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Demonologia é o estudo sistemático dos demônios. Quando envolve os estudo de textos bíblicos, é considerada um ramo da Teologia. Por geralmente se referir aos demônios descritos no Cristianismo, pode ser considerada um estudo de parte da hierarquia bíblica. Também não está diretamente relacionada ao culto aos demônios.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

POSSESSÃO DEMONÍACA NA BÍBLIA

O QUE SE DEVE ENTENDER POR POSSESSÃO DEMONÍACA?
 

 De fato, o motivo principal de considerar o demônio como a força que realiza "possessões" em certas pessoas, são as descrições bíblicas. Foi a Bílblia a causa do erro da "possessão demoníaca", principalmente na Europa ( a história da Igreja tem sido muito européia) e da Europa, o erro se estendeu a todo o mundo.
      Mas, repetimos, temos que ter presente, nós, cientistas do século XX, , que a Bíblia não é um livro de ciência. Simplesmente, não há por que invocar a Bíblia na interpretação de fatos observáveis do nosso mundo que, como tais, pertencem à ciência.
      Chama muito a atenção, que em todo o Antigo Testamento, sendo tão comprido e relacionado com tantos séculos, não há nenhum caso de "possessão demoníaca" ( ao menos claro; existe o caso de Sara, que alguns interpretam, não claramente, como de "possessão demoníaca"). E no Novo Testamento, por ser tão curto, correspondendo a tão poucos anos, existem descrições de "possessões demoníacas". Além dos casos concretos citados, como o endemoninhado de Gerasa, o endemoninhado lunático, o endemoninhado mudo, o endemoninhado epiléptico, etc; há frases de ordem geral como: "deu poder aos seus discípulos de expulsar os demônios", e todos os que tinham possessos levavam lá para que Cristo os curasse", etc.
      No Antigo Testamento não há nenhum. No Novo Testamento são inúmeros. Por que essa diferença? Alguns teólogos, sem fundamento, manifestamente para salvar a situação, explicam: "É que na época em que Cristo veio combatê-los, Deus concedeu mais liberdade aos demônios..." de onde se tira essa afirmação?...é pura invencão.
     Sabemos pela história o porque desta diferença. Foi precisamente nesta época em que a Cabala Judáica fortaleceu muito o influxo das idéias demoníacas dos povos mesopotâmicos, vizinhos de israel, porque a Cabala trouxe dos gregos e romanos o erro de atribuir ao daimos, daemonium, demônio, certos tipos de doenças. Os gregos e romanos atribuiam certas doenças e fenômenos aos demônios, aos demíurgos, isto é, às forças semi-divinizadas da natureza (na Palestina falava-se também a Koiné, o grego comum, e era uma colônia romana).
      Por influxo da Cabala, os judeus começaram a chamar endemoninhadas às pessoas que apresentavam aquelas doenças ou fenômenos. Confundiram então e até hoje, os demônios dos gregos, romanos e dos países vizinhos com os anjos rebeldes da Bíblia.
     ( Para não entrar em discussão de menor interesse, estou dando por suposto que os judeus identificavam o demônio com os anjos rebeldes, como fazemos hoje, os cristãos.)
      Na realidade, não fica nada claro que os demônios dos judeus fossem precisamente os anjos rebeldes. É mais provável, que na mentalidade popular judáica e inclusive na mentalidade dos rabinos da época, os demônios correspondiam ao conceito greco-romano e mesopotâmico. Considerava a cultura (ou incultura) da época, que havia no ar uma série de entidades, demiurgos, semideuses, bons ou maus. Esses seriam os demônios para os judeus e não precisamente os anjos rebeldes.)
     Cristo, os apóstolos e a Bíblia empregaram a terminologia da época. Lógico. Que outra terminologia empregariam?? Nem Cristo, nem a Bíblia e nem os apóstolos deveriam se meter e nem se meteram em ciência. Não correspondia nem à Cristo, nem aos apóstolos, nem à Bíblia explicar e analisar os fatos do nosso mundo, o que corresponde à ciência.
No Antigo Testamento
      Uma palavra com referência à pouco provável descrição de "possessão demoníaca" no Antigo Testamento. No livro de Tobias se descreve que Sara ("possuída pelo demônio"?) teria sido a causa da morte de nove maridos. E o anjo, que acompanhou Tobias, curou a sua mãe, Sara. De possessão demoníaca?
     Todo o livro de Tobias é metafórico. Não se trata de um episódio histórico. No máximo, teria uma mínima base histórica, como inspiração para o escritor bíblicofazer uma ampla e linda metáfora poética.
      Nesse livro, é narrada a morte dos maridos, ou a doença de Sara, dramatizadas como devidas ao demônio (não precisamente "possessão", ou não claramente), da mesma maneira que todos os fenômenos bons se dramatizam também como devidos à força divina, ou dos anjos. O anjo teria expulsado a Asmodeu e o teria confinado no deserto do alto Egito onde o teria deixado acorrentado para sempre. Acorrentado até o fim do mundo pelo Arcanjo Rafael.
