um chérub (uma esfinge com cabeça de touro, ver os
hieróglifos da Assíria, da Índia e do Egito) é colocado à porta do jardim da
verdade para impedir os profanadores de destruírem a árvore da vida. Aí está,
portanto, o dogma misterioso com todas as suas alegorias e seus horrores que
sucede à simples verdade. O ídolo substituiu Deus, e a humanidade decadente não
tardará a dedicar-se ao culto do novilho de ouro.
O mistério das reações necessárias e sucessivas dos dois
princípios um sobre o outro é, em seguida, indicado pela alegoria de Caim e
Abel. A força vinga-se, por opressão, das seduções da fraqueza; a fraqueza
mártir expia e intercede pela força condenada em conseqüência do crime à
vergonha e ao remorso. Assim revela-se o equilíbrio do mundo moral, assim
assenta-se a base de todas as profecias e o ponto de apoio de toda política
inteligente. Abandonar uma força a seus próprios excessos é condená-la ao
suicídio.
O que faltou a Dupuis para compreender o dogma religioso
universal da cabala foi a ciência desta bela hipótese demonstrada em parte e
realizada a cada dia mais pelas descobertas da ciência: a analogia
universal.
Privado dessa chave do dogma transcendental, não pôde ver em
todos os deuses senão o sol, os sete planetas e os doze signos do zodíaco, mas
não viu no sol a imagem do logos de Platão, nos sete planetas as sete
notas da gama celeste, e no zodíaco a quadratura do ciclo ternário de todas as
iniciações.
O imperador Juliano, esse espiritualista incompreendido, esse
iniciado cujo paganismo era menos idólatra do que a fé de certos cristãos, o
imperador Juliano, dizemos, compreendia melhor que Dupuis e Volnay o culto
simbólico ao sol. Em seu hino ao rei Hélio reconhece que o astro do dia é apenas
o reflexo e a sombra material daquele sol de verdade que ilumina o mundo da
inteligência e que é ele próprio apenas um clarão tomado emprestado ao
absoluto.
Coisa notável, Juliano tem o Deus supremo que os cristãos
pensavam serem os únicos a adorar, idéias bem maiores e bem mais justas do que
as de vários pais da Igreja, adversários e contemporâneos desse imperador.
Eis como ele expressa-se em sua defesa do helenismo:
"Não basta escrever num livro: Deus disse, e as coisas foram
feitas. É preciso ver se as coisas que atribuem a Deus não são contrárias às
próprias leis do Ser. Pois, se assim for, Deus não as pode ter feito, ele que
não pode dar desmentidos à natureza sem negar-se a si próprio... Sendo Deus
eterno, é absolutamente necessário que suas ordens sejam imutáveis como
ele."
Eis como falava esse apóstata e esse ímpio, e mais tarde um
doutor cristão, que se tornou o oráculo das escolas de teologia, devia,
inspirando-se talvez nas belas palavras do descrente, colocar um freio em todas
as superstições ao escrever esta bela e corajosa máxima que tão bem resume o
pensamento do grande imperador:
"Uma coisa não é justa porque Deus a quer; mas Deus a quer
porque ela é justa."
A idéia de uma ordem perfeita e imutável na natureza, a noção
de uma hierarquia ascendente e de uma influência descendente em todos os seres
fornecerá aos antigos hierofantes a primeira classificação de toda a história
natural. Os minerais, os vegetais, os animais foram estudados analogicamente, e
atribuíram-se sua origem e suas propriedades ao princípio passivo ou ao
princípio ativo, às trevas ou à luz. O signo de sua eleição ou de sua
reprovação, desenhado na sua forma, tornou-se o caráter hieroglífico de um vício
ou de uma virtude; depois, de tanto tomar o signo pela coisa, e exprimir a coisa
pelo signo, acabou-se por confundi-los, e tal é a origem da história natural
fabulosa em que leões deixam-se abater por galos, em que delfins morrem de dores
após haverem feito ingratos entre os homens, em que mandrágoras falam e estrelas
cantam. Esse mundo encantado é verdadeiramente o domínio poético da magia; mas
tem como realidade apenas a significação dos hieróglifos que lhe deram origem.
Para o sábio que compreende as analogias da alta cabala e a relação exata das
idéias com os signos, esse país fabuloso das fadas é uma região ainda fértil em
descobertas, pois as verdades muito belas ou muito simples para agradar aos
homens sem véus foram todas ocultadas sob essas sombras engenhosas.
Sim, o galo pode intimidar o leão e tornar-se seu mestre,
porque a vigilância frequentemente substitui a força e consegue domar a cólera.
As outras fábulas da pretensa história natural dos antigos explicam-se do mesmo
modo, e, nesse uso alegórico das analogias, já se pode compreender os abusos
possíveis e pressentir os erros que se devem ter originado na cabala.
A lei das analogias foi, de fato, para os cabalistas da segunda
ordem, o objeto de uma fé cega e fanática. É a essa crença que devem ser
relacionadas todas as superstições reprovadas aos adeptos das ciências ocultas.
Eis como raciocinavam:
O signo exprime a coisa.
A coisa é a virtude do signo.
Há correspondência analógica entre o signo e a coisa
significada.
Quanto mais perfeito é o signo, mais a correspondência é
total.
Dizer uma palavra é evocar um pensamento e torná-lo presente.
Dizer Deus, por exemplo, é manifestar Deus.
A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos;
pode-se, portanto, assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar
por palavras.
Proferir um nome é criar ou chamar um ser.
No nome está contida a doutrina verbal ou espiritual do
próprio ser.
Quando a alma evoca um pensamento, o signo desse pensamento
escreve-se por si só na luz. Invocar é adjurar, isto é, jurar por um nome: é
fazer ato de fé nesse nome e comungar na virtude que ele representa.
As palavras, portanto, são por si próprias boas ou más,
venenosas ou salutares.
As palavras mais perigosas são as palavras vãs e proferidas
levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento.
Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de
inteligência. É um infanticídio intelectual.
As coisas são para cada pessoa o que ela as faz ao
denominá-las. O verbo de cada pessoa é uma impressão ou uma prece habitual.
Falar bem é viver bem.
Um belo estilo é uma auréola de santidade.
Desses princípios, uns verdadeiros, outros hipotéticos, e das
conseqüências mais ou menos exageradas que deles tiravam, resultava para os
cabalistas supersticiosos uma confiança absoluta nos encantamentos, evocações,
conjurações e orações misteriosas. Ora, como a fé sempre realiza prodígios,
nunca lhe faltaram as aparições, os oráculos, as curas maravilhosas, as doenças
súbitas e estranhas.
Foi assim que uma simples e sublime filosofia tornou-se a
ciência secreta da magia negra. É sobretudo desse ponto de vista que a cabala
pode ainda excitar a curiosidade da maioria em nosso século tão desconfiado e
tão crédulo. No entanto, como acabamos de expor, a verdadeira ciência não está
aí.
Os homens raramente procuram a verdade por ela mesma; têm
sempre por motivo secreto em seus esforços alguma paixão a satisfazer ou alguma
cupidez a saciar. Dentre os segredos da cabala, há um que sempre atormentou os
pesquisadores: o segredo da transmutação dos metais e a conversão de todas as
substâncias terrestres em ouro.
De fato, a alquimia tomou emprestado à cabala todos os seus
signos, e era na lei das analogias, resultantes da harmonia dos contrários, que
baseava suas operações. Um segredo físico imenso estava, aliás, oculto sob
parábolas cabalísticas dos antigos. Conseguimos decifrá-lo e vamos confiá-lo às
investigações dos fazedores de ouro. Ei-lo:
1º - Os quatro fluidos imponderáveis são apenas as
manifestações diversas de um mesmo agente universal que é a luz.
2º - A luz é o fogo que serve à grande obra sob forma de
eletricidade.
3º - A vontade humana dirige a luz vital por meio do aparelho
nervoso. Em nossos dias isso denomina-se magnetizar.
4º - O agente secreto da pedra filosofal, o azote dos sábios, o
ouro vivo e vivificante dos filósofos, o agente produtor metálico universal é a
ELETRICIDADE MAGNETIZADA.
A aliança dessas duas palavras ainda não nos diz muito e, no
entanto, elas talvez encerrem uma força capaz de revolucionar o mundo. Dizemos
talvez por conveniência filosófica, pois, de nossa parte, não duvidamos
da alta importância desse grande arcano hermético.
Acabamos de dizer que a alquimia é filha da cabala; e, para
convencer-se disso, basta interrogar os símbolos de Flamel, de Basílio Valentim,
as páginas do judeu Abraão e os oráculos mais ou menos apócrifos da mesa de
esmeralda de Hermez. Em toda a parte encontram-se os traços dessa década de
Pitágoras tão brilhantemente aplicada, no Sepher Yétsirah, à noção
completa e absoluta das coisas divinas, essa década composta da unidade e de um
tríplice ternário que os rabinos denominaram o Bereschit e a Mercabah, a árvore
luminosa das Sefirotes e a chave dos Schemamphorasch.
Falamos, com certa extensão, em nosso livro intitulado Dogma
e Ritual da Alta Magia, de um monumento hieroglífico conservado até os
nossos dias sob um pretexto fútil, e que sozinho explica todas as escrituras
misteriosas da alta iniciação. Esse monumento é o tarô dos Boêmios que deu
origem a nossos jogos de cartas. Compõe-se de vinte e duas letras alegóricas e
de quatro séries, cada uma de dez hieróglifos relativos às quatro letras do nome
de Jehovah. As diversas combinações desses signos e dos números que lhes
correspondem formam a mesma quantidade de oráculos cabalísticos, de modo que a
ciência inteira está contida nesse livro misterioso. Essa máquina filosófica
perfeitamente simples surpreende pela profundidade e exatidão de seus
resultados.
O abade Trithème, um de nossos maiores mestres em magia, compôs
sobre o alfabeto cabalístico um trabalho muito engenhoso a que ele denomina
poligrafia. É uma série combinada de alfabetos progressivos em que cada letra
representa uma palavra, as palavras correspondem-se e completam-se de um
alfabeto ao outro, e não há dúvida de que Trithème teve conhecimento do tarô e
dele se utilizou para dispor numa ordem lógica suas sábias combinações.
Jerônimo Cardano conhecia o alfabeto simbólico dos iniciados
como se pode reconhecer pelo número e pela disposição dos capítulos de sua obra
sobre a sutileza. Essa obra, com efeito, é composta de vinte e dois capítulos, e
o tema de cada capítulo é análogo ao número e à alegoria da carta correspondente
no tarô. Fizemos a mesma observação sobre um livro de São Martinho intitulado
Quadro Natural das Relações que existem entre Deus, o Homem e o Universo.
A tradição desse segredo não foi, pois, interrompida desde os primórdios da
cabala até os nossos dias.
Os giradores de mesa e os que fazem falar os espíritos através
de quadrantes alfabéticos estão, pois, muitos séculos atrasados e não sabem que
existe um instrumento de oráculo claro e de um sentido exato por meio do qual se
pode comunicar com os sete gênios dos planetas e fazer falar à vontade as
setenta e duas rodas de Aziah, Jezirah e Briah. Para isso basta conhecer o
sistema de analogias universais, tal como expôs Swedenborg na chave hieroglífica
dos arcanos, depois embaralhar as cartas e tirar ao acaso, dispondo-as sempre
pelos números correspondentes às idéias cujos esclarecimentos se deseja, depois
ler os oráculos como devem ser lidas as escrituras cabalísticas, isto é,
começando no meio indo da direita para a esquerda para os números ímpares,
começando à direita para os pares e interpretando sucessivamente o número pela
letra que lhe corresponde, o conjunto das cartas pela adição de seus números e
todos os oráculos sucessivos por sua ordem numeral e suas relações
hieroglíficas.
Essa operação dos sábios cabalistas para encontrar o
desenvolvimento rigoroso das idéias absolutas degenerou em superstições em meio
aos padres ignorantes e aos nômades ancestrais dos Boêmios que possuíam o tarô
da Idade Média, sem conhecer seu verdadeiro emprego e que dele se serviam
unicamente para ler a sorte.
O jogo de xadrez, atribuído a Palamedes, não tem outra origem
senão o tarô, e nele encontram-se as mesmas combinações e os mesmos símbolos, o
rei, a rainha, o cavaleiro, o soldado, o louco, a torre, depois casas
representando os números. Os antigos jogadores de xadrez procuravam em seu
tabuleiro a solução dos problemas filosóficos e religiosos, e argumentavam um
contra o outro em silêncio manobrando os caracteres hieroglíficos através dos
números. Nosso vulgar jogo do ganso, copiado dos gregos e igualmente atribuído a
Palamedes, é apenas um tabuleiro de figuras imóveis e números móveis por meio
dos dados. É um tarô disposto em roda destinado ao uso dos aspirantes à
iniciação. Ora, a palavra tarô, em que se encontram rota e tora, exprime ela
própria, como demonstrou-o Guilherme Postel, essa disposição primitiva em forma
de roda.
Os hieróglifos do jogo do ganso são mais simples que os do
tarô, mas encontram-se aí os mesmos símbolos: o bobo, o rei, a rainha, a torre,
o diabo ou tífon, a morte, etc. As probabilidades aleatórias desse jogo
representam as da vida e escondem um sentido filosófico bastante profundo para
fazer meditar os sábios e bastante simples para ser compreendido pelas
crianças.
A personagem alegórica de Palamedes é aliás idêntica às de
Henoc, de Hermes e de Cádmo, aos quais atribui-se a invenção das letras nas
diversas mitologias. Mas, no pensamento de Homero, Palamedes, o revelador e a
vítima de Ulisses, representa o iniciador ou o gênio cujo destino eterno é ser
morto por aqueles que inicia. O discípulo torna-se a realização viva dos
pensamentos do mestre apenas depois de ter tomado seu sangue e comido sua carne,
segundo a enérgica e alegórica expressão do iniciador tão mal compreendido pelos
cristãos.
A concepção do alfabeto primitivo era, como se pode ver, a
idéia de uma língua universal, encerrando em suas combinações e em seus próprios
signos o resumo e a lei da evolução de todas as ciências divinas e humanas.
Acreditamos que, desde então, nada mais bonito nem maior foi sonhado pelo gênio
dos homens e confessamos que a descoberta desse segredo do mundo antigo
compensou-nos plenamente por tantos anos de pesquisas estéreis e trabalhos
ingratos nas criptas das ciências perdidas e nas necrópoles do passado.
Um dos primeiros resultados dessa descoberta seria uma nova
direção dada ao estudo das escrituras hieroglíficas ainda tão imperfeitamente
decifradas pelos êmulos e pelos sucessores de Champollion. Sendo o sistema de
escritura dos discípulos de Hermes analógico e sintético como todos os signos da
cabala, para a leitura das páginas gravadas nas pedras dos antigos templos não
importaria recolocar essas pedras em seu lugar e contar o número de suas letras
comparando-as com os números das outras pedras?
O obelisco de Lúxor, por exemplo, não era uma das duas colunas
da entrada de um templo? ficava à direita ou à esquerda? Se ficava à direita,
seus sinais referem-se ao princípio ativo; se ficava à esquerda, é pelo
princípio passivo que se devem interpretar seus caracteres. Mas deve haver uma
correspondência exata de um obelisco ao outro, e cada signo deve receber seu
sentido completo da analogia dos contrários; Champollion encontrou traços do
copta nos hieróglifos, um outro sábio talvez encontrasse mais facilmente e mais
felizmente o hebraico, mas o que diriam se não fosse nem hebraico nem copta? Se
fosse, por exemplo, a língua universal primitiva? Ora, essa língua, que é a da
alta cabala, existiu certamente, existe na base do próprio hebraico e de todas
as línguas orientais que dele derivam, essa língua é a do santuário, e as
colunas da entrada dos templos geralmente resumiam todos os seus símbolos. A
intuição dos extáticos aproxima-se mais da verdade sobre esses signos primitivos
do que a própria ciência dos sábios. Isso porque, como dissemos, o fluido vital,
universal, a luz astral, sendo princípio mediador entre as idéias e as formas,
obedece aos impulsos extraordinários da alma que procura o desconhecido e
fornece-lhe naturalmente os signos já encontrados, mas esquecidos, das grandes
revelações do ocultismo. Assim formaram-se as pretensas assinaturas dos
espíritos, assim produziram-se as escrituras misteriosas de Gablidone que
visitava o doutor Laváter, dos fantasmas de Schroepfer, do São Miguel de Vintras
e dos espíritos do senhor Home.
Se a eletricidade pode mover um corpo leve ou mesmo pesado sem
que seja tocado, seria impossível, pelo magnetismo, dar à eletricidade uma
direção e assim produzir naturalmente sinais e escrituras? É certamente
possível, uma vez que isso é feito.
Assim, portanto, aos que nos perguntarem qual é o maior agente
dos prodígios, responderemos:
- É a matéria-prima da pedra filosofal.
- É a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.
Tudo foi criado pela luz.
É na luz que a forma conserva-se.
É pela luz que a forma reproduz-se.
As vibrações da luz são o princípio do movimento universal.
Pela luz os sóis ligam-se uns aos outros e entrelaçam seus
raios como cadeias de eletricidade.
Os homens e as coisas são imantados de luz como os sóis e
podem, por meio de cadeias eletromagnéticas estendidas pelas simpatias e
afinidades, comunicar-se uns com os outros de uma à outra extremidade do mundo,
acariciar-se ou bater-se, curar-se ou ferir-se de modo natural certamente, mas
prodigioso e invisível.
Aí está o segredo da magia.
A magia, a ciência que nos vem dos magos. A magia, a primeira
das ciências.
A mais santa de todas, uma vez que estabelece de modo mais
sublime as grandes verdades religiosas.
A mais caluniada de todas, porque o vulgo obstina-se em
confundir a magia com a bruxaria supersticiosa cujas práticas abomináveis
denunciamos.
É somente pela magia que pode, diante das questões enigmáticas
da Esfinge de Tebas e das obscuridades por vezes escandalosas difundidas nos
relatos da Bíblia, responder a tais perguntas e encontrar a solução desses
problemas da história judaica.
Os próprios historiadores sagrados reconhecem a existência e o
poder da magia que concorria abertamente com o de Moisés.
A Bíblia conta-nos que Janes e Mambres, os mágicos do Faraó,
fizeram em primeiro lugar os mesmos milagres que Moisés, e que declararam
impossíveis à ciência humana os que não puderam imitar. Com efeito, é mais
lisonjeiro para o amor-próprio de um charlatão confessar o milagre do que
declarar-se vencido pela ciência ou pela destreza de um colega, sobretudo quando
esse colega é um inimigo político ou um adversário religioso.
Onde começa e onde termina o possível na ordem dos milagres
mágicos? Eis uma grave e importante questão. É certa a existência dos fatos
habitualmente classificados como milagres. Os magnetizadores e os sonâmbulos
fazem-nos todos os dias; a irmã Rose Tamisier os fez, o iluminado Vintras ainda
os faz; mais de quinze mil testemunhas atestavam ultimamente os dos médiuns da
América, dez mil camponeses do Berry e da Sologne atestariam, se necessário, os
do deus Cheneau (um antigo comerciante de botões retirado dos negócios e que se
acredita inspirado por Deus). Todas essas pessoas são alucinadas ou
espertalhonas? Alucinadas, talvez, mas o próprio fato de ser sua alucinação
idêntica, seja separadamente, seja coletivamente, não é um milagre bastante
grande da parte de quem o produz sempre que deseja e no momento oportuno?
Fazer milagres ou persuadir a multidão de que os faz é quase a
mesma coisa, sobretudo num século tão leviano e tão zombeteiro quanto o nosso.
Ora, o mundo está cheio de taumaturgos, e a ciência é freqüentemente obrigada a
negar suas obras ou a recusar-se a vê-las para não ser obrigada a examiná-las e
atribuir-lhes uma causa.
No século passado, repercutiram em toda a Europa os prodígios
de Cagliostro. Quem não sabe de todo o poder que se atribuía a seu vinho do
Egito e a seu elixir? Que poderíamos acrescentar a tudo o que se conta daquelas
ceias do outro mundo, em que ele fazia aparecer em carne e osso os personagens
ilustres do passado? No entanto, Cagliostro estava longe de ser um iniciado da
primeira ordem, já que a grande associação dos adeptos abandonou-o à inquisiçao
romana, diante da qual, se se deve acreditar nas peças de seu processo, deu uma
ridícula e odiosa explicação do trigrama maçônico L.’.P.’.D.’.
Mas os milagres não são um quinhão exclusivo dos iniciados da
primeira ordem e freqüentemente são realizados por seres sem instrução e sem
virtude. As leis naturais encontram num organismo, cujas qualidades excepcionais
nos escapam, uma ocasião para exercerem-se, e fazem sua obra, como sempre, com
precisão e calma. Os gourmets mais delicados apreciam as trufas e consomem-nas,
mas são os porcos que as desenterram: analogicamente, ocorre o mesmo com muitas
coisas menos materiais e menos gastronômicas: os instintos procuram e
pressentem, mas apenas a ciência verdadeiramente encontra.
O progresso atual do conhecimento humano diminuiu muito as
chances dos prodígios, mas resta ainda um grande número deles, uma vez que não
se conhece nem a força da imaginação nem a razão de ser e o poder do magnetismo.
A observação das analogias universais foi negligenciada e é por isso que não se
crê mais na adivinhação.
Um sábio cabalista ainda pode, portanto, assustar a multidão e
confundir até mesmo as pessoas instruídas:
1º - Adivinhando as coisas ocultas;
2º predizendo muitas coisas futuras;
3º dominando a vontade dos outros de modo a impedi-los de fazer
o que desejam e a forçá-los a fazer o que não desejam;
4º excitando à vontade aparições e sonhos;
5º curando um grande número de doenças;
6º devolvendo a vida a sujeitos em que se manifestam todos os
sintomas da morte;
7º finalmente, demonstrando, com exemplos, se necessário, a
realidade da pedra filosofal e da transmutação dos metais, segundo os segredos
de Abraão, o Judeu, de Flamel e de Raimundo Lúlio.
Todos esses prodígios operam-se por meio de um único agente que
os hebreus chamavam OD, como o cavaleiro de Reichenbach; que chamamos luz
astral, com a escola de Pasqualis Martinez; que Mirville chama diabo; que os
antigos alquimistas denominavam azote. É o elemento vital que se manifesta pelos
fenômenos de calor, de luz, de eletricidade e de magnetismo, que imanta todos os
globos terrestres e todos os seres vivos. Nesse agente manifestam-se as provas
da doutrina cabalística sobre o equilíbrio e o movimento pela dupla polaridade,
em que uma atrai enquanto a outra repele, em que uma produz o quente, a outra o
frio, enfim em que uma dá uma luz azul e esverdeada, a outra uma luz amarela e
avermelhada.
Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai-nos
uns para os outros ou distancia-nos uns dos outros, submete um às vontades do
outro fazendo-o entrar em seu círculo de atração, restabelece ou perturba o
equilíbrio na economia animal por suas transmutações e seus eflúvios
alternativos, recebe e transmite as impressões da força imaginária, que é no
homem a imagem e a semelhança do verbo criador, produz, assim, os
pressentimentos e determina os sonhos. A ciência dos milagres é, pois, o
conhecimento dessa força maravilhosa, e a arte de fazer milagres é tão
simplesmente a arte de imantar ou de iluminar os seres segundo as leis
invariáveis do magnetismo ou da luz astral.
Preferimos a palavra luz a magnetismo, porque ela é mais
tradicional no ocultismo e expressa de modo mais completo e perfeito a natureza
do agente secreto. Encontra-se aí, verdadeiramente, o ouro fluido e potável dos
mestres da alquimia, a palavra ouro vem do hebraico or, que significa luz. "O
que quereis?", perguntava-se aos recipiendários de todas as iniciações. "Ver a
luz", devia-se responder. O nome iluminados, que comumente se dá aos
adeptos, foi, pois, muito mal interpretado quando lhe deram um sentido místico,
como se significasse homens cuja inteligência teria se tornado iluminada num dia
miraculoso. Iluminados quer dizer simplesmente conhecedores e possuidores
da luz, seja pela ciência do grande agente mágico, seja pela noção racional e
ontológica do absoluto.
O agente universal é a força vital e subordinada à
inteligência. Abandonado a si próprio, devora rapidamente, como Moloch, tudo o
que gera, e transforma em vasta destruição a superabundância da vida. É, então,
a serpente infernal dos antigos mitos, o Tífon dos egípcios e o Moloch da
Fenícia; mas, se a sabedoria, mãe dos Eloim, coloca-lhe o pé sobre a cabeça,
extingue todas as chamas vomitadas por ele e derrama sobre a terra, a mãos
cheias, uma luz vivificante. Do mesmo modo está dito no Zohar que no
início de nosso período terrestre, quando os elementos disputavam entre si a
superfície do mundo, o fogo, semelhante a uma serpente imensa, envolvera tudo em
suas espirais e ia consumir todos os seres, quando a clemência divina, erguendo
à sua volta as ondas do mar como uma vestimenta de nuvens, colocou o pé sobre a
cabeça da serpente e fê-la retornar ao abismo. Quem não vê nessa alegoria o
primeiro dado e a explicação mais razoável de uma das imagens mais caras ao
simbolismo católico, o triunfo da mãe de Deus?
Os cabalistas dizem que o nome oculto do diabo, seu verdadeiro
nome, é o mesmo de Jehovah escrito às avessas. Isso é toda uma revelação para o
iniciado aos mistérios do tetragrama. De fato, a ordem das letras desse grande
nome indica a predominância da idéia sobre a forma, do ativo sobre o passivo, da
causa sobre o efeito. Invertendo-se essa ordem obtém-se o contrário. Jehovah é
aquele que doma a natureza como a um cavalo bravio e a faz ir onde ele quer,
chevajoh (o demônio) é o cavalo sem freio que, semelhante aos dos egípcios no
cântico de Moisés, derruba seu cavaleiro arrastando-o consigo para o abismo.
O diabo, pois, existe de modo muito real para os cabalistas,
mas não é nem uma pessoa, nem um poder distinto das próprias forças da natureza.
O diabo é a divagação ou o sono da inteligência. É a loucura e a mentira.
Assim explicam-se todos os pesadelos da Idade Média, assim
explicam-se também os estranhos símbolos de alguns iniciados, como os dos
Templários, por exemplo, bem menos culpados por terem prestado culto a Baphomet
do que por terem revelado sua imagem a profanos. O Baphomet, figura panteística
do agente universal, não é outra coisa senão o demônio barbudo dos alquimistas.
Sabe-se que os mais graduados na antiga maçonaria hermética atribuíam a um
demônio barbudo dar conclusão à pedra filosofal, cabendo ao não iniciado nesta
palavra persignar-se e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de
Hermès-Panthée compreendiam a alegoria e cuidavam em não explicá-la aos
profanos.
Mirville, num livro atualmente quase esquecido, mas que teve
certa repercussão há alguns meses, deu-se muito trabalho para reunir algumas
bruxarias no gênero das que enchem as compilações dos Delancre, dos Delrio e dos
Bodin. Teria encontrado melhor do que isso na história. E sem falar dos milagres
tão averiguados dos jansenistas de PortRoyal e do diácono Páris, que pode haver
de mais maravilhoso do que a grande monomania do marítimo que fez as crianças e
as próprias mulheres acorrerem ao suplício como a uma festa durante trezentos
anos? Que pode haver de mais magnífico do que essa fé entusiasta atribuída
durante tantos séculos aos mais incompreensíveis e, humanamente falando, mais
revoltantes dos mistérios? Nessa ocasião, direis, os milagres vinham de Deus, e
servimo-nos deles até como uma prova para estabelecer a verdade da religião. Ora
essa! Os heréticos também deixavam-se matar por dogmas francamente bastante
absurdos; sacrificavam, pois, também a razão e a vida ao seu credo? Oh! com
relação aos heréticos é evidente que o diabo estava em jogo. Pobres-coitados que
tomavam o diabo por Deus e Deus pelo diabo! Como desiludiram-se quando os
fizeram reconhecer o verdadeiro Deus na caridade, na ciência, na justiça e
sobretudo na misericórdia de seus ministros!
Os necromantes, que fazem aparecer o diabo após uma série
fatigante e quase impossível das mais revoltantes evocações, são apenas crianças
ao pé do Santo Antônio da lenda que os tirava aos milhares do inferno e os
arrastava sempre consigo, como de Orfeu se conta que atraía para si os
carvalhos, as rochas e os animais mais selvagens.
Somente Callot, iniciado pelos boêmios nômades durante a
infância aos mistérios da bruxaria negra, pôde compreender e reproduzir as
evocações do primeiro eremita. E credes que ao descreverem os sonhos
assustadores da maceração e do jejum, os legendários tenham inventado? Não;
ficaram muito aquém da realidade. Os claustros, com efeito, sempre foram
povoados por espectros sem nome, cujas sombras e larvas infernais pulsam em suas
paredes. Certa vez, Santa Catarina de Sena passou oito dias em meio a uma orgia
obscena que teria desencorajado a veia poética de Aretino; Santa Teresa
sentiu-se transportada viva ao inferno e aí sofreu, entre muralhas que se
juntavam, angústias que apenas as mulheres histéricas poderão compreender...
Tudo isso, dirse-á, passava-se na imaginação dos pacientes. Mas onde, pois,
quereis que se possam passar fatos de ordem sobrenatural? O certo é que todos
esses visionários viram, tocaram, tiveram o sentimento lancinante de uma
realidade aterradora. Falamos baseados em nossa própria experiência, e há visões
de nossa primeira juventude passada num recolhimento e num ascetismo cuja
lembrança ainda nos faz estremecer.
Deus e o diabo são o ideal do bem e do mal absolutos. Mas o
homem nunca concebe o mal absoluto senão como uma falsa idéia do bem. Só o bem
pode ser absoluto, e o mal é relativo unicamente a nossas ignorâncias e a nossos
erros. Todo homem para ser deus faz-se primeiro diabo; mas, como a lei da
solidariedade é universal, a hierarquia existe no inferno como no céu. Um ser
malévolo sempre encontrará um pior do que ele para fazer-lhe mal; e quando o mal
atinge seu ápice é preciso que cesse, pois só poderia continuar pelo
aniquilamento do ser, o que é impossível. Então os homens-diabo, esgotados seu
recursos, recaem no domínio dos homens-Deus e são salvos por aqueles que
inicialmente pareciam ser suas vítimas; mas o homem que se esmera em viver
fazendo o mal presta homenagem ao bem por toda a inteligência e energia que
desenvolve em si próprio. É por isso que o grande iniciador dizia em sua
linguagem figurada: Sede frios ou quentes, porque se sois mornos fazeis-me
vomitar.
O grande mestre, numa de suas parábolas, condena unicamente o
preguiçoso que enterrou seu depósito por medo de perdê-lo nas operações
arriscadas desse banco que se chama vida. Nada pensar, nada amar, nada querer,
nada fazer, eis o verdadeiro pecado. A natureza reconhece e recompensa apenas os
trabalhadores.
A vontade humana desenvolve-se e aumenta pela atividade. Para
querer realmente, é preciso agir. A ação domina e sempre arrasta a inércia. Tal
é o segredo da influência dos pretensos celerados sobre as pessoas supostamente
honestas. Quantos poltrões e covardes crêem-se virtuosos porque têm medo!
Quantas mulheres honradas olham com inveja para as prostitutas! Não faz ainda
muito tempo os galerianos estavam na moda. Por quê? Pensais que a opinião
pública nunca possa render homenagem ao vício? Não, mas ela faz justiça à
atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes infames estimem os
bandidos audaciosos.
A audácia unida à inteligência é a mãe de todos os sucessos
neste mundo. Para empreender, é preciso saber; para realizar, é preciso querer;
para querer verdadeiramente, é preciso ousar; e, para recolher em paz os frutos
da própria audácia, é preciso calar-se.
SABER, OUSAR, QUERER, CALAR-SE são, como dissemos antes, os
quatro verbos cabalísticos que correspondem às quatro letras do tetragrama e às
quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça humana; ousar são as
garras do leão; querer são as ilhargas laboriosas do touro; calar-se são as asas
místicas da águia. Apenas mantém-se acima dos outros homens quem não prostitui
os segredos de sua inteligência aos comentários e ao escárnio daqueles.
Todos os homens verdadeiramente fortes são magnetizadores e o
agente universal obedece à sua vontade. É assim que eles operam maravilhas.
Fazem-se acreditar, fazem-se seguir e quando dizem: Isto é assim, a natureza de
certa forma muda aos olhos do vulgo e torna-se o que o grande homem quis. Isto é
minha carne e isto é meu sangue, disse um homem que se fez Deus por suas
virtudes e, em presença de um pedaço de pão e de um pouco de vinho, dezoito
séculos viram, tocaram, provaram, adoraram a carne e o sangue divinizados pelo
martírio! Dizei-nos agora que a vontade humana nunca realiza milagres!
Não nos faleis aqui de Voltaire, Voltaire não foi um
taumaturgo, foi o espiritual e eloqüente intérprete daqueles sobre os quais os
milagres não agiam mais. Tudo em sua obra é negativo; ao contrário, tudo era
afirmativo na de Galileu, como o chamava um ilustre e muito infeliz imperador.
Do mesmo modo, Juliano tentara em sua época mais do que Voltaire pôde realizar,
queria opor o prestígio aos prestígios, a austeridade do poder à do protesto, as
virtudes às virtudes, os milagres aos milagres; os cristãos jamais tiveram
inimigos tão perigosos, e sentiram-no bem, pois Juliano foi assassinado, e a
lenda dourada ainda atesta que um santo mártir, acordado na tumba pelos clamores
da Igreja, pegou das armas e feriu o apóstata no ombro em meio a seu exército e
a suas vitórias. Tristes mártires que ressuscitam para serem algozes! Crédulo
imperador que se fiava em seus deuses e nas virtudes dos tempos antigos.
Quando os reis da França viviam cercados pela adoração de seu
povo, quando eram vistos como os ungidos do Senhor e os primogênitos da Igreja,
curavam escrófulas. Um homem em voga fará milagres quando quiser. Cagliostro
podia ser apenas um charlatão, mas, desde que a opinião pública fizera dele o
divino Cagliostro, ele devia operar prodígios, e foi também o que aconteceu.
Quando Céphas Barjona era apenas um judeu, proscrito por Nero e
que vendia às mulheres dos escravos um específico para a vida eterna, não
passava de um charlatão para todas as pessoas instruídas de Roma; mas a opinião
pública fez do empírico espiritualista um apóstolo; e os sucessores de Pedro,
sejam eles Alexandre VI ou mesmo João XXII, são infalíveis para todo homem
bem-educado e que não deseje ser inutilmente banido da sociedade. Assim segue o
mundo.
O charlatanismo, quando bem-sucedido, é, pois, em magia como em
todas as coisas, um grande instrumento de poder. Fascinar habilmente o vulgo não
é já dominá-lo? Vê-se que os pobres-diabos dos bruxos que, na Idade Média,
tolamente faziam-se queimar vivos não tinham um grande domínio sobre os outros.
Joana d'Arc era mágica à frente dos exércitos, e em Rouen a pobre moça não foi
bruxa. Sabia apenas orar e combater, e o prestígio que a rodeava cessou assim
que lhe colocaram os grilhões. Consta de sua história que o rei da França a
tenha reclamado? Que a nobreza francesa, que o povo, que o exército tenham
protestado contra sua condenação? O papa, de quem o rei da França era o
primogénito, excomungou os algozes da Virgem? Não, nada disso. Joana d'Arc foi
bruxa para todos assim que deixou de ser mágica, e certamente não foram os
ingleses os únicos a queimá-la. Quando se exerce um poder aparentemente
sobre-humano, é preciso exercê-lo sempre ou resignar-se a perecer. O mundo
vinga-se sempre covardemente por ter acreditado muito, admirado muito e
sobretudo obedecido muito.
Só compreendemos o poder mágico em sua aplicação às grandes
coisas, se um verdadeiro mágico prático não se torna mestre do mundo é porque o
desdenha; e para que desejaria diminuir seu soberano poder? "Eu te darei todos
os reinos do mundo se tu caíres a meus pés e me adorares", diz a Jesus o satã da
parábola. "Retira-te", diz-lhe o Salvador, "pois está escrito: Tu adorarás
somente a Deus..." Eli, Eli lamma Sabbachtani! devia gritar mais tarde
esse sublime e divino adorador de Deus. Se tivesse respondido a satã: Não te
adorarei e és tu que vais cair a meus pés, pois ordeno-te em nome da
inteligência e da eterna razão!, não teria devotado sua santa e nobre vida ao
mais atroz de todos os suplícios. O satã da montanha foi bem cruelmente
vingado.
Os antigos chamavam a magia prática de arte sacerdotal e arte
real; e lembramos que os magos foram os mestres da civilização primitiva, porque
foram os mestres de toda a ciência de seu tempo.
Saber é poder quando se ousa querer.
A primeira ciência do cabalista prático ou do mago é o
conhecimento dos homens. A frenologia, a psicologia, a quiromancia, a observação
dos gostos e dos movimentos, do som da voz e das impressões, sejam simpáticas,
sejam antipáticas, são ramos dessa arte, e os antigos não os ignoravam. Gall e
Spurzëim reencontraram em nossos dias a frenologia, Laváter depois de Porta.