     Mas como dizíamos, não se trata de um livro histórico. É um livro de valor moral. Foi escrito depois de um exílio do povo judeu. Durante o exílio, entraram os judeus em contato com civilizações pagãs, que atribuiam aos demiurgos, deuses ou demônios deles, muitos dos fenômenos da natureza, doenças, etc.
      Influenciado por esta civilização, o povo judeu começou a ter medo de demônios, ou espécie de deuses menores, separando-se um pouco da confiante dependência da Providência do único Deus. Por isso veioo livro de Tobias, para frisar enfaticamente que por cima de todos os demônios e ídolos pagãos, estava o poder de Deus. O livro de Tobias, citando as intervenções demoníacas, não as afirma; citando os ídolos, não confirma seu poder. E, diríamos, um livro de "Utilidade Pública", para alentar aos judeus assustados com as teorias e práticas demonológicas, mágicas e idolásticas que tinham obsevado nos povos pagãos circunvizinhos.
      Não se trata, repetimos, de um livro histórico, mas de um livro moral e metafórico.
No Novo Testamento
      Assim como Jesus esclareceu os discípulos sobre a causa da cegueira do cego de nascença, (os discípulos perguntaram ao Mestre, se o cego ou os pais dele haviam pecado) dissipando o erro segundo o qual toda doença era consequência pessoal ou da família do enfermo (Jo 9, 1-3), ele também não esclareceria se os endemoninhados fossem doentes psíquicos?
      Cristo não ensinava ciência, ensinava religião.. No caso do cego de nascença, tratava-se de uma doença. Cristo não entrou no campo científico determinando se tal cegueira tinha como causa a atrofia, uma lesão, um corte ou escasso desenvolvimento do nervo óptico ou a ausência do líquido umoral no cristalino, desprendimento ou aus~encia da retina, lesão na circunvolução cerebral correspondente à visão, ou qualquer outra causa ou força observável ou deduzível, deste ou do outro mundo. Cristo não diagnosticou nem a doença nem sua causa.
     Mas havia, isto sim, um erro doutrinal próprio da época. "As doenças e as suas causas seriam enviadas por Deus como castigo dos pecados. Mesmo sendo causa natural, a Divina Providência se serviria dessa força natural para castigar". Cristo corrige esse erro doutrinal. Não é um castigo e também não é uma providência especial.
      A mesma distinção deve ser feita com relação à "possessão demoníaca". Nós nem sequer entramos em discussão se poderia tratar-se de uma Providência especial de Deus (ou até do demônio).
     O que afirmamos é que a causa, a força que ocasionou as chamadas possessões, são forças naturais, doenças, desequilíbrios, faculdades parapsicológicas. A força não é demoníaca, e portanto não é o demônio que atua.
     A interpretação dos fenômenos que se dão no nosso mundo, a localização das forças que atuam neles é objeto da ciência. Cristo não entrava neste campo. Não correspondia a Cristo diagnosticar a causa daqueles fenômenos. Nisso usava, tinha que usar, a ciência (ou a ignorância) do seu tempo.
"Aesma Deva", o "deus
da Fúria" na religião de
zoroastro ou pasismu.
Transformado pelos judeus
em "Asmodeu, o mais
perigoso dos demônios"
(Tb 3,8; Cf 2; Sm 24,16;
Sb 18,25; Ap 9,11).
  Animismo. Chama-se assim a crença na maioria dos povos primitivos, de que todo o mundo material estava habitado e controlado por daímones (potestades, deuses subalternos, gênios, etc - são inumeráveis nomes).
    É fácil analisar esta mentalidade, porque se conserva intacta em vários povos da África e da Austrália. No Brasil é a mentalidade mais difundida: os orixás e os exus habitam e conduzem os ventos, habitam e fazem as correntes e as cascatas, habitam e fazem crescer as árvores... E as doenças são "encostos" desses espíritos...
    O "Vudu" viajou do Daomé, seu país de origem, com os escravos africanos no século XVII, tendo êxito principalmente no Haiti. No Brasil é conhecido pelo nome de Candomblé. O raio é Heouvé; a varíola, Sagpata... Os iniciados passam a conhecer os nomes dos exús-doenças, e 120 palavras mágicas secretas.
    O "egungin", ritual da morte, é proibido na maioria dos candomblés brasileiros por desconhecimento dos nomes secretos, que só o Candomblé Gegê conservaria. Não obstante, com os nomes primitivos ou com outros inventados aqui, é realizado abertamente na Bahia, na Paraíba, no Maranhão..., quase por toda parte.
   Entre os assírios, babilônicos e caldeus. Data do ano 2.500 a.C. uma tabuleta assíria com os seguintes dizeres: "Doenças do cérebro, dos dentes, do coração, dores de cabeça, doenças dos olhos; febre, veneno; espíritos do mal, demônios do mal, espectros do mal, diabo do mal, deus do mal, amigos do mal; bruxo, demônio, vampiro, espírito ladrão; fantasma da noite, aparição noturna, escrava dos espectros; pestilência maligna, febre perniciosa, doenças funestas, angústia; feitiçaria ou qualquer mal, dor de cabeça, tremores; fascinação maligna, bruxaria, feitiçaria, encantamento e todo mal: sai da casa, vai para fora, não entra no homem. Filho deste deus, parte daqui". Uma outra tabuleta contém um exorcismo muito parecido.