Cardano, Taisnier, Jean Belot e alguns outros novamente adivinharam mais do que
reencontraram a ciência da psicologia; a quiromancia está ainda oculta e é com
dificuldade que se encontram alguns traços seus na obra bastante recente e muito
interessante, aliás, do cavalheiro d'Arpentigny. Para se ter noções suficientes
dessa ciência é preciso remontar às próprias fontes cabalísticas em que se
inspirou o sábio Cornélius Agrippa. É oportuno, pois, dizer algumas palavras a
esse respeito, enquanto aguardamos a obra de nosso amigo Desbarolles.
A mão é no homem o instrumento da ação; é, como o rosto, uma
espécie de síntese nervosa, e também deve ter seus traços e sua fisionomia. O
caráter dos indivíduos está traçado aí em signos irrefutáveis. Assim, dentre as
mãos, umas são laboriosas, outras preguiçosas; umas pesadas e quadradas, outras
insinuantes e leves. As mãos duras e secas são feitas para a luta e o trabalho,
as mãos macias e úmidas aspiram somente à volúpia. Os dedos pontudos são
escrutadores e místicos, os dedos quadrados, matemáticos, os dedos espatulados,
pertinazes e ambiciosos.
O polegar, pollex, o dedo da força e do poder,
corresponde no simbolismo cabalístico à primeira letra do nome de Jehovah. Esse
dedo, pois, é por si só como a síntese da mão: se ele é forte, o homem é forte
moralmente; se é fraco, o homem é frágil. Ele possui três falanges, das quais a
primeira está oculta na palma da mão, como o eixo imaginário do mundo atravessa
a espessura da terra. Essa primeira falange corresponde à vida física, a segunda
à inteligência, a última à vontade. As palmas da mão gordas e espessas denotam
gostos sensuais e uma, grande força física; um polegar longo, sobretudo em sua
última falange, revela uma vontade forte que pode chegar ao despotismo;
polegares curtos, ao contrário, são caracteres dóceis e fáceis de dominar.
As pregas naturais da mão determinam suas linhas. Essa linhas,
portanto, são o traço dos hábitos, e o observador paciente saberá reconhecê-las
e julgá-las. O homem cuja mão fecha-se mal é desastrado ou infeliz. A mão tem
três funções principais: pegar, segurar e apalpar. As mãos mais macias pegam e
apalpam melhor; as mãos duras e fortes retêm mais tempo. Mesmo as mais leves
rugas atestam as sensações habituais desse órgão. Cada dedo, aliás, tem uma
função especial que lhe ocasionou o nome. Já falamos do polegar; o indicador é o
dedo que aponta, é o do verbo e da profecia; o médio domina toda a mão, é o do
destino; o anular é o das alianças e das honras: os quiromantes consagraram-no
ao sol; o auricular é insinuante e loquaz, ao menos no dizer dos simplórios e
das amas a quem seu dedinho conta tantas coisas: a mão tem sete protuberâncias
que os cabalistas, segundo as analogias naturais, atribuíram aos sete planetas:
a do polegar, a Vênus; do indicador, a Júpiter; do médio, a Saturno; do anular,
ao Sol; do auricular, a Mercúrio; dos dois outros, a Marte e à Lua. De acordo
com sua forma e sua predominância, eles julgavam os atrativos, as aptidões e,
por conseguinte, os prováveis destinos dos indivíduos submetidos à sua
apreciação.
Não existe vício que não deixe marca, nem uma virtude que não
tenha seu sinal. Além disso, para os olhos exercitados do observador, não há
hipocrisia possível. Compreender-se-á que tal ciência já é um poder
verdadeiramente sacerdotal e real.
A predição dos principais acontecimentos da vida já é possível
pelas numerosas probabilidades analógicas dessa observação, contudo existe uma
faculdade que se designa pressentimentos ou sensitivismo. As coisas
eventuais freqüentemente existem em sua causa antes de realizarem-se em ações,
os sensitivos vêem antecipadamente os efeitos nas causas, e existiram antes de
todos os grandes acontecimentos surpreendentes predições. Durante o reinado de
Luís Filipe, ouvimos sonâmbulos e extáticos anunciarem a volta do Império e
precisarem a data de seu advento. A República de 1848 estava claramente
anunciada na profecia de Orval, que datava no mínimo de 1830 e de que
suspeitamos, bem como daquelas atribuídas aos Olivarius, ter sido obra
pseudônima de Mlle. Lenormand. Mas isso pouco importa para nossa tese.
Essa luz magnética que faz prever o futuro também faz adivinhar
as coisas presentes e ocultas; como é a vida universal, ela é também o agente da
sensibilidade humana, transmitindo a uns os males ou a saúde dos outros, segundo
a influência fatal dos contatos ou as leis da vontade. É o que explica o poder
das bênçãos e dos feitiços tão claramente reconhecido pelos grandes adeptos e
sobretudo pelo maravilhoso Paracelso. Um crítico judicioso e sagaz, M. Ch.
Fauvety, num artigo publicado pela Revista Filosófica e Religiosa,
aprecia de modo notável os trabalhos avançados de Paracelso, Pomponace,
Goglenius, Crollius e Robert Flud sobre o magnetismo. Mas o que nosso sábio
amigo e colaborador estuda somente como uma curiosidade filosófica, Paracelso e
os seus praticavam sem preocuparem-se muito em torná-lo compreensível para o
mundo, pois era segundo eles, um desses segredos tradicionais para os quais o
ocultismo é de rigor, e que basta indicar aos que sabem, deixando sempre um véu
sobre a verdade para desorientar os ignorantes.
Ora, eis o que Paracelso reservava somente para os iniciados, e
que compreendemos ao definir os caracteres cabalísticos e as alegorias de que
ele faz uso na coleção de suas obras:
A alma humana é material, o mens divino lhe é oferecido
para imortalizá-la e fazê-la viver espiritual e individualmente, mas sua
substância natural é fluídica e coletiva.
Há no homem, pois, duas vidas, a individual ou racional, e a
vida comum ou instintiva. É por esta última que se pode viver uns nos outros,
uma vez que a alma universal, como todo organismo nervoso com uma consciência
separada, é a mesma para todos.
Vivemos da vida comum e universal no embrionato, no êxtase e no
sono. De fato, no sono a razão não age, e a lógica, quando é encontrada em
nossos sonhos, ocorre apenas fortuitamente e segundo os acasos das
reminiscências puramente físicas.
Nos sonhos, temos a consciência da vida universal;
misturamo-nos à água, ao fogo, ao ar e à terra; voamos como os pássaros;
escalamos como os esquilos; rastejamos como as serpentes; estamos embriagados de
luz astral; tornamos a mergulhar na morada comum, como acontece de modo mais
completo na morte; mas então (e é assim que Paracelso explica os mistérios da
outra vida) os maus, isto é, aqueles que se deixaram dominar pelos instintos da
besta em prejuízo da razão humana, afogam-se no oceano da vida comum com todas
as angústias de uma morte eterna; os outros flutuam e gozam para sempre das
riquezas daquele ouro fluido que conseguiram dominar.
Essa identidade da vida física permite às vontades mais fortes
apoderarem-se da existência das outras e tornarem-se suas auxiliares, explica as
correntes simpáticas que ocorrem em proximidade ou à distância, e dá todo o
segredo da medicina oculta, porque essa medicina tem por princípio a
grande hipótese das analogias universais e, atribuindo todos os fenômenos da
vida física ao agente universal, ensina que é preciso agir sobre o corpo astral
para reagir sobre o corpo materialmente visível; ensina também que a essência da
luz astral é um duplo movimento de atração e de projeção; assim como os corpos
humanos atraem-se e repelem-se uns aos outros, podem também absorver-se,
propagar-se uns nos outros e realizar trocas; as idéias ou as imaginações de um
podem influenciar sobre a forma do outro e reagir em seguida sobre o corpo
exterior.
Assim produzem-se os fenômenos tão estranhos da influência dos
olhares na gravidez, assim a proximidade de pessoas doentes causa maus sonhos,
assim a alma respira algo de insalubre na companhia dos loucos e dos maus.
Pode-se observar que nos pensionatos as crianças adquirem um
pouco a fisionomia umas das outras; cada casa de educação tem, por assim dizer,
um ar de família que lhe é próprio. Nos escolas de órfãs dirigidas por
religiosas, todas as garotas parecem-se e adquirem todas essa fisionomia
obediente e apagada que caracteriza a educação ascética. Os homens tornam-se
belos na escola do entusiasmo, das artes ou da glória; tornam-se feios na
prisão, e de ar triste nos seminários e nos conventos.
Aqui compreende-se que abandonamos Paracelso para entrar nas
conseqüências e nas aplicações de suas idéias, que são simplesmente as dos
antigos magos e os elementos dessa cabala física que chamamos magia.
Segundo os princípios cabalísticos formulados pela escola de
Paracelso, a morte seria apenas um sono cada vez mais profundo e definitivo, que
seria possível interromper em seu início exercendo uma poderosa ação de vontade
sobre o corpo astral que se desprende e chamando-o de volta à vida por algum
interesse poderoso ou alguma afeição dominante. Jesus exprimia o mesmo
pensamento quando dizia da filha de Jairo: "Esta moça não está morta, está
dormindo"; e de Lázaro: "Nosso amigo adormeceu e vou acordá-lo." Para exprimir
esse sistema ressurreicionista de modo que não ofenda o senso comum, isto é, as
opiniões geralmente adotadas, digamos que a morte, quando não há destruição ou
alteração essencial dos órgãos, é sempre precedida de uma letargia mais ou menos
longa. (A ressurreição de Lázaro, se tivesse de ser admitida como fato
científico, provaria que esse estado pode durar quatro dias).
Voltemos agora ao segredo da pedra filosofal que demos somente
em hebraico não pontuado no Ritual da Alta Magia. Eis o texto completo em
latim, tal como é encontrado à página 144 do Sepher Yétsirah, comentado
pelo alquimista Abraão (Amsterdam, 1642):
rã
Vocatur intelligentia perpetua; et quare vocatur ita? Eo quod
ducit motum solis et lunae juxta constitutionem eorum; utrumque in orbe sibi
conveniente.
Rabbi Abraham F.’. D.’.
dicit:
Semita trigésima prima vocatur intelligentia perpetua: et illa
ducit solem et lunam et reliquas stellas et figuras, unum quodque in orbe suo,
et impertit omnibus creatis juxta dispositionem ad signa et figuras.
Eis a tradução do texto hebraico que transcrevemos em nosso
ritual:
"A trigésima primeira via chama-se inteligência perpétua e rege
o sol e a lua e as outras estrelas e figuras, cada qual em seu orbe respectivo.
E distribui o que convém a todas as coisas criadas segundo sua disposição nos
signos e nas figuras."
Vê-se que esse texto é ainda totalmente obscuro para alguém que
não conhece o valor característico de cada uma das trinta e duas vias. (As
trinta e duas vias são os dez números e as vinte e duas letras hieroglíficas da
Cabala. A trigésima primeira refere-se ao a , que
representa a lâmpada mágica ou a luz entre os chifres de Baphomet. É o signo
cabalístico do od ou da luz astral com seus dois pólos e seu centro
equilibrado. Sabe-se que na linguagem dos alquimistas o sol significa o olho, a
lua, a prata, e que as outras estrelas ou planetas referem-se aos outros metais.
Deve-se compreender agora o pensamento do judeu Abraão.
O fogo secreto dos mestres em alquimia era, pois, a
eletricidade, e aí está a metade de seu grande arcano; mas eles sabiam
equilibrar sua força por uma influência magnética que concentravam em seu
atanor. É o que resulta dos dogmas obscuros de Basílio Valentim, Bernard
Trévisan e Henri Kunrath, que pretendem, todos, ter operado a transmutação como
Raimundo Lúlio, Arnaud de Villeneuve e Nicolas Flamel.
A luz universal, quando imanta os mundos, chama-se luz astral;
quando forma os metais, denomina-se azote, ou mercúrio dos sábios; quando dá
vida aos animais, deve chamar-se magnetismo animal.
O bruto sofre as fatalidades dessa luz; o homem pode dirigi-la.
É a inteligência que, ao adaptar o sinal ao pensamento, cria as formas e as
imagens.
A luz universal é como a imaginação divina, e esse mundo que
muda sem cessar, permanecendo sempre o mesmo quanto às suas leis de
configuração, é o sonho imenso de Deus.
O homem formula a luz por sua imaginação; atrai para si luz
suficiente para dar as formas convenientes a seus pensamentos e mesmo a seus
sonhos; se essa luz o invade, se afoga seu entendimento nas formas que evoca,
fica louco. Mas a atmosfera fluídica dos loucos freqüentemente é um veneno para
as razões vacilantes e para as imaginações exaltadas.
As formas que a imaginação superexcitada produz para perturbar
o entendimento são tão reais quanto as impressões da fotografia. Não se pode ver
o que não existe. Os fantasmas dos sonhos, e os próprios sonhos das pessoas
acordadas, são, pois, imagens reais que existem na luz.
Existem, aliás, alucinações contagiosas. Mas afirmamos aqui
algo mais do que alucinações comuns. Se as imagens atraídas pelos cérebros
doentes são algo real, eles não podem projetá-las exteriormente, reais como as
recebem?
Essas imagens, projetadas por todo o organismo nervoso do
médium, não podem afetar todo o organismo daqueles que, deliberadamente ou não,
entram em simpatia nervosa com o médium?
Os feitos do senhor Home provam que tudo isso é possível.
Agora, respondamos aos que crêem ver nesses fenômenos
manifestações do outro mundo e fatos de necromancia.
Tomamos nossa resposta emprestada ao livro sagrado dos
cabalistas, e nisto nossa doutrina é igual à dos rabinos compiladores do
Zohar.
o
O espírito reveste-se para descer e despoja-se para subir.
De fato: Por que os espíritos criados são revestidos de
corpos?
É que eles devem ser limitados para terem uma existência
possível. Despojados de corpo e, por conseguinte, tornados sem limites, os
espíritos criados se perderiam no infinito, e, por não poderem concentrar-se em
algum lugar, estariam mortos e impotentes em toda a parte, porque estariam
precipitados na imensidão de Deus.
Todos os espíritos, portanto, têm corpos, uns mais delgados,
outros mais espessos, segundo os meios em que foram chamados a viver.
A alma de um morto não poderia, pois, viver na atmosfera dos
vivos, assim como nós não poderíamos viver na terra ou na água.
Seria necessário a um espírito aéreo, ou antes, etéreo, um
corpo factício semelhante aos aparelhos de mergulhadores, para que pudesse
chegar até nós.
Tudo o que podemos ver dos mortos são os reflexos que deixaram
na luz atmosférica, luz cujas impressões evocamos pela simpatia de nossas
lembranças.
As almas dos mortos estão acima de nossa atmosfera. Nosso ar
respirável torna-se terra para eles. Foi o que o Salvador declarou em seu
Evangelho, quando fez a alma de um bem-aventurado dizer:
"Agora o grande caos firmou-se para nós, e os que estão no alto
não podem mais descer para os que estão embaixo."
As mãos que o senhor Home faz aparecer são, pois, ar colorido
pelos reflexos que sua imaginação doente atrai e projeta.
São tocadas como são vistas: metade ilusão, metade força
magnética e nervosa.
A nosso ver aí estão explicações bastante claras e
precisas.
Raciocinemos um pouco com os partidários de aparições do outro
mundo:
Ou essas mãos são corpos reais.
Ou são ilusões.
Se são corpos, não são, portanto, espíritos.
Se são ilusões produzidas por miragens, seja em nós, seja fora
de nós, então vós me dais ganho de causa.
Agora, uma observação:
Todos os doentes de congestão luminosa ou de sonambulismo
contagioso perecem de morte violenta, ou pelo menos de morte súbita.
É por essa razão que antigamente se atribuía ao diabo o poder
de estrangular os bruxos.
O bom e honesto Laváter evocava habitualmente o suposto
espírito de Gablidone.
Foi assassinado.
Um vendedor de limonadas de Leipsick, Scroepfer, evocava
imagens animadas dos mortos.
Suicidou-se com um tiro de pistola.
Sabe-se qual foi o final infeliz de Cagliostro.
Apenas um mal maior que a própria morte pode salvar a vida
desses experimentadores imprudentes. Podem tornar-se idiotas ou loucos, e então
só não morrem se forem atentamente vigiados para impedir que se suicidem.
As doenças magnéticas por si próprias são um encaminhamento
para a loucura, e sempre nascem da hipertrofia ou da atrofia do sistema
nervoso.
Assemelham-se ao histerismo, que é uma de suas variações, e
freqüentemente são produzidas ou por excessos de celibato, ou por excessos de um
gênero totalmente oposto.
Sabe-se qual a relação existente entre o cérebro e os órgãos
encarregados pela natureza da realização de suas obras mais nobres: as que têm
por finalidade a reprodução dos seres.
Não se viola impunemente o santuário da natureza.
Ninguém ergue, sem arriscar a própria vida, o véu da grande
Isis.
A natureza é casta, e é à castidade que ela deve as chaves da
vida.
Entregar-se aos amores impuros é desposar a morte.
A liberdade, que é a vida da alma, se conserva apenas na ordem
da natureza. Toda desordem voluntária a fere, um excesso prolongado a mata.
Então, ao invés de sermos guiados e preservados pela razão,
somos abandonados às fatalidades do fluxo e do refluxo da luz magnética.
Ora, a luz magnética devora sem cessar porque está sempre
criando; para produzir continuamente, é preciso eternamente absorver.
Daí vêm as monomanias assassinas e as tentações de
suicídio.
Daí vem esse espírito de perversidade que Edgar Poe descreveu
de forma tão impressionante e tão verdadeira, e que Mirville teria razão em
chamar diabo.
O diabo é a vertigem da inteligência atordoada pelas oscilações
do coração.
É a monomania do nada, é a atração do abismo, independentemente
do que isso possa ser segundo as decisões da fé católica, apostólica e romana,
em que não receamos tocar.
Quanto à reprodução dos signos e dos caracteres por esse fluido
universal a que chamamos luz astral, negar sua possibilidade seria importar-se
pouco com os fenômenos mais comuns da natureza. A miragem nas estepes da Rússia,
os palácios da fada Morgana, as figuras impressas naturalmente no coração das
pedras que Gaffarel denomina gamahés, a configuração monstruosa de
algumas crianças proveniente dos olhares ou pesadelos das mães, todos esses
fenômenos e muitos outros provam que a luz está repleta de imagens e reflexos
que projeta e reproduz de acordo com as evocações da imaginação, da lembrança ou
do desejo. A alucinação não é sempre um devaneio sem objeto: desde que todos
vêem uma coisa, ela certamente é visível; mas, se essa coisa é absurda, deve-se
rigorosamente concluir que todos estão enganados ou alucinados por uma aparência
real.
Dizer, por exemplo, que nas sessões magnéticas do senhor Home
saem das mesas mãos reais e vivas, mãos verdadeiras, que uns vêem, que outros
tocam, e pelas quais outros ainda sentem-se tocados sem vê-Ias, dizer que essas
mãos verdadeiramente corporais são mãos de espíritos é falar como crianças ou
como loucos, é implicar contradição nos termos. Mas reconhecer que esta ou
aquela aparência, esta ou aquela sensação se produz é ser simplesmente sincero e
zombar da zombaria dos homens probos ainda quando esses homens fossem
espirituosos como este ou aquele redator brincalhão do jornal.
Esses fenômenos de luzes que produzem aparições mostraram-se
sempre em épocas difíceis para a humanidade. São os fantasmas da febre do mundo,
é o histerismo de uma sociedade que se entedia. Virgílio conta-nos em belos
versos que, na época de César, Roma estava repleta de espectros; sob Vespasiano,
as portas do Templo de Jerusalém abriam-se sozinhas, e ouvia-se gritar: "Os
deuses se vão." Ora, quando os deuses partem, os diabos retornam. O sentimento
religioso transforma-se em superstição quando a fé está perdida; pois as almas
têm necessidade de acreditar, porque têm sede de ter esperança. Como a fé pode
perder-se? Como a ciência pode duvidar do infinito e da harmonia? Porque
o santuário do absoluto está sempre fechado para a maioria. Mas o reino da
verdade, que é o de Deus, sofre violências e deve ser conquistado pelos fortes.
Existe um dogma, uma chave, uma tradição sublime; e esse dogma, essa chave, essa
tradição é a alta magia. Apenas aí encontram-se o absoluto da ciência e a base
eterna da lei, o preservativo contra toda loucura, toda superstição e todo erro,
o Éden da inteligência, o repouso do coração e a quietude da alma. Não dizemos
isso na esperança de convencer os que riem, mas somente para advertir os que
procuram. Coragem e esperança a estes; eles certamente encontrarão, uma vez que
nós encontramos.
O dogma mágico não é aquele dos médiuns. Os médiuns que
dogmatizam só podem ensinar a anarquia, uma vez que sua inspiração resulta de
uma exaltação desordenada. Eles sempre prevêem desastres, negam a autoridade
hierárquica, assumem a postura de soberanos pontífices, como Vintras. O
iniciado, ao contrário, respeita antes de tudo a hierarquia, ama e conserva a
ordem, inclina-se diante das crenças sinceras, ama todos os signos da
imortalidade na fé e da redenção pela caridade, que é toda ela disciplina e
obediência.
Acabamos de ler um livro publicado sob a influência da vertigem
astral e magnética e ficamos chocados com as tendências anárquicas de que ele
está repleto sob uma grande aparência de benevolência e religião. Encabeçando a
obra, vê-se o signo, ou, como dizem os magistas, a assinatura das
doutrinas que ela ensina. Em vez da cruz cristã, símbolo de harmonia, aliança e
regularidade, vê-se aí a vara de videira tortuosa, com seus brotos em gavinhas,
imagens da alucinação e da embriaguez.
As primeiras idéias formuladas nesse livro são o cúmulo do
absurdo. As almas dos mortos, diz ele, estão em toda a parte, e nada mais as
limita. Eis o infinito todo povoado de deuses que entram uns nos outros. As
almas podem e querem comunicar-se conosco por meio das mesas e dos chapéus.
Assim, nada mais de ensino regulamentado, de sacerdócio, de Igreja, o delírio
alçado à condição de verdade, oráculos que escrevem para a salvação do gênero
humano a palavra atribuída a Cambronne, grandes homens que deixam a serenidade
dos destinos eternos para fazer dançarem nossos móveis e manter conosco
conversas semelhantes àquelas que lhes empresta Béroalde de Verville como meio
de ter sucesso. Tudo isso causa piedade; e no entanto, na América, propaga-se
como uma peste intelectual. A jovem América delira, tem febre, talvez
esteja em sua primeira dentição. Mas a França! A França acolher semelhantes
coisas! Não, isso não é possível, e isso não é. Mas, ao renegarem as doutrinas,
os homens sérios devem observar os fenômenos, permanecer calmos em meio às
agitações de todos os fanatismos (pois a incredulidade também tem o seu), julgar
após haver examinado. Conservar a razão em meio aos loucos, a fé em meio às
superstições, a dignidade em meio aos caracteres enfraquecidos e a independência
em meio aos carneiros de Panurgo é de todos os milagres o mais raro, o mais belo
e também o mais difícil de realizar.
aí
Os antigos davam-lhes diferentes nomes. Eram larvas, lêmures,
empusas. Gostavam do vapor do sangue derramado, e fugiam do gume do gládio.
A teurgia evocava-os, e a cabala conhecia-os sob o nome de
espíritos elementares.
No entanto, não eram espíritos, pois eram mortais.
Eram coagulações fluídicas que se podiam destruir,
dividindo-as.
Eram espécies de miragens animadas, emanações imperfeitas da
vida humana: as tradições da magia negra as fazem nascer do celibato de Adão.
Paracelso diz que os vapores do sangue das mulheres histéricas povoam o ar de
fantasmas; e essas idéias são tão antigas que as encontramos em Hesíodo, que
defende expressamente fazer secar diante do fogo roupa branca manchada por uma
poluição qualquer.
As pessoas obcecadas pelos fantasmas geralmente estão exaltadas
por um celibato muito rigoroso, ou enfraquecidas por excessos de devassidão.
Os fantasmas fluídicos têm os abortos da luz vital; são
mediadores plásticos sem corpo e sem espírito, nascidos dos excessos do espírito
e dos desregramentos do corpo.
Esses mediadores errantes podem ser atraídos por certos doentes
que lhes são fatalmente simpáticos, e que lhes emprestam, às suas expensas, uma
existência factícia mais ou menos durável. Servem, então, de instrumentos
suplementares para as vontades instintivas desses doentes: nunca, todavia, para
curá-los, sempre para desviá-los e aluciná-los mais.
Se os embriões corporais têm a propriedade de tomar as formas
que lhes dá a imaginação das mães, os embriões fluídicos errantes devem ser
prodigiosamente variáveis e transformar-se com uma surpreendente facilidade. Sua
tendência a darem-se um corpo para atrair uma alma faz com que condensem e
assimilem, naturalmente, as moléculas corporais que flutuam na atmosfera.
Assim, ao coagularem o vapor do sangue, refazem sangue, o mesmo
sangue que os maníacos alucinados vêem escorrer nos quadros e nas estátuas. Mas
não são os únicos a vê-lo. Vintras e Rose Tamisier não são impostores nem
vítimas de alguma ilusão; o sangue escorre realmente; médicos examinam-no;
analisam-no; é sangue, verdadeiro sangue humano: de onde vem? Pode ter se
formado espontaneamente na atmosfera? Pode sair naturalmente de um mármore, unia
tela pintada ou uma hóstia? Não, certamente; esse sangue circulou em veias,
depois propagou-se, evaporou-se, dessecou-se, o soro tornou-se vapor, os
glóbulos poeira intangível, o todo flutuou e voltejou na atmosfera, depois foi
atraído para a corrente de um eletromagnetismo especificado. O soro voltou a ser
líquido, retomou e embebeu novamente os glóbulos que a luz astral coloriu, e o
sangue escorreu.
A fotografia é prova suficiente de que as imagens são
modificações reais da luz. Ora, existe uma fotografia acidental e fortuita que
opera, segundo as miragens errantes na atmosfera, impressões duráveis em folhas
de árvores, na madeira e até no coração das pedras: assim formam-se as figuras
naturais a que Gaffarel consagrou várias páginas em seu livro Curiosidades
Inauditas, as pedras a que ele atribui uma virtude oculta, e que denomina
gamahés; assim traçam-se as escrituras e os desenhos que tanto
surpreendem os observadores dos fenômenos fluídicos. São fotografias astrais
feitas pela imaginação dos médiuns com ou sem a ajuda das larvas
fluídicas.
A existência dessas larvas nos foi demonstrada de modo
peremptório por uma experiência bastante curiosa. Várias pessoas, para testar o
poder mágico do americano Home, pediram-lhe que evocasse parentes que elas
alegavam ter perdido, mas que na realidade jamais existiram. Os espectros não
faltaram a esse apelo, e os fenômenos que habitualmente seguiam-se à evocação do
médium manifestaram-se plenamente.
Essa experiência por si só bastaria para convencer de
credulidade deplorável e de erro formal os que crêem na intervenção dos
espíritos nesses fenômenos estranhos. Para que mortos retornem, é preciso antes
de mais nada que tenham existido, e demônios não seriam tão facilmente enganados
por nossas mistificações.
Como todos os católicos, acreditamos na existência dos
espíritos das trevas; mas sabemos também que o poder divino lhes deu as trevas
por prisão eterna e que o Redentor viu Satã cair do céu como um raio. Se os
demônios nos tentam é pela cumplicidade voluntária de nossas paixões más, e não
lhes é permitido afrontar o império de Deus e perturbar, por manifestações tolas
e inúteis, a ordem eterna da natureza.
Os caracteres e assinaturas diabólicos, que se produzem à
revelia dos médiuns, evidentemente não são provas de um pacto tácito ou formal
entre esses doentes e as inteligências do abismo. Esses signos serviram em todos
os tempos para exprimir a vertigem astral e permaneceram no estado de miragem
nos reflexos da luz extraviada. A natureza também tem suas reminiscências e
envia-nos os mesmos signos com relação às mesmas idéias. Não há nisso nada de
sobrenatural nem de infernal.
"Como quer o senhor que eu admita", dizia-nos o pároco Charvoz,
primeiro vigário de Vintras, "que Satã ousa imprimir seus hediondos estigmas nas
espécies consagradas e tornadas o próprio corpo de Jesus Cristo?" Declaramos
logo que nos era igualmente impossível pronunciarmo-nos a favor de semelhante
blasfêmia; no entanto, como demonstramos em nossos folhetins do jornal O
Estafeta, os signos impressos em caracteres sangrentos nas hóstias de
Vintras, regularmente consagradas por Charvoz, eram os que, na magia negra, são
absolutamente reconhecidos como as assinaturas dos demônios.
As escrituras astrais são freqüentemente ridículas ou obscenas.
Os pretensos espíritos, interrogados sobre os maiores mistérios da natureza,
respondem muitas vezes com uma expressão grosseira tornada heróica, segundo
dizem, nos lábios militares de Cambronne. Os desenhos que os lápis traçam por si
sós reproduzem com freqüência essas figuras priápicas informes, que o pálido
vadio, para servirmo-nos da pitoresca expressão de Augusto Barbier, desenha
assoviando ao longo dos muros de Paris, prova recente do que adiantamos, isto é,
que o espírito não preside de nenhum modo a essas manifestações e que seria
soberbamente absurdo reconhecer aí sobretudo a intervenção dos espíritos
desligados da matéria.
O jesuíta Paul Saufidius, que escreveu sobre os usos e costumes
dos japoneses, narra um caso muito interessante. Um grupo de peregrinos
japoneses, atravessando um dia um deserto, viu aproximar-se um bando de
espectros em igual número ao seu e que caminhava no mesmo passo. Esses
espectros, no princípio disformes e semelhantes a larvas, tomavam ao se
aproximarem a aparência do corpo humano. Logo, encontraram os peregrinos e
misturaram-se a eles, deslizando em silêncio por entre as fileiras, então os
japoneses viram-se duplos, tendo cada fantasma se tornado a imagem perfeita e
como que a miragem de cada peregrino. Os japoneses aterrorizados
prosternaram-se, e o bonzo que os conduzia pôs-se a orar por eles com grandes
contorsões e em altos brados. Quando os peregrinos se levantaram, os fantasmas
haviam desaparecido e o grupo devoto pôde continuar livremente seu caminho. Esse
fenômeno, que não colocamos em dúvida, apresenta as duplas características de
uma miragem e de uma projeção repentina de larvas astrais, ocasionadas pelo
calor da atmosfera e esgotamento fanático dos peregrinos.
O doutor Brière de Boismont, em seu curioso Tratado das
Alucinações, conta que um homem perfeitamente sensato, e que jamais tivera
visões, foi atormentado uma manhã por um terrível pesadelo. Viu em seu quarto um
macaco enorme, horrendo, que rangia os dentes e fazia as mais hediondas
contorsões. Acordou sobressaltado, era dia claro; saltou da cama e ficou
apavorado ao ver realmente o medonho objeto de seu sonho. O macaco estava lá
perfeitamente idêntico àquele do pesadelo, igualmente absurdo, igualmente
assustador e fazendo as mesmas caretas. O personagem em questão não podia
acreditar em seus olhos; permaneceu cerca de meia hora imóvel, observando esse
singular fenômeno e perguntando-se se estava com febre alta ou se estava ficando
louco. Aproximou-se, enfim, do fantástico animal para tocá-lo e a aparição
dissipou-se.
Cornelius Gemma, em sua História Crítica Universal,
conta que em 454, na ilha de Creta, o fantasma de Moisés apareceu para
alguns judeus na praia; trazia na fronte seus chifres luminosos, na mão sua vara
fulminante, e convidava-os a segui-lo apontando-lhes o horizonte na direção da
Terra Santa. A notícia desse prodígio espalhou-se, e uma multidão de israelitas
precipitou-se em direção à margem. Todos viram, ou imaginaram ter visto, a
maravilhosa aparição: eram em número de vinte mil, no dizer do cronista, que
supomos ter exagerado um pouco. Logo as cabeças esquentam-se, as imaginações
exaltam-se; acredita-se num milagre mais extraordinário do que foi outrora a
travessia do mar Vermelho. Os judeus formam-se em colunas cerradas e correm em
direção ao mar; os últimos empurravam os primeiros com frenesi: acreditavam ver
o suposto Moisés caminhando sobre as águas. Foi um terrível desastre: essa
multidão quase toda afogou-se, e a alucinação só se extinguiu com a vida da
maioria desses infelizes visionários.
O pensamento humano cria o que imagina; os fantasmas da
superstição projetam sua disformidade real na luz astral e vivem dos próprios
terrores que os conceberam. Esse gigante negro que estende suas asas do oriente
ao ocidente para ocultar ao mundo a luz, esse monstro que devora as almas, essa
aterrorizante divindade da ignorância e do medo, numa palavra, o diabo, ainda é,
para uma multidão de crianças de todas as idades, uma aterradora realidade. Em
nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, representamo-lo como a sombra de
Deus, e dizendo isso ocultamos ainda metade de nosso pensamento; Deus é a luz
sem sombra. O diabo é apenas a sombra do fantasma de Deus!
O fantasma de Deus! Esse último ídolo da terra; esse espectro
antropomórfico que se torna maliciosamente invisível; essa personificação finita
do infinito; esse invisível que não se pode ver sem morrer, sem morrer ao menos
em inteligência e em razão, pois que para ver o invisível é preciso estar louco;
o fantasma do que não tem corpo; a forma confusa que é sem formas e sem limites:
eis o que adora sem saber a maioria dos crentes. Aquele que é essencialmente,
puramente, espiritualmente, não sendo nem o ser absoluto, nem um ser abstrato,
nem a coleção dos seres, numa palavra, o infinito intelectual, é muito difícil
de se imaginar! Assim, toda imaginação a seu respeito é uma idolatria, é preciso
nele crer e adorá-lo. Nosso espírito deve calar-se diante dele e apenas nosso
coração tem direito a dar-lhe um nome: Pai nosso!
um
A vida humana e suas dificuldades incontáveis têm por
finalidade, na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem.
A dignidade do homem consiste em fazer o que quer e em querer o
bem, em conformidade com a ciência do verdadeiro.
O bem conforme ao verdadeiro é o justo.
A justiça é a prática da razão.
A razão é o verbo da realidade.
A realidade é a ciência da verdade.
A verdade é a história idêntica ao ser.
O homem chega à idéia absoluta do ser por duas vias, a
experiência e a hipótese.
A hipótese é provável quando é solicitada pelos ensinamentos da
experiência; é improvável ou absurda quando é rejeitada por esse
ensinamento.
A experiência é a ciência, e a hipótese é a fé.
A verdadeira ciência admite necessariamente a fé; a verdadeira
fé conta necessariamente com a ciência.
Pascal blasfemava contra a ciência quando disse que, pela
razão, o homem não pode chegar ao conhecimento de nenhuma verdade.
Assim, Pascal morreu louco.
Mas Voltaire não blasfemava menos contra a ciência, quando
declarava absurda toda hipótese da fé e admitia por regra da razão apenas o
testemunho dos sentidos.
Assim, as últimas palavras de Voltaire foram esta fórmula
contraditória:
gr
Deus, isto é, um mestre supremo: o que exclui toda idéia de
liberdade, como a entendia a escola de Voltaire.
E a liberdade, isto é, uma independência absoluta de todo
mestre; o que exclui toda idéia de Deus. A palavra DEUS exprime a personificação
suprema da lei e, por conseguinte, do dever; e, se pela palavra LIBERDADE se
quiser entender conosco O DIREITO DE FAZER O DEVER, tomaremos, de nossa parte,
por divisa e repetiremos sem contradição e sem erro:
andComo só há liberdade para o homem na ordem que resulta do verdadeiro e do bem,
pode-se dizer que a conquista da liberdade é o grande trabalho da alma humana. O
homem, libertando-se das más paixões e de sua servidão, de certo modo cria-se a
si próprio uma segunda vez. A natureza fizera-o vivo e sofredor, ele se faz
feliz e imortal; torna-se, assim, o representante da divindade na terra e exerce
relativamente sua onipotência.e
É o verbo que cria as formas, e as formas, por sua vez, reagem
sobre o verbo para modificá-lo e terminá-lo.
Toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça.
Pergunta-se se o homem algumas vezes pode ser necessariamente
impelido para o mal. Sim, quando ele tem o julgamento falso e, por conseguinte,
o verbo injusto.
Mas alguém é tão responsável por um julgamento falso como por
uma má ação.
O que falseia o julgamento são as vaidades injustas do
egoísmo.
O verbo injusto, não podendo realizar-se pela criação,
realiza-se pela destruição. É preciso que mate ou morra.
Se pudesse permanecer sem ação seria a maior de todas as
desordens, uma blasfêmia duradoura contra a verdade.
Tal é a palavra ociosa da qual Cristo disse que se prestará
conta no juizo final. Um gracejo, uma tolice que recreia e que faz rir não é uma
palavra ociosa.
A beleza da palavra é um esplendor de verdade. Uma palavra
verdadeira é sempre bela, uma bela palavra é sempre verdadeira.
É por isso que as obras de arte são sempre santas quando são
belas.