    E há outra tabuleta, a de Babilônia, que pretendia também expulsar toda classe de espíritos ou divindades da natureza, demônios,  provocadores de toda classe de doenças. Entre os babilônios, o deus Namtar, príncipe das trevas, se comprazia em atormentar os míseros mortais: era representado agarrando um homem pelos cabelos, e com a espada desembainhada para feri-lo com todo tipo de doenças e dores. Etemmu era o nome dado aos espíritos dos mortos que não receberam os sacrifícios rituais prescritos; vagavam pela terra assombrando casas e "encostando" ou "incorporando" nas pessoas que assim caíam em transe e  eram atormentadas de mil maneiras. Lamastu era o deus da febre puerperal e das doenças de crianças.
    Lilitu, deusa que causava os pesadelos noturnos, entrou na mitologia judaica antiga modificada em Lilit. Desta divindade ou demônio feminino, na Bíblia diz metaforicamente Isaías que descansa nas ruínas do Edom (Is 34,4). Era a deusa ou demônio da tormenta para os acádios, identificada com a antiga Mililla (= "senhora tormenta"). Terá grande destaque na demonologia pós-bíblica tanto entre os judeus como entre os cristãos. Goethe aludirá a ela no seu Fausto.
Pazuzu é o deus principal das chamadas "possessões demoníacas". Representavam-no com corpo mais ou menos humano, rosto de bode, pés em forma de garras de ave de rapina e poderosas asas. Pazuzu é o demônio que escolheu W. P. Blatty para causar a possessão no seu filme e livro " O Exorcista" .
    Cada doença, um demônio localizado. Mesmo moléstias tão comuns como a enxaqueca ou torcicolo. Quando alguém sofre das têmporas e os músculos de seu pescoço estão doloridos, está lá a ação de um demônio. Assim o demônio Alal agia sobre o peito. O rei assírio que depois de morto foi divinizado, o demônio Adad, agia sobre o pescoço. Enquanto que Gigin atormentava nos intestinos, Idpa na cabeça, reservando-se a fronte para Utug. As dores nas costas eram provocadas por Ishtar. Etc.
   A medicina greco-romana. A demonologia da antiga Mesopotâmia, descrita na literatura sumérica, penetrou através dos caldeus na cultura helenística. Na mais antiga literatura dos gregos, na Ilíada e na Odisséia, atribuídas a Homero (Heródoto diz que viveu pelo ano 850 a.C.), a loucura e qualquer comportamento estranho eram conseqüência da interferência destes deuses, irritados, na mente do homem. Homero teve grande influência nos filósofos, nos eruditos, nos escritores e até na educação em todo o mundo helenístico.
    Hipócrates (460-367 a.C.), pai da Medicina, e seus seguidores lutaram por erradicar a tradição espírita ou demonológica na explicação das doenças. Era a ciência que sustentava, já então,  que todas as doenças se devem a causas naturais. Abertamente negaram  a influência de deuses, espíritos ou demônios inclusive na epilepsia, considerada por excelência   "a doença sagrada"!
    O prestigiado e influente filósofo Platão (347-327 a.C.) pouco depois com razão matiza o errado exclusivismo de Hipócrates, exclusivamente materialista. Platão defende acertadamente uma terapia psicossomática. Corpo e alma .
    Mas Platão volta em grande parte à mentalidade mágica, ao erro de que certos tipos de conduta estranha eram efeito da intervenção de daímones. Por exemplo o transe dos adivinhos seria causado pelo deus ou daímon Apolo, os poetas estariam inspirados pelas daímones Musas, e a paixão dos enamorados era incutida pelos daímones Eros e Afrodite. Compreende-se que o povo estendesse estas explicações de delírios, fúria, transe, inspiração, paixão, a todos os tipos de loucura e que com estes exemplos se estendesse também a explicação a todo tipo de doenças internas e por isso mesmo "misteriosas".
    Até o próprio Galeno, o médico mais destacado da antigüidade greco-romana, no século II d. C., ficara desconcertado e considerava  obra de algum deus ou daímon os procedimentos psicológicos, que ele não conhecia, para enlouquecer uma pessoa ou fazê-la emudecer perante um tribunal (hoje falaríamos em  lavagem cerebral).
    Como é sabido, os romanos adotaram a mentalidade grega, simplesmente trocando os nomes dos deuses ou daímones. Embora houvesse médicos, como a família de médicos chamados Asclepíades e os seguidores de Areteu de Capadócia, o povo e muitos médicos romanos, talvez a maioria, continuaram com a mentalidade mágica e demonológica. Ao daímon da Febre se dedicou um templo próprio em Roma.