Que me importa que Anacreonte cante Batylle, se, em seus
versos, ouço as notas da divina harmonia que é o hino eterno da beleza? A poesia
é pura como o sol: ela estende seu véu de luz sobre os erros da humanidade. Ai
daquele que quisesse erguer o véu para perceber fealdades.
O Concílio de Trento disse que é permitido às pessoas sábias e
prudentes lerem os livros dos antigos, mesmo obscenos, por causa da beleza da
forma.
Uma estátua de Nero ou de Heliogábalo feita como as
obras-primas de Fídias não seria uma obra absolutamente bela e absolutamente
boa? E os que gostariam de vê-la destruída por representar um monstro não
mereceriam as vaias do mundo inteiro?
As estátuas escandalosas são as estátuas malfeitas; e a Vênus
de Milo seria profanada se fosse exposta ao lado das Virgens que ousam expor em
algumas igrejas.
Aprende-se o mal nos livros de moral tolamente escritos, bem
mais do que nas poesias de Catulo ou nas engenhosas alegorias de Apuleio.
Não há maus livros senão os livros malpensados ou
malfeitos.
Todo verbo de beleza é um verbo de verdade. É uma luz formulada
em palavra.
Porém, é preciso uma sombra para que a mais brilhante luz
produza-se e torne-se visível; e a palavra criadora, para tornar-se eficaz,
necessita de contraditores. É preciso que suporte a prova da negação, do
sarcasmo, depois aquela ainda bem mais cruel da indiferença e do esquecimento.
"É preciso", dizia o Mestre, "que o grão apodreça para germinar."
O verbo que afirma e a palavra que nega devem casar-se, e de
sua união nascerá a verdade prática, a palavra real e progressiva. É a
necessidade que deve constranger os trabalhadores a escolherem por pedra angular
a que inicialmente fora desconhecida e rejeitada. Que a contradição nunca
desencoraje, pois, os homens de iniciativa. O arado necessita de uma terra e a
terra resiste porque trabalha. Ela defende-se como todas as virgens, concebe e
dá à luz lentamente como todas as mães. Vós, pois, que quereis semear uma planta
nova no campo da inteligência, compreendei e respeitai as resistências
pudibundas da experiência limitada e da razão tardia.
Quando uma palavra nova vem ao mundo, necessita de laços e
cueiros; foi o gênio que a concebeu, mas é a experiência que deve alimentá-la.
Não receeis que seja desamparada e morra; o esquecimento para ela é um repouso
favorável e as contradições são uma cultura. Quando um sol desponta no espaço,
cria ou atrai mundos. Uma única fagulha de luz fixa promete ao espaço um
universo.
Toda a magia está numa palavra, e essa palavra, pronunciada
cabalisticamente, é mais forte que todos os poderes do céu, da terra e do
inferno. Com o nome de Jod he van he domina-se: os reinos são
conquistados em nome de Adonai, e as forças ocultas que compõem o império
de Hermes são totalmente obedientes àquele que sabe pronunciar segundo a ciência
o nome incomunicável de Agla.
Para pronunciar segundo a ciência as grandes palavras da
Cabala, é preciso pronunciá-las com uma inteligência inteira, com uma vontade
que nada detenha, com uma atividade que nada rejeite. Em magia ter dito é ter
feito; o verbo começa com letras, termina com atos. Só se quer realmente algo
quando se quer com todo o coração, a ponto de por isso ferir as mais caras
afeições; com todas as forças a ponto de expor a saúde, a fortuna e a vida.
É pela devoção absoluta que a fé se prova e se constitui. Mas o
homem armado de semelhante fé poderá remover montanhas.
O inimigo mais fatal de nossas almas é a preguiça. A inércia
possui uma embriaguez que nos adormece; mas o sono da inércia é a corrupção e a
morte. As faculdades da alma humana são como as ondas do oceano: necessitam,
para conservarem-se, do sal e do amargor das lágrimas; necessitam das tormentas
do céu e da agitação das tempestades.
Quando, ao invés de caminharmos na rota do progresso, queremos
ser carregados, estamos dormindo nos braços da morte; é para nós que é dito,
como ao paralítico do Evangelho: Carregai vossa cama e andai! Somos nós que
devemos carregar a morte para precipitá-la na vida.
Segundo a magnífica e terrível expressão de São João, o inferno
é um fogo que dorme. É uma vida sem atividade e sem progresso; é enxofre em
estagnação: stagnum ignis et sulphuris.
A vida que dorme é análoga à palavra ociosa e é disso que os
homens terão de prestar contas no dia do juízo final.
A inteligência fala e a matéria agita-se; só descansará depois
de ter tomado a forma dada pela palavra. Vede o verbo cristão há dezenove
séculos trabalhando o mundo. Que combates de gigantes! Quantos erros
experimentados e rechaçados! Quanto cristianismo desiludido e irritado no fundo
do protesto, desde o século XVI até o século XVIII! O egoísmo humano,
desesperado com suas derrotas, amotinou sucessivamente todas as suas
estupidezes. Revestiram o Salvador do mundo com todos os andrajos e todas as
púrpuras derrisórias: depois de Jesus o Inquisidor, fez-se o Jesus
Revolucionário. Se fordes capaz, medi quantas lágrimas e quanto sangue correram,
ousai prever quanto ainda correrá antes que se chegue ao reino messiânico do
Homem-Deus, que subjuga ao mesmo tempo todas as paixões aos poderes e todos os
poderes à justiça!
ADVENIAT REGNUM TUUM! Eis o que setecentos milhões de vozes
repetem noite e dia em toda a superfície da terra, há quase mil e novecentos
anos, enquanto os israelitas continuam a esperar o Messias. Ele falou, e ele
voltará; veio para morrer, e prometeu retornar para viver.
alí
Quando a humanidade, a poder de experiências sangrentas e
dolorosas, tiver compreendido bem essa dupla verdade, abjurará do inferno do
egoísmo para entrar no céu da abnegação e da caridade cristã.
A lira de Orfeu desbravou a Grécia selvagem, e a lira de Anfião
construiu a misteriosa Tebas. É que a harmonia é a verdade. A natureza inteira é
harmonia, mas o Evangelho não é uma lira: é o livro dos princípios eternos que
devem regular e que regularão todas as liras e todas as harmonias vivas do
universo.
Enquanto o mundo não compreender estas três palavras:
verdade, razão, justiça, e estas: dever, hierarquia, sociedade, a
divisa revolucionária, liberdade, igualdade, fraternidade, será apenas
uma tríplice mentira.
vio
Não há meio-termo possível. Todo homem é bom ou mau. Os
indiferentes, os mornos não são bons, são, pois, maus, e os piores de todos os
maus, pois são imbecis e covardes. O combate da vida assemelha-se a uma guerra
civil, os que permanecem neutros traem igualmente os dois lados e renunciam ao
direito de serem contados dentre os filhos da pátria.
Todos nós respiramos a vida dos outros e de algum modo
insuflamo-lhes uma parte de nossa existência. Os homens inteligentes e bons são,
sem saberem, os médicos da humanidade, os homens tolos e maus são envenenadores
públicos.
Existem pessoas perto de quem sentimo-nos melhores. Vede esta
jovem senhora da alta sociedade, ela conversa, ri, adorna-se como todas as
outras, por que, então, tudo nela é melhor e mais perfeito? Nada mais natural
que sua distinção, nada mais franco e mais nobremente despretensioso que sua
conversa. Perto dela tudo deve achar-se à vontade, exceto os maus sentimentos,
mas eles são impossíveis perto dela. Ela não encontra os corações, prende-os e
os instrui, não embriaga, encanta. O que toda sua pessoa prega parece ser uma
perfeição mais aprazível do que a própria virtude; é mais graciosa que a graça,
suas ações são fáceis e inimitáveis como a bela música e os belos versos. Era
dela que uma encantadora mundana, muito amiga para ser rival, dizia depois de um
baile: Pareceu-me ver a Sagrada Bíblia em movimento. Vede ao contrário esta
outra mulher, afeta a mais rígida devoção e se escandalizaria ao ouvir os anjos
cantarem, mas sua fala é malévola, seu olhar é altivo e desdenhoso; quando fala
sobre virtude poderia provocar o amor ao vício. Para ela Deus é um marido
ciumento que ela tem o grande mérito de não enganar; suas máximas são
desoladoras, as ações mais vãs que caridosas e poder-se-ia dizer após a ter
encontrado na igreja: Vi o diabo orando a Deus.
Ao deixar a primeira, senti-vos cheio de amor por tudo o que é
belo, por tudo o que é bom e generoso. Estais feliz por lhe terdes dito tudo o
que ela vos inspirou de bem e por terdes sido por ela aprovado; dizei-vos que a
vida é boa, uma vez que foi dada por Deus a semelhantes almas, estais cheio de
coragem e de esperança. A outra vos deixa enfraquecido, rejeitado, ou talvez, o
que é pior, estimulado a fazer o mal; vos faz duvidar da honra, da piedade e do
dever; perto dela só escapais ao tédio pela porta dos maus desejos. Falastes mal
de alguém para agradá-la, diminuíste-vos para adular seu orgulho, ficais
descontente com ela e convosco mesmo.
O sentimento vivo e certo dessas diversas influências é próprio
dos espíritos justos e das consciências delicadas, e é precisamente o que os
antigos escritores ascéticos chamavam graça do discernimento dos espíritos.
Sois cruéis consoladores, dizia Jó a seus pretensos amigos. De
fato, os seres viciosos sempre afligem ao invés de consolarem. Têm um tato
prodigioso para encontrar e escolher as mais desesperadoras banalidades. Chorais
um afeto perdido, como sois ingênuo! Zombavam de vós, não vos amavam. Com dor
confessais que vosso filho é coxo, amigavelmente vos fazem ver que ele é
corcunda. Ele tosse e inquietai-vos, suplicam-vos ternamente que tomeis cuidado,
pois talvez esteja tuberculoso. Vossa mulher está doente há muito tempo,
consolai-vos, pois ela morrerá.
Espera e trabalha, eis o que o céu nos diz pela voz de todas as
boas almas; desespera e morre, eis o que o inferno nos grita em todas as
palavras, todos os movimentos, todas as amizades e todos os afagos dos seres
imperfeitos ou degradados.
Qualquer que seja a reputação de uma pessoa e quaisquer que
sejam os testemunhos de amizade que ela vos dá, se, ao deixá-la, sentivos menos
amigo do bem e menos forte, ela é perniciosa para vós: evitai-a.
Nossa dupla imantação produz em nós duas espécies de simpatias.
Temos necessidade de, alternadamente, absorver e irradiar. Nosso coração gosta
dos contrastes, e existem poucos exemplos de mulheres que tenham amado
sucessivamente dois gênios.
Repousamo-nos pela proteção dos cansaços da admiração, é a lei
do equilíbrio; mas por vezes também as naturezas sublimes surpreendem-se em
caprichos de vulgaridade. O homem, disse o abade Gerbet, é a sombra de um Deus
no corpo de um animal: existem os amigos do anjo e os complacentes para com o
animal. O anjo atrai-nos, mas, se não tomamos cuidado, é a besta que nos leva:
ela deve mesmo fatalmente levar-nos quando se trata de asneiras, isto é, das
satisfações desta vida nutriz da morte, que na linguagem das bestas chama-se
vida real. Em religião, o Evangelho é um guia seguro, o mesmo não sendo em
negócios, e muitas pessoas, quando se tratasse de estabelecer a sucessão
temporal de Jesus Cristo, se entenderiam melhor com Judas Iscariotes do que com
São Pedro.
Admiram a probidade, disse Juvenal, e não lhe dão o que lhe
cabe. Se, por exemplo, tal homem célebre não tivesse escandalosamente mendigado
a riqueza, alguém teria pensado em recompensar sua velha musa? Alguma herança
lhe teria caído do céu? A virtude toma nossa admiração, nossa bolsa, portanto,
nada lhe deve, essa grande dama é bastante rica sem nós. Preferimos dar ao
vício, ele é tão pobre!
"Não gosto dos mendigos e dou apenas aos pobres vergonhosos",
dizia um homem inteligente. "Mas o que lhes dais, se não os conheceis?"
"Dou-lhes minha admiração e minha estima, e não preciso conhecê-los para isso."
"Como necessitais de tanto dinheiro", foi perguntado a outro, "se não tendes
filhos nem encargos?" "Tenho meus pobres vergonhosos a quem não me posso impedir
de dar muito." "Apresente-os a mim, talvez dê-lhes também." "Oh! certamente já
conheceis alguns. Tenho sete deles, que comem excessivamente, e um oitavo que
come mais do que os outros sete: os sete são os sete pecados capitais; o oitavo
é o jogo."
"Senhor, dai-me cinco francos, estou morrendo de fome."
"Imbecil! estás morrendo de fome e queres que te encoraje a prosseguir em tão
mau caminho! Morres de fome e tens a imprudência de confessá-lo! Queres
tornar-me cúmplice de tua incapacidade, nutriz de teu suicídio! Queres um prêmio
pela miséria? Por quem me tomas? Acaso sou um traste da tua espécie..."
"Meu amigo, preciso de um milhão de escudos para seduzir uma
mulher honesta." "Ah! isso é mau; mas não sei recusar nada a um amigo. Toma, e
quando tiveres conseguido dá-me o endereço dessa pessoa." Eis o que se chama, na
Inglaterra e em outros lugares, agir como um perfeito cavalheiro.
"O homem honrado sem trabalho rouba, e não mendiga!", respondeu
um dia Cartouche a um transeunte que lhe pedia esmola. É enfático como a palavra
emprestada a Cambronne; e, na realidade, talvez o célebre ladrão e o grande
general tenham ambos respondido do mesmo modo.
Foi esse mesmo Cartouche quem de outra feita ofereceu, por
iniciativa própria e sem que lhe fosse pedido, vinte mil libras a alguém falido.
Entre irmãos é preciso saber viver.
A assistência mútua é uma lei da natureza. Ajudar nossos
semelhantes é ajudar a nós mesmos. Mas acima da assistência mútua eleva-se uma
lei maior e mais santa: é a assistência universal, é a caridade.
Todos admiramos e amamos São Vicente de Paulo, mas quase todos
temos também um fraco secreto pela habilidade, pela presença de espírito e,
sobretudo, pela audácia de Cartouche.
Os cúmplices confessos de nossas paixões podem repugnar-nos
humilhando-nos; saberemos, sujeitando-nos aos perigos, resistir-lhes por
orgulho. Mas que pode haver de mais perigoso para nós que nossos cúmplices
hipócritas e ocultos? Seguem-nos como o desgosto, esperam-nos como o abismo,
envolvem-nos como a vertigem. Nós os desculpamos para desculparmo-nos, os
defendemos para defendermo-nos, os justificamos para justificarmo-nos e os
suportamos em seguida porque é preciso, porque não temos força para resistir a
nossas inclinações, porque não desejamos isso.
Apossaram-se de nosso ascendente, como diz Paracelso, e onde
quiserem conduzir-nos iremos.
São nossos maus anjos, sabemo-lo no fundo de nossa consciência;
mas os poupamos, pois fizemo-nos seus servidores, a fim de que eles também nos
sirvam.
Nossas paixões, aduladas e poupadas, tornaram-se
servas-senhoras; e os complacentes para com nossas paixões são valetes que se
tornaram nossos mestres.
Respiramos nossos pensamentos e aspiramos os dos outros
impressos na luz astral, tornada sua atmosfera eletromagnética: assim, a
companhia dos maus é menos funesta para as pessoas de bem do que a dos seres
vulgares, covardes e mornos. Uma forte antipatia adverte-nos facilmente e
salva-nos do contato com os vícios grosseiros; não é assim com os vícios
disfarçados, diminuídos de certo modo e tornados quase amáveis. Uma mulher
honesta sentirá apenas repulsa em companhia de uma moça perdida; mas tem tudo a
recear das seduções de uma doidivanas.
Sabemos que a loucura é contagiosa; mas os loucos são mais
particularmente perigosos quando são amáveis e simpáticos. Entramos pouco a
pouco em seu círculo de idéias, chegamos a compreender seus exageros
compartilhando seus entusiasmos, habituamo-nos à sua lógica excepcional e
transviada, chegamos a pensar que não são tão loucos quanto acreditávamos no
início. Daí a acreditar que são os únicos a ter razão não há muita distância.
Nós os amamos, os aprovamos, estamos loucos como eles.
As afeições são livres e podem ser racionalizadas; mas as
simpatias são fatais e muito freqüentemente desarrazoadas; dependem das atrações
mais ou menos equilibradas da luz magnética, e agem sobre os homens do mesmo
modo que sobre os animais. Divertiremo-nos tolamente com uma pessoa que nada tem
de amável porque estamos misteriosamente atraídos e dominados por ela.
Freqüentemente, essas simpatias estranhas começaram por vivas antipatias; os
fluidos repeliam-se no início, equilibrando-se depois.
A especialidade equilibrante do mediador plástico de cada
pessoa é o que Paracelso chama seu ascendente, e denomina flagum
ao reflexo particular das idéias habituais de cada um na luz universal.
Chega-se ao conhecimento do ascendente de uma pessoa pela
adivinhação sensitiva do flagum, e por um direcionamento perseverante da
vontade vira-se o lado ativo do próprio ascendente para o lado passivo do
ascendente do outro, quando se quer apoderar-se do outro e dominá-lo.
O ascendente astral foi adivinhado por outros magistas, que o
chamaram turbilhão.
É, dizem eles, uma corrente de luz especializada, reproduzindo
sempre um mesmo círculo de imagens, e, por conseguinte, de impressões
determinadas e determinantes. Esses turbilhões existem para os homens como para
as estrelas. "Os astros", diz Paracelso, "respiram sua alma luminosa e atraem a
irradiação uns dos outros. A alma da terra, cativa das leis fatais da
gravitação, desprende-se especializando-se e passa pelo instinto dos animais
para chegar à inteligência do homem. A parte cativa dessa alma é muda, mas
conserva por escrito os segredos da natureza. A parte livre não pode mais ler
essa escritura fatal sem perder instantaneamente sua liberdade. Só se passa da
contemplação muda e vegetativa ao pensamento livre e vibrante mudando de meios e
de órgãos. Daí vem o esquecimento que acompanha o nascimento e as reminiscências
vagas de nossas intuições doentias, sempre análogas às visões de nossos êxtases
e de nossos sonhos."
Essa revelação do grande mestre da medicina oculta lança uma
enorme luz sobre todos os fenômenos do sonambulismo e da adivinhação. Aí está,
também, para quem souber encontrá-la, a verdadeira chave das evocações e das
comunicações com a alma fluídica da terra.
As pessoas cuja influência perigosa se faz sentir num único
contato são as que fazem parte de uma associação fluídica; ou que dispõem, quer
voluntariamente, quer sem saberem, de uma corrente de luz astral desviada.
Aquelas, por exemplo, que vivem no isolamento e na privação de toda comunicação
humana e que estão diariamente em relação fluídica com animais reunidos em
grande número, como estão normalmente os pastores, esses estão possuídos pelo
demônio a que se denomina legião, e, por sua vez, reinam despoticamente
sobre as almas fluídicas dos rebanhos confiados à sua guarda: desse modo sua
benevolência ou sua malevolência faz prosperar ou morrer o rebanho; podem
exercer essa influência de simpatia animal sobre mediadores plásticos humanos
mal defendidos por uma vontade fraca ou uma inteligência limitada.
Assim explicam-se os encantamentos operados habitualmente pelos
pastores e os fenômenos ainda muito recentes do presbitério de Cideville.
Cideville é um pequeno vilarejo da Normandia onde, há alguns
anos, produziram-se fenômenos semelhantes aos que se produziram, depois, sob a
influência do senhor Home. Mirville estudou-os cuidadosamente e Gougenot
Desmousseaux repetiu todos seus detalhes num livro publicado em 1854 e
intitulado: Costumes e Práticas dos Demônios. O que há de notável nesse
último autor é que ele parece adivinhar a existência do mediador plástico ou do
corpo fluídico. "Com certeza não temos duas almas", diz ele, "mas talvez
tenhamos dois corpos." Com efeito, tudo o que ele conta pareceria provar essa
hipótese. Trata-se de um pastor, cuja forma fluídica infestava um presbitério e
que foi ferido à distância pelos golpes desfechados à sua larva astral.
Aqui perguntaremos aos senhores Mirville e Gougenot
Desmousseaux se eles tomam esse pastor pelo diabo e se, de perto ou à distância,
o diabo, tal como o concebem, pode ser arranhado ou ferido. Na Normandia, até
então, quase não eram conhecidas as doenças magnéticas dos médiuns e o infeliz
sonâmbulo, que fora preciso tratar e curar, foi rudemente maltratado e até
agredido, segundo se diz, não em aparência fluídica, mas em sua própria pessoa,
pelo próprio pároco. Aí está, convenhamos, um singular gênero de exorcismo! Se
realmente essas violências aconteceram, e se são imputáveis a um eclesiástico
que dizem, e que pode ser, credulidade à parte, muito bom e respeitável,
reconheçamos que escritores como Mirville e Gougenot Desmousseaux tornam-se de
certo modo seus cúmplices.
As leis da vida física são inexoráveis e, em sua natureza
animal, o homem nasce escravo da fatalidade; e é à custa de lutas contra os
instintos que ele pode conquistar a liberdade moral. Duas existências
diferentes, portanto, nos são possíveis na terra: uma fatal, a outra livre. O
ser fatal é o joguete ou o instrumento de uma força que ele não dirige: ora,
quando os instrumentos da fatalidade se encontram e se chocam, o mais forte
destrói ou domina o mais fraco; os seres verdadeiramente libertos não temem nem
as bruxarias nem as influências misteriosas.
Dir-nos-ão que o encontro de Caim pode ser fatal para Abel. Sem
dúvida; mas semelhante fatalidade é uma felicidade para a santa e pura vítima, é
uma infelicidade apenas para o assassino.
Assim como entre os justos existe uma grande comunidade de
virtudes e méritos, existe entre os maus uma solidez absoluta de culpabilidade
fatal e castigo necessário. O crime está nas disposições do coração. As
circunstâncias quase sempre independentes da vontade fazem sozinhas a gravidade
dos atos. Se a fatalidade tivesse feito de Nero um escravo, ele se teria tornado
um histrião ou um gladiador e não teria incendiado Roma: seria preciso
agradecer-lhe por isso?
Nero era cúmplice de todo o povo romano e os únicos
responsáveis pela fúria desse monstro eram os que a deveriam ter impedido.
Sêneca, Burro, Tráseas, Corbulão, eis os verdadeiros culpados desse reino
terrível: grandes homens egoístas ou incapazes! Souberam apenas morrer. Se um
dos ursos do Jardim Zoológico escapasse e devorasse algumas pessoas, seria ele
ou seus vigias quem deveria prestar contas? Todo aquele que se liberta dos erros
comuns deve pagar um resgate proporcional à soma desses erros: Sócrates responde
por Anito, e Jesus teve que sofrer um suplício que se igualou em horrores a toda
a traição de Judas.
É assim que, ao pagar as dívidas da fatalidade, a liberdade
conquistada compra o império do mundo; é a ela que compete ligar ou desligar:
Deus entregou-lhe as chaves do céu e do inferno.
Homens que abandonais as bestas a si mesmas, quereis que elas
vos devorem.
As multidões escravas da fatalidade só podem gozar da liberdade
pela obediência absoluta à vontade dos homens livres; elas devem trabalhar para
eles, porque eles respondem por elas.
Mas, quando a besta governa as bestas, quando o cego conduz os
cegos, quando o homem fatal governa as massas fatais, o que se deve esperar?
Terríveis catástrofes, e elas nunca faltarão.
Ao admitir os dogmas anárquicos de 89, Luís XVI lançara o
Estado num declive fatal. A partir desse momento todos os crimes da Revolução
pesaram unicamente sobre ele; apenas ele faltara a seu dever. Robespierre e
Marat haviam feito o que deviam fazer. Girondinos e Montanheses fatalmente
mataram-se uns aos outros e suas mortes violentas foram apenas catástrofes
necessárias; houve nessa época apenas um grande e legítimo suplício,
verdadeiramente sagrado, verdadeiramente expiatório: o do rei. O princípio da
realeza devia cair se esse príncipe demasiado fraco tivesse sido absoluto. Mas
era impossível uma transação entre a ordem e a desordem. Não se herda dos que
são assassinados, eles são poupados, e a Revolução reabilitou Luís XVI ao
assassiná-lo. Após tantas concessões, fraquezas, indignas vilezas, esse homem
sagrado uma segunda vez pela desgraça pôde ao menos dizer, ao subir ao
cadafalso: a Revolução está julgada, e eu continuo sendo o rei da França!
Ser justo é sofrer por todos os que não o são, mas é viver; ser
mau é sofrer por si mesmo sem conquistar a vida, é enganar-se, agir mal e morrer
eternamente.
Resumindo: as influências fatais são as da morte, as
influências salutares são as da vida. Conforme sejamos mais fracos ou mais
fortes na vida, atraímos ou repelimos o malefício. Esse poder oculto não é senão
demasiado real; mas a inteligência e a virtude terão sempre os meios de evitar
suas obsessões e seus ataques.
.
O equilíbrio humano compõe-se de dois atrativos; um pela morte,
o outro pela vida. A fatalidade é a vertigem que nos atrai para o abismo; a
liberdade é o esforço racional que nos eleva acima das atuações fatais da
morte.
O que é um pecado mortal? É uma apostasia de nossa liberdade; é
um abandono de nós mesmos às leis materiais da gravidade; um ato injusto é um
pacto com a injustiça: ora, toda injustiça é uma abdicação da inteligência.
Caímos, então, sob o império da força, cujas reações sempre esmagam tudo o que
se afasta do equilíbrio.
O amor pelo mal e a adesão formal da vontade à injustiça são os
últimos esforços da vontade expirante. O homem, não importa o que faça, é mais
forte que o bruto e não pode, como este, abandonar-se à fatalidade. É necessário
que escolha e que ame. A alma desesperada que se acredita apaixonada pela morte
está ainda mais viva do que uma alma sem amor. A atividade para o mal pode e
deve reconduzir o homem ao bem por contragolpe e reação. O verdadeiro mal sem
remédio é a inércia.
Aos abismos da perversidade correspondem os abismos da graça.
Freqüentemente Deus fez de celerados santos; nunca fez nada de mornos e de
covardes.
Sob pena de reprovação, é preciso trabalhar, é preciso agir. A
natureza, aliás, provê para isso, e se não queremos, com toda nossa coragem, ir
em direção à vida, ela nos precipita com todas as suas forças para a morte. Os
que não querem caminhar, ela os arrasta.
Um homem que poderia ser chamado o grande profeta dos ébrios,
Edgar Poe, esse alucinado sublime, esse gênio da extravagância lúcida, descreveu
com uma realidade assustadora os pesadelos da perversidade...
"Matei este velho porque era estrábico. Fiz isso porque não
deveria ser feito."
Eis a terrível contrapartida do Credo quia absurdum, de
Tertuliano.
Desafiar Deus e injuriá-lo é um último ato de fé. "Os mortos
não te louvam, Senhor", diz o salmista; e poderíamos acrescentar, se ousássemos:
"Os mortos não te blasfemam."
"Oh! meu filho!", dizia um pai inclinado sobre o leito do
filho, caído em letargia após um violento acesso de delírio; "insulta-me;
batame, morda-me; sentirei que ainda vives... Mas não fiques para sempre neste
silêncio medonho da tumba!"
Um grande crime sempre protesta contra uma grande tepidez. Cem
mil padres honestos teriam podido, através de uma caridade mais ativa, prevenir
o atentado daquele miserável Verger. A Igreja deve julgar, condenar, punir um
eclesiástico escandaloso; mas não tem o direito de abandoná-los aos frenesis do
desespero e às tentações da miséria e da fome.
Nada é tão assustador quanto o nada; e se se pudesse jamais
formular sua concepção, se fosse possível admiti-lo, o inferno seria uma
esperança.
Eis por que a própria natureza procura e impõe a expiação como
um remédio; eis por que o suplício suplica, como tão bem o compreendeu esse
grande católico chamado conde Joseph de Maistre; eis por que a pena de morte é o
direito natural e nunca desaparecerá das leis humanas. A mácula do homicídio
seria indelével se Deus não absolvesse o cadafalso; o poder divino abdicado pela
sociedade e usurpado pelos celerados pertencer-lhes-ia sem contestação. O
assassinato, então, transformar-se-ia em virtude quando exercesse as represálias
da natureza ultrajada. As vinganças particulares protestariam contra a ausência
da expiação pública, e com os restos do gládio quebrado da justiça a anarquia
fabricaria punhais para si.
"Se Deus suprimisse o inferno, os homens fariam outro para
desafiá-lo", dizia-nos um dia um bom padre. Tinha razão; e é por isso que o
inferno deseja tanto ser suprimido. Emancipação! tal é o grito de todos os
vícios. Emancipação do homicídio pela abolição da pena de morte; emancipação da
prostituição e do infanticídio pela abolição do casamento; emancipação da
preguiça e do roubo pela abolição da propriedade... Assim gira o turbilhão da
perversidade até que chegue a esta fórmula suprema e secreta: Emancipação da
morte pela abolição da vida!
É pelas vitórias do trabalho que se escapa às fatalidades da
dor. O que chamamos morte é somente o parto eterno da natureza.
Ininterruptamente, ela reabsorve e retoma em seu seio tudo o que não nasceu do
espírito. A matéria inerte por si mesma só pode existir pelo movimento perpétuo,
e o espírito naturalmente volátil só pode durar fixando-se. A emancipação das
leis fatais pela adesão livre do espírito ao verdadeiro e ao bem é o que o
Evangelho denomina nascimento espiritual; a reabsorção na morada eterna da
natureza é a segunda morte.
Os seres não-emancipados são atraídos para essa segunda morte
por uma gravidade fatal, arrastam-se uns aos outros, como o divino Michelangelo
tão bem nos faz ver em sua grande pintura sobre o juízo final; são invasores e
tenazes como pessoas que se afogam, e os espíritos livres devem lutar
energicamente contra eles para não serem por eles retidos em seu vôo e
rebaixados fatalmente ao inferno.
Essa guerra é tão antiga quanto o mundo; os gregos
representavam-na sob os símbolos de Eros e Anteros, e os hebreus pelo
antagonismo de Caim e Abel. É a guerra dos titãs e dos deuses. Os dois exércitos
estão em toda a parte, invisíveis, mas disciplinados e sempre prontos ao ataque
ou à represália. As pessoas ingênuas dos dois partidos, surpresas com as
resistências súbitas e unânimes que encontram, acreditam em vastos complôs,
sabiamente organizados, das sociedades ocultas e todo-poderosas. Eugène Sue
inventa Rodin; pessoas da Igreja falam de iluminados e de maçons; Wronski sonha
com seus bandos místicos, e o que há de verdadeiro e sério no fundo de tudo isso
é apenas a luta necessária entre a ordem e a desordem, os instintos e o
pensamento; o resultado dessa luta é o equilíbrio no progresso e o diabo
contribui sempre, contra a sua vontade, para a glória de São Miguel.
O amor físico é a mais perversa de todas as paixões fatais. É o
anarquista por excelência; não conhece nem leis, nem deveres, nem verdade, nem
justiça. Faria a moça passar por cima do cadáver de seus pais. É uma embriaguez
irresistivel, uma loucura furiosa, uma vertigem da fatalidade que procura novas
vítimas; a embriaguez de Saturno que quer ser pai para ter crianças a quem
devorar. Vencer o amor é triunfar sobre toda a natureza. Submetê-lo à justiça é
reabilitar a vida devotando-a à imortalidade; assim, as maiores obras da
revelação cristã são a criação da virgindade voluntária e a santificação do
matrimônio.
Enquanto o amor é apenas um desejo e um gozo, ele é mortal.
Para eternizar-se é preciso que se torne um sacrifício, pois torna-se, então,
uma força e uma virtude. É a luta de Eros e Anteros que faz o equilíbrio do
mundo.
Tudo o que superexcita a sensibilidade conduz à depravação e ao
crime. As lágrimas chamam o sangue. Existem grandes emoções que são como licores
fortes, usá-las habitualmente é abusar. Ora, todo abuso das emoções perverte o
sentido moral; buscamo-las por elas mesmas, sacrificamos tudo para obtê-las. Uma
mulher romanesca se tornará facilmente uma heroína de Tribunal do Júri, chegará
talvez ao deplorável e irreparável absurdo de suicidar-se para admirar-se e
enternecer-se consigo mesma vendo-se morrer.
Os hábitos romanescos levam as mulheres à histeria e os homens
à depressão. Manfred, Renê, Lélia são tipos de perversidade muito mais profunda
por racionalizarem seu orgulho doentio e poetizarem sua demência. Perguntamo-nos
aterrorizados que monstro poderia nascer do casamento de Manfred e Lélia!
A perda do sentido moral é uma verdadeira alienação; um homem
que não obedece à justiça antes de tudo não se pertence mais, caminha sem luz na
noite de sua existência, agita-se como num sonho vítima do pesadelo de suas
paixões.
As correntes impetuosas da vida instintiva e as fracas
resistências da vontade formam um antagonismo tão distinto que os cabalistas
acreditaram no embrionato das almas, isto é, a presença num mesmo corpo de
várias almas que o disputam entre si e freqüentemente tentam destruí-lo, mais ou
menos como os náufragos da Medusa, que no momento em que disputavam a
jangada muito estreita, tentavam fazê-la soçobrar.
É certo que alguém ao se tornar servo de uma corrente qualquer
de instintos, ou mesmo de idéias, aliena sua personalidade e torna-se escravo
desse gênio das multidões que o Evangelho chama Legião.
Os artistas sabem algo sobre isso. Suas freqüentes evocações da
luz universal enervam-nos. Tornam-se médiuns, isto é, doentes. Quanto mais o
sucesso os faz crescer junto à opinião pública, mais sua personalidade
enfraquece; tornam-se sujeitos a acessos, absurdos, invejosos, coléricos; não
admitem que outro mérito, mesmo de ordem diferente, possa produzir-se ao lado do
seu, e desde que se tornam injustos eximem-se até de serem polidos. Para escapar
a essa fatalidade os verdadeiros grandes homens isolam-se de toda camaradagem
liberticida e salvam-se dos atritos da vil multidão por uma impopularidade
orgulhosa: se Balzac, quando vivo, tivesse sido um homem de conventículo ou de
partido, não teria permanecido, após sua morte, o grande universal de nossa
época.
A luz não ilumina as coisas insensíveis nem os olhos fechados,
ou pelo menos só as ilumina em proveito dos que vêem. A palavra do Gênesis, Que
se faça a luz!, é o grito de vitória da inteligência triunfante sobre as trevas.
Essa palavra é sublime porque exprime com simplicidade a maior e mais sublime
coisa do mundo: a criação da inteligência por si mesma quando, convocando seus
poderes, equilibrando suas faculdades, ela diz: Quero imortalizar-me vendo a
verdade eterna, que seja a luz! E a luz é. A luz eterna como Deus começa todos
os dias para os olhos que se abrem. A verdade será eternamente a invenção e como
que a criação do gênio: ele grita: Que seja a luz, e ele próprio é porque ela é.
Ele é imortal porque compreendera eterna. Ele contempla a verdade como sua obra
porque ela é sua conquista, e a imortalidade como seu triunfo porque ela será
sua recompensa e sua coroa.
Mas nem todos os espíritos vêem com justeza porque nem todos os
corações querem com justiça. Existem almas para as quais a verdadeira luz parece
nunca dever existir. Contentam-se com visões fosforescentes, abortos de luz,
alucinações do pensamento, e, apaixonadas por esses fantasmas, temem o dia que
os faria fugirem porque sentem que, não sendo o dia feito para seus olhos,
voltariam a cair numa profunda escuridão. Assim é que os loucos, no início,
temem, depois caluniam, insultam, perseguem e condenam os sábios. É preciso
compadecer-se deles e perdoá-los, não sabem o que fazem.
A verdadeira luz repousa e satisfaz a alma, a alucinação, ao
contrário, cansa-a e atormenta-a. As satisfações da loucura assemelham-se aos
sonhos gastronômicos das pessoas famintas que aguçam sua fome sem nunca
saciá-la. Daí nascem as irritações e as perturbações, os desencorajamentos e os
desesperos. "A vida sempre nos mentiu", dizem os discípulos de Werther, "eis por
que queremos morrer!" Pobres crianças, não é a morte que vos seria preciso, é a
vida. Desde que estais no mundo morreis todos os dias, é à cruel volúpia do nada
que deveis pedir o remédio do nada de vossas volúpias? Não, a vida nunca vos
enganou, pois não vivestes ainda. O que tomais por vida são as alucinações e os
sonhos do primeiro sono da morte!
Todos os grandes criminosos são alucinados voluntários, e todos
os alucinados voluntários podem ser fatalmente levados a tornarem-se grandes
criminosos. Nossa luz pessoal especializada, concebida, determinada por nossa
afeição dominante é o germe de nosso paraíso ou de nosso inferno. Cada um de nós
de algum modo concebe, põe no mundo e alimenta seu bom anjo ou seu mau demônio.
A concepção da verdade faz nascer em nós o bom gênio; a percepção desejada da
mentira é uma incubadora e uma criadora de pesadelos e de vampiros. Cada um deve
alimentar seus filhos, e nossa vida consome-se em proveito de nossos
pensamentos. Felizes os que reencontram a imortalidade nas criações de sua alma!