    Chegaram ao extremo da mentalidade mágica, supersticiosa: Galeno, médico grego (nascido em Pérgamo, Ásia Menor) conhecido em todo o império romano do século II (130-200 d.C.), foi acusado de praticar a magia (bruxaria), pois só assim se compreenderia a precisão com que predizia o curso de uma doença interna: teria de ser porque conhecia os demônios que as causavam!
   Nada no Antigo Testamento. No Antigo Testamento não há nenhum caso de possessão demoníaca. Eram claras e severas as admoestações contra a magia. De maneira nenhuma poder-se-iam aceitar na Bíblia vetero-testamentária possessões, encostos e expulsões.
   Depois, a interpretação demonológica foi entrando aos poucos. Esta mentalidade mágica chegou mesmo a grassar entre os judeus do período inter-testamentário e nos judeus e cristãos do primeiro século após Cristo.
   A "possessão demoníaca" no NT. Nos Evangelhos fala-se de possessões ou expulsões demoníacas 16 vezes e 3 nos Atos dos Apóstolos. Não considero como diferentes as diversas narrações de um mesmo fato.
    Considero, porém, diferentes as frases gerais, mesmo que sejam bastante parecidas. Tais como "ao entardecer, trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele com uma palavra, expulsou os espíritos" (Mt 8,16). Ou, perante Filipe "de muitos, efetivamente, saíam os espíritos impuros dando grandes gritos" (At 8,6s). Assim até onze frases (Mt 10,18; Mc 1,34.39; 3,15; 6,7.13; 9,17; Lc 9,1; At 19,12).  
      Oito são casos concretos: a legião de demônios que foram aos porcos (Mt 8,28-34p), o demônio mudo expulso pelo poder de Beelzebul (Mt 9,32-34p), o menino que os discípulos não conseguiram curar no monte Tabor (Mt 17,14-20p), o homem violentamente agitado que na sinagoga reconheceu a Jesus como Messias (Mc 1,21-28p), a filha da siro-fenícia (Mc 7,24-30), os sete demônios expulsos de Maria Madalena (Mc 16,9p), e a jovem pitonisa que aclamava Paulo e Silas como servos do Deus Altíssimo (At 16,16-19). Consideremos inclusive aquele demônio que haveria sido expulso da casa e que chama outros sete espíritos piores (Lc 11,24-26).
Ora, o que são essas possessões? Principalmente nos dois séculos a.C. e no século I d.C., a medicina dos judeus era a de Mesopotâmia. Recebida diretamente dos povos mesopotâmicos e indiretamente através da cultura greco-romana.
    É problema cultural. Trata-se de fatos. Não de doutrina sobrenatural, inobservável, revelada. Portanto, como problema cultural, não doutrinal; como fatos, não como doutrina, devem ser estudados os "endemoninhados" no Novo Testamento. Trata-se evidentemente de interpretação de fatos. Pertence à ciência. E o conjunto dos ramos da ciência que estuda os fatos incomuns, e por isso misteriosos, chama-se Parapsicologia. Isso sim: interessa à Teologia por estar consignado na Bíblia. Mas pertence à Parapsicologia. Os teólogos aqui têm obrigação de consultar a Parapsicologia.
    A magia nunca se desprestigiou perante as multidões e sempre houve paralelamente aos médicos o recurso às fórmulas imprecatórias... Eram conceitos da magia, misturando-se com receitas, remédios e pequenas cirurgias. Não foi fácil que a medicina dos gregos, após Hipócrates, triunfasse nas áreas mais civilizadas. Nas áreas cultas da Babilônia, mesmo quando se praticava lá a mais estrita medicina hipocrática, havia também encantamentos, exorcismos e evocações.
    Havia, sem dúvida, numerosos médicos na Palestina dos tempos de Cristo, como inclusive se testemunha nos Evangelhos (Mc 5,26; Lc 8,43), e o confirmam a Mishna e o Talmude. Mas inumeráveis textos provam que, junto à Medicina, a crença em influências ocultas de demônios estava talvez tão difundida no meio judaico como no grego e oriental. A religião judaica convivia em sincretismos, destacando, porém, a idéia de que por cima de todas essas influências em que o povo acreditava, Deus pairava como Senhor Supremo.
   Diferença fundamental: Não Satã, senão os demônios. Quando se diz que Satã entrou em Judas (Lc 22,3; Jo 13,27) ou em Ananias (At 5,3) se faz referência ao pecado voluntário. E os demônios não implicam nenhum aspecto moral.
    Em contrapartida, nunca aparecem "possessões" realizadas por Satanás. As "possessões" são realizadas pelos demônios ("espíritos impuros", "espíritos da doença", e outros muitos nomes equivalentes).
Quadro de Ludovico Cigoli (1599-1613), na Galeria
Doria, Roma. REpresenta a pecadora lavando os
pés de Jesus na casa do fariseu (Lc 7,36-50). Foi
identificada com Maria Madalena, de que Jesus
teria expulsado sete demônios (Lc 8,2).
    O texto de São Paulo, uma exceção? Paulo usaria modo diferente de se expressar? Escreve: "Foi-me dado um aguilhão na carne, um anjo de Satanás, para me espancar". São Paulo diria de si mesmo que alguma doença nele foi causada por Satanás?