Ai dos que se exaurem para alimentar a mentira e engordar a morte, pois cada um
gozará o fruto de suas obras.
Existem alguns seres inquietos e atormentados cuja influência é
turbulenta e a conversa, fatal. Perto deles sentimo-nos irritados e ao deixá-los
sentimo-nos encolerizados; entretanto, por uma perversidade secreta, nós os
procuramos para afrontar a perturbação e gozar as emoções malévolas que eles nos
dão. São doentes contagiosos do espírito de perversidade.
O espírito de perversidade sempre tem por móvel secreto a sede
da destruição e por fim o suicídio.
O assassino Eliçabide, segundo suas próprias declarações, não
só experimentava uma necessidade selvagem de matar seus parentes e amigos, como
também gostaria, se isso fosse possível, e disse-o com suas próprias palavras
diante do tribunal, de fazer o globo saltar como uma castanha cozida.
Lacenaire, que passava seus dias combinando assassínios para obter meios de
passar as noites em ignóbeis orgias, ou nos frenesis do jogo, vangloriava-se
abertamente de ter vivido. Chamava a isso viver! E cantava um hino à guilhotina,
que chamava sua bela noiva! E o mundo estava repleto de imbecis que admiravam
esse celerado! Alfred de Musset, antes de aniquilar-se na embriaguez,
desperdiçou um dos primeiros talentos de seu século em contos de fria ironia e
desgosto universal; o infeliz fora enfeitiçado pelo respir de uma mulher
profundamente perversa, que, após tê-lo morto, acocorou-se sobre seu cadáver
como um vampiro e rasgou seu sudário. Perguntávamos um dia a um jovem escritor
dessa escola o que provava sua literatura. "Prova", respondeu-nos franca e
ingenuamente, "que é preciso desesperar e morrer." Que apostolado e que
doutrina! Mas eis as conclusões necessárias e rigorosas do espírito de
perversidade. Aspirar incessantemente ao suicídio, caluniar a vida e a natureza,
invocar todos os dias a morte sem poder morrer, é o inferno eterno, é o suplício
de Satã, esse avatar mitológico do espírito de perversidade; a verdadeira
tradução da palavra grega diabolos, ou diabo, é o perverso.
Eis um mistério de que os pervertidos não desconfiam. É que só
se pode gozar os prazeres da vida, mesmo os materiais, pelo sentido moral. O
prazer é a música das harmonias interiores; os sentidos são apenas seus
instrumentos, instrumentos que desafinam ao contato com uma alma degradada. Os
maus nada podem sentir, porque nada podem amar: para amar, é preciso ser bom.
Para eles, portanto, tudo é vazio, e parece-lhes que a natureza é impotente,
porque eles próprios o são, duvidam de tudo porque nada sabem, blasfemam contra
tudo porque de nada gostam; se afagam, é para emurchecer; se bebem, é para
embriagar-se; se dormem, é para esquecer; se acordam, é para entediar-se
mortalmente: assim viverá, ou antes, assim morrerá todos os dias aquele que se
liberta de toda lei e de todo dever para tornar-se escravo de suas fantasias. O
mundo e a própria eternidade tornam-se inúteis para quem se torna inútil para o
mundo e para a eternidade.
Nossa vontade, ao agir diretamente sobre nosso mediador
plástico, isto é, sobre a porção de luz astral que se especializou em nós e que
serve para a assimilação e configuração dos elementos necessários à nossa
existência; nossa vontade, justa ou injusta, harmoniosa ou perversa, configura o
mediador à sua imagem e dá-lhe aptidões conforme os nossos atrativos. Assim, a
monstruosidade moral produz a fealdade física, pois o mediador astral, esse
arquiteto interior de nosso edifício corporal, modificado incessantemente
segundo nossas necessidades verdadeiras ou factícias. Ele faz crescer o ventre e
os maxilares do glutão, crispa os lábios do avarento, torna impudentes os
olhares da mulher impura e venenosos os do invejoso e do mau. Quando o egoísmo
prevaleceu numa alma, o olhar torna-se frio, os traços duros; a harmonia das
formas desaparece e, segundo a especialidade absorvente ou irradiante desse
egoísmo, os membros dessecam-se ou ficam comprometidos por uma excessiva
gordura. A natureza, ao fazer de nosso corpo o retrato de nossa alma, garantiu
tal semelhança para sempre, e retoca-o incansavelmente. Lindas mulheres que não
sois bondosas, estai certas de não permanecerdes belas por muito tempo. A beleza
é um adiantamento que a natureza faz à virtude: se a virtude não está pronta
para o acerto da dívida, a emprestadora recuperará impiedosamente seu
capital.
A perversidade, ao modificar o organismo cujo equilíbrio ela
destrói, cria ao mesmo tempo a fatalidade das necessidades que impele à
destruição do próprio organismo e à morte. Quanto menos o perverso desfruta,
mais sede de prazer tem. O vinho é como água para o ébrio, o ouro derrete nas
mãos do jogador; Messalina cansa-se sem ficar saciada. A volúpia que lhes escapa
transforma-se para eles num longo desejo irritado. Quanto mais seus excessos são
homicidas, mais parece-lhes que a suprema felicidade se aproxima... Mais uma
golada de licor forte, mais um espasmo, mais uma violência contra a natureza...
Ah! finalmente, o prazer! a vida... e seu desejo, no paroxismo de sua insa
As altas ciências da Cabala e da magia prometem ao homem um
poder excepcional, real, efetivo, realizador, e deve-se encará-las como vãs e
mentirosas se não o dão.
Vós julgareis os doutores por suas obras, dizia o mestre
supremo, e essa regra de julgamento é infalível.
Se quereis que eu acredite no que sabeis, mostrai-me o que
fazeis.
Deus, para elevar o homem à emancipação moral, esconde-se dele
e de certo modo abandona-lhe o governo do mundo. Deixa-se adivinhar pelas
grandezas e harmonias da natureza, a fim de que o homem se aperfeiçoe
progressivamente, sempre ampliando a idéia que faz de seu autor.
O homem conhece Deus apenas pelos nomes que dá a esse Ser dos
seres e só o distingue pelas imagens que dele tenta traçar. Assim, ele é de
certo modo o criador daquele que o criou. Acredita-se o espelho de Deus e,
ampliando indefinidamente sua própria miragem, acredita poder esboçar no espaço
infinito a sombra daquele que é sem corpo, sem sombra e sem espaço.
CRIAR DEUS, CRIAR-SE A SI PRÓPRIO, TORNAR-SE INDEPENDENTE,
IMPASSÍVEL E IMORTAL: aí está com certeza um programa mais temerário do que o
sonho de Prometeu. Pois bem, esse programa é paradoxal apenas na forma que
empresta a uma falsa e sacrílega interpretação. Num sentido ele é perfeitamente
razoável, e a ciência dos adeptos promete realizá-lo e dar-lhe uma perfeita
execução.
O homem, com efeito, cria um Deus conforme à sua própria
inteligência e à sua própria bondade, não pode elevar seu ideal mais alto do que
lhe permite seu desenvolvimento moral. O Deus que ele adora é sempre seu próprio
reflexo aumentado. Conceber o que seja o absoluto em bondade e em justiça é ser
ele próprio muito justo e muito bom.
As qualidades do espírito, as qualidades morais são riquezas, e
as maiores de todas as riquezas. É preciso adquiri-las pela luta e pelo
trabalho. Objetar-nos-ão a desigualdade das aptidões e as crianças que nascem
com uma organização mais perfeita. Mas devemos crer que tais organizações são o
resultado de um trabalho mais avançado da natureza e que as crianças delas
dotadas adquiriram-nas, senão por seus próprios esforços, ao menos pelas obras
solidárias dos seres humanos a quem sua existência está ligada. É um segredo da
natureza, que nada faz ao acaso; a propriedade das faculdades intelectuais mais
desenvolvidas como a do dinheiro e das terras constitui um direito
imprescritível de transmissão e de herança.
Sim, o homem é chamado a terminar a obra de seu Criador, e cada
um dos instantes por ele empregados para tornar-se melhor ou perder-se é
decisivo para toda uma eternidade. É pela conquista de uma inteligência para
sempre reta e de uma vontade para sempre justa que ele se torna vivo para a vida
eterna, pois que nada sobrevive à injustiça e ao erro, a não ser a pena por sua
desordem. Compreender o bem é querê-lo, e, na ordem da justiça, querer é fazer.
Eis por que o Evangelho nos diz que os homens serão julgados segundo suas
obras.
Nossas obras tanto nos fazem o que somos, que, como já
dissemos, nosso corpo sofre modificação com nossos hábitos e, algumas vezes,
transformação total de sua forma.
Uma forma conquistada ou suportada torna-se para toda a
existência uma providência ou uma fatalidade. Essas figuras estranhas que os
egípcios davam aos símbolos humanos da divindade representam as formas fatais.
Tífon, por sua boca de crocodilo, está condenado a devorar incessantemente para
encher seu ventre de hipopótamo. Assim, por sua voracidade e sua fealdade, é
consagrado à destruição eterna.
O homem pode matar ou vivificar suas faculdades pela
negligência ou pelo abuso. Pode criar para si faculdades novas pelo bom uso das
que recebeu da natureza. Freqüentemente se diz que as afeições não podem ser
comandadas, que a fé não é possível a todos, que não se refaz o caráter, e todas
essas asserções são verdadeiras apenas para os preguiçosos ou os perversos.
Alguém pode se tornar crente, piedoso, amante, devoto, quando sinceramente o
quer. Pode-se dar a calma da justeza ao espírito como a onipotência da justiça à
vontade. Pode-se reinar no céu pela fé, e na terra pela ciência. O homem que
sabe comandar a si próprio é rei de toda a natureza.
Vamos mostrar, neste último livro, por que meios os verdadeiros
iniciados tornaram-se mestres de vida comandando a dor e a morte; como operam em
si mesmos e nos outros as transformações de Proteu; como exercem as adivinhações
de Apolônio; como fazem o ouro de Raimundo Lúlio e de Flamel; como possuem, para
renovar sua juventude, os segredos de Postel, o Ressuscitado, e do fabuloso
Cagliostro. Vamos dizer, enfim, a última palavra da magia.
ciáv
A Bíblia conta que o rei Nabucodonosor, no auge de seu poder e
orgulho, foi repentinamente transformado em besta.
Fugiu para lugares selvagens, pôs-se a pastar a relva, deixou
crescer a barba, os cabelos e todo o pêlo do corpo, bem como as unhas, e
permaneceu nesse estado durante sete anos.
Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, dissemos o que
pensamos dos mistérios da licantropia, ou seja, da metamorfose dos homens em
lobisomens.
Todos conhecem a fábula de Circe e compreendem sua
alegoria.
O ascendente fatal de uma pessoa sobre outra é a
verdadeira vara de Circe.
Sabe-se que quase todas as fisionomias humanas portam alguma
semelhança com um animal, isto é, a assinatura de um instinto
especializado.
Ora, os instintos são balanceados pelos instintos contrários e
dominados por instintos mais fortes.
Para dominar os carneiros, o cão explora o medo do lobo.
Se vós sois cão, e se quereis que uma linda gatinha vos ame,
tendes apenas uma medida a tomar: metamorfosear-vos em gato.
Como? Pela observação, imitação e imaginação. Pensamos que se
compreende aqui nossa linguagem figurada, e recomendamos essa revelação a todos
os magnetistas; aí está o mais profundo de todos os segredos de sua arte.
Eis sua fórmula em termos técnicos:
"Polarizar sua própria luz animal, em antagonismo equilibrado
com um pólo contrário."
Ou então:
Concentrar em si mesmo as especialidades absorventes para
dirigir as irradiantes para uma morada absorvente; e vice-versa.
Esse governo de nossa polarização magnética pode ser feito com
o auxílio das formas animais de que falamos, e que servirão para fixar a
imaginação.
Demos um exemplo:
Quereis agir magneticamente sobre uma pessoa polarizada como
vós, o que sabereis no primeiro contato, se fordes magnetizador; porém, ela é um
pouco menos forte que vós: é um rato, sois uma ratazana. Fazei-vos gato, e
tomá-la-eis.
Num dos admiráveis contos que não inventou, mas que narrou
melhor do que ninguém, Perrault põe em cena um mestre gato que, por seus ardis,
induz um ogro a metamorfosear-se em rato; mal ele acabara de fazê-lo, foi
devorado pelo gato. Os contos da Mamãe Gansa seriam, como o Asno de Ouro, de
Apuleio, verdadeiras lendas mágicas, e ocultariam, sob a aparência pueril, os
formidáveis segredos da ciência?
Sabe-se que os magnetizadores dão à água pura, apenas com a
imposição das mãos, isto é, de sua vontade expressa por um sinal, as
propriedades e o sabor do vinho, dos licores e de todos os medicamentos
possíveis.
Sabe-se também que os domadores de animais ferozes subjugam os
leões fazendo-se eles mesmos mental e magneticamente mais fortes e mais ferozes
que os leões.
Jules Gérard, o intrépido matador de leões da África, seria
devorado se tivesse medo. Mas, para não ter medo de um leão, é preciso, por um
esforço de imaginação e de vontade, fazer-se mais forte e mais selvagem que o
próprio animal; é preciso dizer a si mesmo: O leão sou eu, e este animal diante
de mim é apenas um cão que deve sentir medo.
Fourier sonhara os antileões: Jules Gérard realizou essa
quimera do sonhador falansteriano.
Mas, para não temer os leões, basta ser um homem corajoso e ter
armas, dirão.
Não, isso não basta. É preciso, por assim dizer, conhecer de
cor seu leão, calcular as investidas do animal, adivinhar seus ardis, evitar
suas garras, prever seus movimentos, numa palavra, ser mestre na profissão de
leão, como diria o bom La Fontaine.
Os animais são os símbolos vivos dos instintos e das paixões
dos homens. Se tornais um homem temeroso, vós o transformais em lebre; se, ao
contrário, impeli-o à ferocidade, fazeis dele um tigre. A vara de Circe é o
poder fascinador da mulher; e os companheiros de Ulisses transformados em porcos
não são uma história apenas daquele tempo.
Mas nenhuma metamorfose se opera sem destruição. Para
transformar um gavião em pomba, é necessário primeiro matá-lo, depois cortá-lo
em pedaços, de modo a destruir até o menor vestígio de sua primeira forma,
depois fervê-lo no banho mágico de Medéia.
Vede como os hierofantes modernos procedem para realizar a
regeneração humana; como fazem, por exemplo, na religião católica para
transformarem um homem mais ou menos fraco e apaixonado num estóico missionário
da Companhia de Jesus.
Aí está o grande segredo dessa ordem venerável e terrível,
sempre desconhecida, freqüentemente caluniada e sempre soberana.
Lede atentamente o livro intitulado os Exercícios de Santo
Inácio e vede com que mágico poder esse gênio opera a realização da fé.
Ele ordena a seus discípulos que vejam, toquem, cheirem,
degustem as coisas invisíveis; quer que os sentidos sejam exaltados na oração
até a alucinação voluntária. Meditais sobre um mistério da fé, Santo Inácio quer
primeiramente que construais um lugar, que o sonheis, vejais, toqueis. Se é o
inferno, ele vos faz tatear rochas ardentes, nadar em trevas espessas como o
pez, coloca em vossa língua enxofre líquido, enche vossas narinas de um
abominável mau cheiro; mostra-vos atrozes suplícios, vos faz ouvir gemidos
sobre-humanos; diz à vossa vontade para criar tudo isso através de exercícios
persistentes. Cada um o faz a seu modo, mas sempre da forma mais capaz de
impressioná-lo. Não é mais a embriaguez do haxixe servindo à fraude do Velho da
Montanha; é um sonho sem sono, uma alucinação sem loucura, uma visão racional e
intencional, uma criação verdadeira da inteligência e da fé. Daí em diante, ao
pregar, o jesuíta poderá dizer: É o que vimos com nossos olhos, o que ouvimos
com nossos ouvidos, o que nossas mãos tocaram, é isso o que vos anunciamos. O
jesuíta assim formado comunga com um círculo de vontades exercitadas como a sua:
desse modo, cada um dos padres é forte como a sociedade, e a sociedade é mais
forte que o mundo.
el
f
Sabemos que uma vida sóbria, moderadamente laboriosa e
perfeitamente regular geralmente prolonga a existência. Mas é pouco, a nosso
ver, a prolongação da velhice; temos o direito de pedir à ciência que
professamos outros privilégios e outros segredos.
Ser por muito tempo jovem, ou mesmo voltar a sê-lo, eis o que
pareceria, com razão, desejável e precioso para a maioria dos homens. É
possível? É o que vamos examinar.
O famoso conde de Saint-Germain morreu, não duvidamos disso;
mas nunca o viram envelhecer. Aparentava sempre quarenta anos, e no auge de sua
celebridade afirmava ter mais de oitenta.
Ninon de l’Enclos, tendo atingido uma idade avançada, era ainda
uma mulher jovem, bela e sedutora. Morreu sem ter envelhecido.
Desbarrolles, o célebre quiromante, há muito tempo é para todo
o mundo um homem de trinta e cinco anos. Sua certidão de nascimento diria outra
coisa, se ousasse mostrar-se; mas ninguém acreditaria.
Cagliostro sempre foi visto com a mesma idade, e não apenas
pretendia possuir um elixir que devolvia aos idosos, por um instante, todo o
vigor da juventude, como também gabava-se de operar a regeneração física por
meios que detalhamos e analisamos em nossa História da Magia.
Cagliostro e o conde de Saint-Germain atribuíam a conservação
de sua juventude à existência e ao uso da medicina universal, inutilmente
procurada por tantos sopradores e alquimistas.
Um iniciado do século XVI, o bom e sábio Guilherme Postel, não
afirmava possuir o grande arcano da filosofia hermética; e no entanto, após o
terem visto velho e alquebrado, viram-no novamente com uma tez vermelha e sem
rugas, barba e cabelos negros, corpo ágil e vigoroso. Seus inimigos pretenderam
que ele se maquiava e que tingia os cabelos; pois os zombeteiros e os falsos
sábios necessitam de uma explicação qualquer para fenômenos que não
compreendem.
O grande meio mágico para conservar a juventude do corpo é
impedir a alma de envelhecer, conservando-lhe preciosamente o frescor original
de sentimentos e pensamentos que o mundo corrompido denomina ilusões, e a que
chamaremos miragens primitivas da verdade eterna.
Acreditar na felicidade da terra, na amizade, no amor, numa
Providência materna que conta todos os nossos passos e recompensará todas as
nossas lágrimas é ser perfeitamente ingênuo, dirá o mundo corrompido; e não vê
que o ingênuo é ele, que se acredita forte privando-se de todas as delícias da
alma.