    --- Não. Certamente não. Contra a opinião ilícita de muitíssimos teólogos durante séculos:
    Uns poucos teólogos católicos e protestantes, entre os poucos  louvavelmente conhecedores de que a parapsicologia não admite a possessão demoníaca, pretenderam ver designado na expressão "um anjo de Satanás" não o próprio Satã, mas um demônio de alguma maneira enviado por Satã.
    --- Disquisição sem fundamento.
    A explicação real científica é até evidente:
    1.-  Em primeiro lugar, cabe perguntar se Paulo se refere de fato a uma doença e não melhor a alguma tentação moral. Se Cristo foi tentado, nada tem de estranho que também Paulo sentisse a tentação. Neste caso o texto paulino entraria plenamente na regra geral: as tentações são atribuídas a Satanás, e certas doenças aos demônios.
    2.- E confirma-se. Vejam-se (sublinho) muitas palavras nesse mesmo texto de São Paulo, que fazem referência ao plano moral (próprio de Satanás), não ao de doença especial (próprio dos daímones): "Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba foi-me dado um aguilhão na carne, um anjo de Satanás, para me espancar, a fim de que eu não me encha de soberba. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder" (2Cor 12,7-9).
    3.- E ainda cabe perguntar se Paulo não se estaria referindo a dificuldades procedentes de seus irmãos na carne, os judeus...
    4.- Todas as doenças são atribuídas a Satanás, no sentido, já estudado nos artigos sob o título "Afinal, que são os demônios?", de que Satanás é a personificação do mal: a inimizade, a dor, a tentação, o pecado, a doença.... Tal é o significado da frase de Paulo, citando os profetas Habacuc (Hab 2,3-4) e Isaías (Is 26,20): "O meu justo viverá pela fé, mas se esmorecer, nele não encontro mais nenhuma satisfação" (Hb 10,38). Não é agradável a Deus, é pecado, é Satã.
    5.- O mesmo se pode deduzir, e aplicar-se a todas as doenças, da frase com que Cristo se refere à encurvada "que Satanás prendeu há dezoito anos" (Lc 13,16).
    6.- Pedro resumiu toda a atividade de Cristo com aquelas palavras: "Passou fazendo o bem e curando a todos aqueles que haviam caído no poder do Diabo" (At 10,38). Estão sob Satanás, sob o mal.
    Os povos primitivos, como também os judeus na época de Cristo, donde passou ao Cristianismo "popular", acreditavam no erro de que demônios perversos atormentavam a humanidade.
    Todas as doenças internas (loucura, depressão, etc.) eram atribuídas aos demônios
    Que pecado? Que daímon? Os sacerdotes dos povos circunvizinhos a Israel precisavam determinar o deus (daímon, demônio) que causa cada doença. E cada demônio era atraído por cada tipo de pecado. Por isso, começavam por um interrogatório para descobrir qual o pecado que o doente cometeu. Uma vez descoberto, devia-se expulsar tal daímon ou deus inferior determinado.
    Para a mentalidade mágica, de então (e de hoje!!!), as doenças proviriam do pecado. Por efeito dessa mentalidade ambiente os primeiros cristãos identificaram absurdamente a suposta ação de Satã e a suposta ação dos demônios. Pecado e doença. E terminaram por identificar Satanás e demônio.
    E pior ainda, identificaram os daímones ou deuses inferiores com os anjos rebeldes. Mas essa interpretação que se fez comum, de considerar certos doentes possuídos por anjos rebeldes, não tem nenhuma base. Nas expressões evangélicas, a respeito de endemoninhados, a idéia de anjos rebeldes pode perfeitamente e deve ser excluída (como já vimos nos artigos: "Afinal, o quê são os demônios?).
Doenças internas. Chamavam "endemoninhados" os que estavam doentes por causas não-aparentes, internas, e como tais inobserváveis e portanto misteriosas para os conhecimentos médicos da época.
           Falo de doenças internas, não só psicológicas. A distinção que estabeleço não é entre doenças físicas e doenças psíquicas, ou entre orgânicas e funcionais, mas entre doenças com "motivo" perceptível e doenças por uma "causa" não-perceptível. A epilepsia e a loucura, por exemplo, podem ter causas orgânicas, cerebrais, mas tais lesões ou deficiências são internas, imperceptíveis. Certas paralisias, pelo contrário, podem ser psicógenas, histéricas nos seus começos, mas chegaram a provocar atrofia muscular claramente perceptível. Nestes casos, a paralisia, apesar de psicógena, não se atribuiria aos demônios. E a psicose e epilepsia, apesar de orgânicas, seriam consideradas como possessões.   
            Possessão igual a doença interna. É inegável. Era essa a crença corrente e a nomenclatura de Cristo e dos evangelistas.
            Um exemplo famoso, entre muitos. Apolônio de Tyana (4d.C.-97) era contemporâneo de Jesus. Estava um dia instruindo o povo, quando de repente é interrompido com os risos de um jovem, tão fortes e broncos, que eclipsavam a voz de Apolônio. O célebre pregador, encarando o jovem, disse: "Não és tu quem perpetra este insulto, senão o daímon que te conduz sem que tu o percebas". O historiador Filóstrato apresenta os motivos porque o jovem era considerado possesso: "E de fato o jovem estava, sem sabê-lo, preso por daímones, porque ria de coisas de que ninguém ria e logo se punha a chorar sem nenhuma razão e falava e cantava sem objetivo..."
            Isto é, a loucura, a histeria, a conduta incompreensível poderiam ser atribuídas "ao jeito desrespeitoso da juventude que o induzia a tais excessos"; ou a "que estava incorrendo na alegria de um bêbado". Afirma-o expressamente Filóstrato. Mas era considerado possesso: "Na realidade era porta-voz de um daímon".
           Como possesso foi tratado o jovem: "Quando Apolônio o fitou, o fantasma que havia nele o levou a lançar gritos de medo e de raiva, como os que emitem as pessoas que estão sendo maceradas ou despedaçadas. O daímon jurou que abandonaria o jovem e nunca mais voltaria a fazer possessão de nenhum homem. Apolônio por sua parte, enérgico, dirigiu-se a ele (...) e ordenou ao demônio que abandonasse o jovem".            
Na época intertestamentaria,
como depois no cristianismo,
popularmente caiu-se no absurdo
de considerar o(s) demônio(s)
dominador(es) do mundo.
  Se observável não é o demônio. Quando a causa é perceptível, visível, talvez até palpável, nunca nos Evangelhos o doente é considerado endemoninhado.
            Perante a lepra ou outras infeções da pele, os Evangelhos falam simplesmente de leprosos (Mt 8,1-4par; Lc 17,11-19).
            Fala-se simplesmente de cegos (Mt 9,27-31; 20,29-34; Mc 8,22-26; 10,46-53par; Jo 9,1-41): os olhos estão vazios, ou as pálpebras estão grudadas, aparece a íris sem coloração, percebe-se a infeção -tão freqüente naquela época como sabemos pelas inscrições dos templos de cura como o de Epidauro-, etc.
            Não se chama endemoninhados aos paralíticos: tinham visivelmente deformados ou atrofiados os músculos, mesmo que só fosse por estarem sempre prostrados e terem de ser transportados em macas (Mc 2,1-12; Mt 9,1-8par; Jo 5,1-16).
            Não é endemoninhado o homem que todos vêem com a mão "seca" (Mt 12,9-14par), possivelmente atrofiada, sem carne e disforme. Usa-se o mesmo termo que  se aplica à árvore seca (Mc 11,20s; Mt 21,19s) e cortada (Jo 15,6) e sem raízes (Mt 13,6).
            Não é endemoninhado o hidrópico (Lc 14,1-6), que todos vêem inchado - pela excessiva acumulação de líquido nos tecidos do corpo.
            Sabia-se de "certa mulher, que sofria de um fluxo de sangue havia doze anos" (Mt 9,20par). A sua cura por Jesus não é considerada expulsão de demônios.
            As doenças que apresentavam "causas" perceptíveis já estavam liberadas da interpretação demoníaca. Nenhuma alusão à atividade de agentes sobrenaturais nas doenças da sogra de Pedro (Mc 1,29-31), o servo do centurião (Lc 11,1-10) e o filho do oficial real (Jo 4,46.54), a filha de Jairo (Lc 8,40-42, 49-56), a filha de sírio-fenícia (Mc 7,24-30), o surdo-gago (Mc 7,32-37), Malco a quem Jesus devolveu a orelha que Pedro cortara (Lc 22,50s), etc.
            Nem são expulsões de demônios as revitalizações de mortos (Mt 8,18s,23-26par; Lc 7,11-17; Jo 11,1-44; 20,1-10) e a Ressurreição. A doença ou acidente prévio, ou a Crucificação, eram manifestos e aí estavam a rigidez e palidez como "causas" visíveis da morte. Também observável e "causa" de doenças é a febre (Mt 8,14s par; Jo 4,43-54). Não é o demônio.
            Em contraposição aos tempos antigos, nos quais o daímon da morte, o deus Zánatos, era figura muito popular, no Novo Testamento com dificuldade e só uma vez a morte poderia ser ligada a um daímon. Diz São Paulo que Cristo veio, "a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o Diabo" (Hb 2,14). É possível relacionar a frase de Paulo com a idéia da morte ser uma possessão por Zánatos?   
           --- 1.- Mas na realidade Diabo, como já vimos, nada tem a ver com demônio. Diabo é igual que Satã, a personificação do mal, da própria morte.
                2.- E seria só esta única vez. Porque a frase de Cristo "Vós sois do Diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio" (Jo 8,44), não se refere à morte individual, mas à morte de todos os homens, castigo do pecado original. E como sempre: Satã = personificação do pecado.
                3.- Tanto Cristo como Paulo visam diretamente à "morte" no espírito: o pecado e as falsas doutrinas. Sempre na ordem moral. Por isso Jesus acrescenta que o Diabo "não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas, porque digo a verdade..." (Jo 8,14).