Acreditar no bem da ordem moral é possuir o bem: e é por isso
que o Salvador do mundo prometia o reino do céu aos que se tornassem semelhantes
às criancinhas. O que é a infância? É a idade da fé. A criança ainda nada sabe
da vida; desse modo, resplandece de imortalidade confiante. Como poderia duvidar
da dedicação, da ternura, da amizade, do amor, da Providência, quando está nos
braços de sua mãe?
Fazei-vos crianças de coração e permanecereis jovens de
corpo.
As realidades de Deus e da natureza superam infinitamente em
beleza e bondade toda a imaginação dos homens. Assim, os empedernidos são
pessoas que nunca souberam ser felizes; e os desiludidos provam, por seus
dissabores, que beberam apenas em fontes lamacentas. Para gozar os prazeres,
mesmo sensuais, da vida, é preciso ter o sentido moral; e os que caluniam a
existência certamente deles abusaram.
A alta magia, como provamos, reconduz o homem às leis da mais
pura moral. Vel sanctum invenit, vel sanctum facit, disse um adepto; pois
ela nos faz compreender que, para ser feliz, mesmo neste mundo, é preciso ser
santo.
Ser santo! é fácil dizer; mas como dar-se a fé, quando não se
acredita mais? Como reencontrar o gosto da virtude num coração tornado insípido
pelo vício?
Trata-se aqui de recorrer aos quatro verbos da ciência: saber,
ousar, querer e calar-se.
É preciso impor silêncio aos dissabores, estudar o dever e
começar por praticá-lo como se o amasse.
Vós sois incrédulo, por exemplo, e gostaríeis de tornar-vos
cristão.
Fazei os exercícios de um cristão. Orai regularmente,
servindo-vos das fórmulas cristãs; aproximai-vos dos sacramentos supondo a fé, e
a fé virá. Aí está o segredo dos jesuítas, contido nos exercícios espirituais de
Santo Inácio.
Por exercícios análogos, um tolo, se o quisesse com
perseverança, tornar-se-ia um homem inteligente.
Mudando-se os hábitos da alma, mudam-se certamente os do corpo:
já o dissemos e explicamos como.
O que contribui, sobretudo, para envelhecer-nos tornando-nos
feios são os pensamentos rancorosos e amargos, os julgamentos desfavoráveis que
fazemos dos outros, nossas raivas por orgulho ferido e paixões malsatisfeitas.
Uma filosofia benevolente e doce evitar-nos-ia todos esses males.
Se fechássemos os olhos aos defeitos do próximo, levando em
conta apenas suas boas qualidades, encontraríamos o bem e a benevolência em toda
a parte. O homem mais perverso tem seu lado bom e abranda-se quando se sabe
abordá-lo. Se nada tivésseis em comum com os vícios dos homens, nem mesmo os
perceberíeis. A amizade e as dedicações que ela inspira encontram-se até nas
penitenciárias e nas prisões de forçados. O horrível Lacenaire devolvia
fielmente o dinheiro que lhe haviam emprestado, e várias vezes teve atos de
generosidade e beneficência. Não tenho dúvidas de que na vida criminosa de
Cartouche e Mandrin tenha havido lances de virtude capazes de tirar lágrimas dos
olhos. Nunca houve ninguém totalmente mau nem totalmente bom. "Ninguém é bom, a
não ser Deus", disse o melhor dos mestres.
O que tomamos em nós por zelo da virtude é freqüentemente
apenas um secreto amor-próprio dominador, um ciúme dissimulado e um instinto
orgulhoso de contradição. "Quando vemos desordens manifestas e pecadores
escandalosos", dizem os autores da teologia mística, "cremos que Deus os submete
a maiores provas do que nós, que certamente, ou pelo menos muito provavelmente,
não as merecemos, e que faríamos bem pior em seu lugar."
A paz! a paz! Tal é o bem supremo da alma, e foi para nos dar
esse bem que Cristo veio ao mundo.
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que desejam
o bem!, clamavam os espíritos do céu quando o Salvador acabava de nascer.
Os antigos pais do cristianismo contavam um oitavo pecado
capital: a tristeza.
De fato, o próprio arrependimento para o verdadeiro cristão não
é uma tristeza, é um consolo, uma alegria e um triunfo. "Queria o mal e não o
quero mais, estava morto e estou vivo. O pai do filho pródigo matou o novilho
gordo porque seu filho voltou, que pode fazer o filho pródigo? Chorar, um pouco
de confusão, mas sobretudo de alegria!
Existe apenas uma coisa triste no mundo, é a loucura e o
pecado. Visto que estamos livres, riamos e gritemos de alegria, pois estamos
salvos e todos os mortos que nos amam regozijam-se no céu!
Todos trazemos em nós um princípio de morte e um princípio de
imortalidade. A morte é a besta, e a besta sempre produz a tolice. Deus não ama
os tolos, pois seu espírito divino denomina-se espírito de inteligência. A
tolice expia pela dor e escravidão. O bastão é feito para as bestas.
Um sofrimento é sempre uma advertência, tanto pior para o que
não sabe compreender. Quando a natureza puxa a corda é porque estamos andando de
lado, quando bate é porque o perigo urge. Ai, então, de quem não reflete!
Quando estamos maduros para a morte, deixamos a vida sem pesar
e nada nos faria retornar; mas quando a morte é prematura a alma lamenta a perda
da vida, e um taumaturgo hábil poderia chamá-la de volta ao corpo. Os livros
sagrados indicam-nos o procedimento que se deve, então, adotar. O profeta Elias
e o apóstolo São Paulo empregaram-nos com sucesso. Trata-se de magnetizar o
defunto colocando os pés sobre seus pés, as mãos sobre suas mãos, a boca
sobre sua boca, depois reunir toda a vontade e chamar a si longamente a alma
evadida com todas as benevolências e carinhos mentais de que se é capaz. Se o
operador inspira à alma defunta muita afeição, ou um grande respeito, se no
pensamento que lhe comunica magneticamente o taumaturgo pode persuadi-la de que
a vida lhe é ainda necessária e que dias felizes lhe estão ainda prometidos aqui
embaixo, ela certamente retomará, e para os homens de ciência vulgar a morte
aparente terá sido apenas uma letargia.
Foi após uma letargia semelhante que Guilherme Postel, chamado
de volta à vida pelos cuidados da mãe Joana, reapareceu com uma juventude nova e
passou a chamar-se Postel, o Ressuscitado, Postellus restitutus.
No ano de 1799, havia no subúrbio de Santo Antônio, em Paris,
um ferrador que se fazia passar por adepto da ciência hermética, chamava-se
Leriche e passava por ter operado, pela medicina universal, curas milagrosas e
até mesmo ressurreições. Uma dançarina da ópera, que acreditava nele, um dia foi
procurá-lo em lágrimas e disse-lhe que seu amante morrera. O senhor Leriche
acompanhou-a à casa mortuária. Quando entrava, uma pessoa que saía disse-lhe: "É
inútil o senhor subir, ele morreu há seis horas." "Não importa", disse o
ferrador, "já que eu vim, vou vê-lo." Subiu, encontrou um cadáver com o corpo
todo gelado, exceto na cavidade do estômago, onde ele acreditou sentir ainda um
pouco de calor. Mandou acender um grande fogo, operou fricções em todo o corpo
com toalhas quentes, esfregou-o com medicina universal diluída em álcool (sua
pretensa medicina universal devia ser um pó mercurial análogo ao quermes das
farmácias), enquanto isso a amante do morto chorava e chamava-o à vida com as
mais ternas palavras. Após uma hora e meia de semelhantes cuidados, Leriche pôs
um espelho diante do rosto do paciente e achou-o levemente embaçado. Os cuidados
foram redobrados e logo houve um sinal de vida mais acentuado; colocaram-no,
então, num leito bem aquecido e poucas horas depois ele retomara inteiramente à
vida. Esse ressuscitado chamava-se Candy, viveu, desde então, sem nunca adoecer.
Em 1845, vivia ainda e morava na praça Chevalier-du-Guet, n° 6. Contava sua ressurreição a quem quisesse ouvir, e
provocava o riso dos médicos e dos membros do conselho profissional de seu
bairro. O bom homem consolava-se à maneira de Galileu e respondia-lhes: "Oh!
riam o quanto quiserem. Tudo o que sei é que o médico-legista tinha vindo, que a
inumação estava permitida, que dezoito horas mais tarde iam me enterrar e que
aqui estou."
ome, extingue-se para sempre na morte!
Entristecemo-nos com freqüência ao pensar que a mais bela vida
deve terminar, e a aproximação deste terrível desconhecido a que se denomina
morte faz com que nos enfastiemos com todas as alegrias da existência.
Por que nascer, se se deve viver tão pouco? Por que educar com
tantos cuidados crianças que morrerão? Eis o que pergunta a ignorância humana em
suas mais freqüentes e mais tristes dúvidas.
Eis também o que vagamente se pode perguntar o embrião humano
ao aproximar-se o nascimento que vai lançá-lo num mundo desconhecido,
despojando-o de seu invólucro protetor. Estudemos o mistério do nascimento e
teremos a chave do grande arcano da morte.
Lançado pelas leis da natureza no ventre de uma mulher, o
espírito encarnado acorda aí lentamente, e com esforço cria em si órgãos
indispensáveis mais tarde, mas que, à medida que crescem, aumentam seu mal-estar
na situação presente. O tempo mais feliz da vida do embrião é aquele em que, sob
a simples forma de uma crisálida, estende à sua volta a membrana que lhe serve
de abrigo e que nada com ele num fluido nutriente e conservador. Ele é, então,
livre e impassível, vive da vida universal e recebe o cunho das lembranças da
natureza que determinarão, mais tarde, a configuração de seu corpo e a forma dos
traços de seu rosto. Essa idade feliz poderia chamar-se a infância do
embrião.
A seguir vem a adolescência, a forma humana torna-se distinta e
o sexo determina-se, um movimento opera-se no ovo materno semelhante aos vagos
devaneios da idade que sucede à infância. A placenta, que é o corpo externo e
real do feto, sente germinar em si algo de desconhecido que já tende a
escapar-se, rompendo-a. A criança, então, entra mais distintamente na vida dos
sonhos, seu cérebro, invertido como um espelho de sua mãe, reproduz com tanta
força as imaginações desta, que comunica sua forma aos próprios membros. Sua
mãe, então, é para ele o que Deus é para nós, é uma providência desconhecida,
invisível, a que ele aspira a ponto de identificar-se em tudo com o que ela
admira. Está preso a ela, vive através dela e não a vê, nem mesmo pode
compreendê-la, e se pudesse filosofar talvez negasse a existência pessoal e a
inteligência dessa mãe que para ele ainda é apenas uma prisão fatal e um
aparelho conservador. Pouco a pouco, no entanto, essa sujeição incomoda-o,
agita-se, atormenta-se, sofre, sente que sua vida vai terminar. Chega uma hora
de angústia e convulsão, seus liames desprendem-se, sente que vai cair no abismo
do desconhecido. Está feito, ele cai, uma sensação dolorosa oprime-o, um frio
estranho invade-o, solta um último suspiro que se transforma num primeiro grito;
morreu para a vida embrionária, nasceu para a vida humana!
Na vida embrionária, parecia-lhe que a placenta era seu corpo,
e de fato era seu corpo especial embrionário, corpo inútil para uma outra vida e
que deve ser rejeitado como uma imundície no instante do nascimento.
Nosso corpo na vida humana é como um segundo invólucro inútil
para a terceira vida e é por isso que o rejeitamos no instante de nosso segundo
nascimento.
A vida humana comparada à vida celeste é um verdadeiro
embrionato. Quando as más paixões nos matam, a natureza aborta e nascemos antes
do tempo para a eternidade, o que nos expõe à dissolução terrível a que São João
chama segunda morte.
Segundo a tradição constante dos extáticos, os abortos da vida
humana permanecem nadando na atmosfera terrestre que eles não podem ultrapassar
e que aos poucos os absorve e os afoga. Têm a forma humana, mas sempre
imperfeita e truncada: a um falta a mão, a outro um braço, este já tem só o
tronco, este último é uma cabeça pálida que rola. O que os impediu de subirem ao
céu foi um ferimento recebido durante a vida humana, ferimento moral que causou
uma disformidade física e, por esse ferimento, pouco a pouco toda sua existência
se vai.
Logo, sua alma imortal ficará nua e, para esconder sua vergonha
criando a qualquer preço um novo véu, será obrigada a arrastar-se nas trevas
exteriores e a atravessar lentamente o mar morto, isto é, as águas adormecidas
do antigo caos.
Essas almas feridas são as larvas do segundo embrionato,
alimentam seu corpo aéreo com o vapor do sangue propagado e temem a ponta das
espadas. Freqüentemente ligam-se aos homens viciados e vivem de sua vida como o
embrião vive no seio da mãe; podem, então, tomar as mais horríveis formas para
representar os desejos desenfreados dos que as alimentam, e são elas que
aparecem sob a forma de demônios aos miseráveis operadores das obras sem nome da
magia negra.
Essas larvas temem a luz, sobretudo a luz dos espíritos. Um
clarão de inteligência basta para fulminá-las e precipitá-las nesse mar morto
que não se deve confundir com o lago Asfaltite, na Palestina. Tudo o que aqui
revelamos pertence à tradição hipotética dos videntes e só pode ser afirmado
diante da ciência em nome dessa filosofia excepcional que Paracelso chamava a
filosofia da sagacidade, philosop
O grande arcano, isto é, o segredo indizível inexplicável, é a
ciência absoluta do bem e do mal.
"Quando tiverdes comido o fruto desta árvore, sereis como
deuses", diz a serpente.
"Se comerdes, morrereis", responde a sabedoria divina.
Assim, o bem e o mal frutificam numa mesma árvore e brotam de
uma mesma raiz.
O bem personificado é Deus.
O mal personificado é o diabo.
Saber o segredo ou a ciência de Deus é ser Deus.
Saber o segredo ou a ciência do diabo é ser o diabo.
Querer ser ao mesmo tempo Deus e diabo é absorver em si a
antinomia mais absoluta, as duas forças contrárias mais tensas; é querer abrigar
um antagonismo infinito.
É beber um veneno que apagaria os sóis e que consumiria
mundos.
É vestir a túnica devorante de Dejanira.
É votar-se à mais pronta e mais terrível de todas as
mortes.
Ai daquele que quer saber demais! Pois se a ciência excessiva e
temerária não o matar o tornará louco!
Comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal é associar o
mal ao bem e assimilá-los um ao outro.
É cobrir com a máscara de Tífon o rosto irradiante de
Osíris.
É erguer o véu sagrado de Ísis, é profanar o santuário.
O temerário que ousa olhar o sol sem sombra torna-se cego e,
então, para ele o sol é negro!
É proibido contarmos mais, terminaremos nossa revelação pela
figura de três pentáculos.
Essas três estrelas dizem o bastante, pode-se compará-las
àquelas que desenhamos no início de nossa história da magia, e reunindo as
quatro será possível chegar a entrever o grande arcano dos arcanos.
Primeiro Pantáculo, a estrela branca
A estrela dos Três Magos
Segundo Pantáculo, a estrela negra
A má estrela
Terceiro Pentáculo, a estrela vermelha
Pentagrama do divino Paracleto
Agora, para completar nossa obra, resta-nos dar a grande chave
de Guilherme Postel.
Essa chave é a do tarô. Vêem-se aí os quatro naipes, paus,
copas, espada, ouros ou círculo, que correspondem aos quatro pontos cardeais do
céu e aos quatro animais ou signos simbólicos, os números e as letras dispostos
em círculo, depois os sete signos planetários com a indicação de sua tríplice
repetição expressa nas três cores, para significar o mundo natural, o mundo
humano e o mundo divino, cujos emblemas hieroglíficos compõem os vinte e um
grandes trunfos de nosso jogo atual de tarô.
No centro do anel, vê-se o duplo triângulo formando a estrela
ou selo de Salomão, é o ternário religioso e metafísico análogo ao ternário
natural da geração universal na substância equilibrada.
c
s
t
n h v k t n h k t
a
h
,
n h v k t s n t h u
s u t h t h u s u t h t h
Em volta do triângulo está a cruz que divide o círculo em
quatro partes iguais, assim os símbolos da religião reúnem-se às linhas da
geometria, a fé completa a ciência e a ciência dá a razão da fé.
Com o auxílio dessa chave pode-se compreender o simbolismo
universal do antigo mundo e comprovar suas surpreendentes analogias com nossos
dogmas. Reconhecer-se-á assim que a revelação divina é permanente na natureza e
na humanidade; sentir-se-á que o cristianismo não trouxe senão a luz e o calor
ao templo universal ao fazer descer nele o espírito de caridade que é a vida do
próprio Deus.
A Chave do Grande Arcano
hia sagax.
Graças vos sejam dadas, meu Deus, porque vós me chamasses a
essa admirável luz. Sois a inteligência suprema e a vida absoluta desses números
e dessas forças que vos obedecem para povoar o infinito com uma criação
inesgotável. As matemáticas vos provam, as harmonias vos cantam, as formas
passam e vos adoram!
Abraão conheceu-vos, Hermes adivinhou-vos, Pitágoras calculou
vossos movimentos, Platão aspirava a vós em tolos os sonhos de seu gênio; mas um
único iniciador, um único sábio vos revelou aos filhos da terra, um único pôde
dizer de vós: Meu pai e eu somos apenas um; glória seja, pois, para ele, pois
que toda sua glória é para vós!
Pai, vós o sabeis, aquele que escreve estas linhas muito lutou
e sofreu; suportou a pobreza, a calúnia, a proscrição odiosa, a prisão, o
abandono dos que amava, e, no entanto, nunca se julgou infeliz, porque
restava-lhe por consolo a verdade e a justiça!
Vós sois o único santo, Deus dos corações verdadeiros e das
almas justas, e sabeis se algum dia acreditei estar puro diante de vós; fui como
todos os homens o joguete das paixões humanas, depois venci-as, ou antes,
venceste-as em mim, e destes-me, para que aí repousasse, a paz profunda dos que
buscam e ambicionam a vós somente.
Amo a humanidade porque os homens, enquanto não são insensatos,
nunca são maus a não ser por erro ou fraqueza. Amam naturalmente o bem e é por
esse amor, que lhes destes como um sustentáculo em meio a suas provações, que
devem ser reconduzidos cedo ou tarde ao culto da justiça pelo amor da
verdade.
Que meus livros vão agora onde Vossa Providência os enviar. Se
contiverem as palavras de vossa sabedoria, serão mais fortes que o esquecimento,
se ao contrário contiverem apenas erros, sei ao menos que meu amor pela justiça
e pela verdade lhes sobreviverá, e que assim a imortalidade não pode deixar de
recolher as aspirações e os votos de minha alma que criastes imortal!
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