            Um caso duvidoso? Não. Todos os casos concretos de "possessão" narrados pelos Evangelhos são doenças internas. A causa é cerebral ou psíquica, não há marcas ou deficiências externas que expliquem, para os antigos, a conduta anormal.
            A acusação de expulsar demônios pelo poder de Beelzebul surgiu após a cura de um mudo (Mt 12,22ss,par). Se uma pessoa tem a língua como a de todos os demais, por que não fala? Como poderiam os antigos diagnosticar uma lesão cerebral ou um trauma psicológico? Se não falava era porque tinha dentro um daímon mudo...
            Mateus (12,22) acrescenta que o "endemoninhado" era também cego. Se o qualificativo "endemoninhado" se referia também à cegueira e não à mudez, o doente teria os olhos perfeitos em aparência. Os Evangelhos nada dizem. Os contemporâneos entendiam. Nós temos de entendê-lo assim.
              Com bastantes pormenores apresentam os evangelhos dois casos: o "endemoninhado" de Gergesa e o do Monte Tabor.  
O endemoninhado de Gergesa
Encontrou-se o cemitério onde vivia o
"endemoniado" de Gergesa. Está na
cripta da igreja bizantina daquela cidade,
hoje Kursi.
Doença interna. O que agora mais nos interessa é frisar que o "possesso" era um louco. Doença interna: "Perguntou-lhe Jesus: 'Qual é o teu nome?' Respondeu-lhe: 'Legião é o meu nome, porque somos muitos'" (Mc 5,9).
           --- A legião romana constava de 5.200 soldados! Tantos demônios pululando no corpo de uma pessoa? Duro de aceitar... Até poderíamos humoristicamente perguntar: quantos demônios ficariam para o resto do mundo?
            Mas a resposta do louco é plenamente encaixável na típica e freqüentíssima megalomania compensadora. Para não sofrer complexo de inferioridade, muitos loucos declaram ser a reencarnação de Maria Antonieta, Napoleão, Júlio César... Ou estar possuídos pelo próprio Lúcifer. Ou nada menos que por uma legião de demônios. Ninguém mais do que eles! A família sofre, mas eles são "felizes", ao modo deles. Ou os loucos têm de ser tomados a sério; ou os "possessos" (e "reencarnados" etc.) têm de ser considerados doentes mentais.
            Provavelmente, a concretização de sua megalomania em considerar-se possuído nada menos que por uma legião de demônios lhe foi incutida pela opinião popular: quanto pior fosse uma doença, tanto mais daímones eram causadores dela. Um louco particularmente selvagem e furioso tinha de ter uma legião de demônios!
            Aliás, os gergesenos se maravilharam até o ponto em que "o pânico se apoderou deles" na intuição do poder milagroso de Jesus, capaz de, num instante, fazer que um louco passasse a poder estar -na expressão idêntica de Marcos e Lucas- "sentado, vestido e no seu juízo" (Mc 5,15; Lc 8,35). Ora, estar no seu juízo é a contraposição a estar louco. Expressamente.
            Que "causas" externas se percebem num louco? A causa é psíquica, funcional, hormonal ou cerebral. Em todo caso, meramente interna (não se via a olho nu, a anomalia ou doença, logo era um demônio). Por isso se atribuía a loucura aos demônios.
            Idêntica denominação para o louco da sinagoga de Cafarnaum (Mc 1,21-28 e Lc 4,31-37).
            Neste sentido deve-se entender a passagem com referência a João Batista. Nenhum sinal físico externo. Mas procedia de maneira estranha, excêntrica, incrível: vivia no deserto, vestia uma pele de camelo, pregava novidades e ameaças (Mt 3,1-12par), não bebia vinho, e jejuava... Foi considerado um louco. Aludindo à opinião de outros, dizia dele Jesus Cristo: "João veio: ele não bebia e não comia, e disseram: ele está possesso de um demônio" (Mt 11,18par).
            O próprio Cristo fez afirmações que pareceram mirabolantes aos judeus. Consideravam-nas próprias de um louco, e disseram: "Agora vemos que és possuído por um demônio. Abraão morreu, e também os profetas. E tu dizes que se alguém guardar a tua palavra, jamais provará a morte..." (Jo 8,52). Em outra oportunidade perguntou Jesus: "Por que procurais tirar-me a vida?" Como não entenderam, em vez de comentar que aquilo era uma loucura. respondeu o povo: "Tens um demônio! Quem procura tirar-te a vida?" (Jo 7,20).
            O demônio convertido em Apóstolo? Não devo me deter aqui -já o fiz em outras oportunidades- a expor e demonstrar a existência da HIP, Hiperestesia Indireta do Pensamento, adivinhação do pensamento das pessoas que estão presentes, o mais freqüente dos fenômenos parapsicológicos.              
            Quando Jesus, com seus discípulos, foi à terra dos gergesenos , veio-Lhe ao encontro o "endemoninhado" -ou dois- que saíra dos esconderijos sepulcrais. E o "endemoninhado" gritava: "Que temos a ver contigo, Filho de Deus?" (Mt 8,29); prostrou-se ante Cristo e gritou: "Jesus, Filho de Deus Altíssimo, conjuro-te por Deus, não me atormentes" (Mc 5,7). "Sei que es Tu, o Santo de Deus" (Lc 8,28).
            Igualmente um jovem interrompia e berrava na sinagoga de Cafarnaum. Quando Jesus enfrentou os "demônios", eles gritaram: "Jesus Nazareno, vieste para arruinar-nos? Sei quem Tu és: o Santo de Deus" (Mc 1,24 e Lc 4,34).   
            Só a interpretação por HIP -ou menos ainda, uma vez estendida a fama- encaixa em frases que recolhem outros casos iguais: "Não consentia que os demônios falassem, pois eles O conheciam" (Mc 1,34). "De um grande número também saiam demônios gritando: Tu és o Filho de Deus. Em tom ameaçador, porém, Ele os proibia de falar, pois sabiam que era o Messias" (Lc 4,40s).   
             Nos "Atos dos Apóstolos" o demônio apareceria envolvendo-se em negócios! E dedicar-se-ia insistentemente ao Apostolado! Se levarmos em conta o HIP naquela doente em estado alterado de consciência, o texto se compreende perfeitamente: "Um dia em que íamos para a oração, veio ao nosso encontro uma jovem escrava que tinha um espírito de adivinhação (no original: "espírito de Pitão"; a adivinhação era atribuída por aqueles pagãos ao daímon ou deus Pitão), ela obtinha para seus amos muito lucro, por meio de oráculos. Começou a seguir-nos, a Paulo e a nós, clamando: `Estes homens são servos do Deus Altíssimo, que vos anunciam o caminho da salvação´. Fê-lo durante vários dias. Por fim Paulo, aborrecido, voltou-se e disse ao espírito: `Eu te ordeno em nome de Jesus Cristo: sai desta mulher´. E o espírito saiu no mesmo instante. Mas os amos, vendo escaparem-se-lhes as esperanças de ganho, agarraram Paulo e Silas, arrastando-os à ágora, diante dos magistrados" (At 16,16-19).    
             Catharinet -excelente teólogo, mas plenamente desconhecedor de parapsicologia, e que por tanto tem muita autoridade na interpretação da doutrina sobrenatural, mas que nenhuma autoridade tem na interpretação de fatos "misteriosos"- pergunta: "Como poderiam aqueles neuróticos reconhecer e proclamar o Messias?". Daí, erradissimamente, deduz que é o Diabo (e ainda confundindo Diabo com daímones ou demônios!) que fala pelos "possessos".
             --- Na realidade e em primeiro lugar não corresponde ao conceito secular de Satã, Diabo, demônios... e toda essa sarta de confusões e invencionices seculares, que o próprio Diabo jure ou conjure pelo nome de Deus. Na realidade também não tem cabimento que os demônios (ou o Diabo...!) se convertam em apóstolos! O menos que se pode esperar é que não dêem testemunho da divindade de Cristo! Tudo fica plenamente compreensível, porém, como manifestação de HIP naqueles doentes: simplesmente captaram o pensamento de Jesus.
             Muitos teólogos protestantes liberais e católicos "moderninhos", influenciados pela erradíssima e secular campanha racionalista, preferem diminuir a figura de Cristo e exaltar a do demônio!! Dizem que Jesus no começo de sua vida pública ainda não sabia que era o Cristo e Filho de Deus!! Inclusive Lhe teria sempre acompanhado a dúvida!! Esses teólogos, porém, aceitam a testemunho do "pai da mentira" a respeito de divindade de Jesus!! Saberia o demônio, desde o inicio, mais do que Cristo? E não nos estamos referindo a conhecimentos de ciência, de fatos, observáveis, do nosso mundo. Referimo-nos ao conhecimento da doutrina sobrenatural, da doutrina medular, e da própria identidade e missão de Jesus. Esses teólogos não descobriram nem sequer esse detalhe da teologia, no seu afã de exaltar os demônios?
            --- Freqüentemente excelentes teólogos fazem até o ridículo quando se metem em parapsicologia... Evidentemente só é conforme com a realidade a interpretação inversa: Não foi o demônio quem revelou a messianidade e divindade de Jesus. Era Jesus quem o sabia, e prudentemente o foi revelando pouco a pouco. Os doentes simplesmente por HIP(Fenômeno parapsicológico) captaram o pensamento fundamental do próprio Jesus-Cristo. 
Dois mil porcos em estouro. Os Evangelhos contam a expulsão de uma "legião de demônios" que se teriam apossado deste doente de Gergesa: "A certa distância deles  havia uma manada de porcos que estava pastando. Os demônios lhe imploravam dizendo: 'Se nos expulsas, manda-nos para a manada de porcos'. Jesus lhes disse: 'Ide'. Eles, saindo, foram para os porcos, e logo toda a manada se precipitou no lago pelo despenhadeiro" (Mt 8,30-32). Segundo precisa outro evangelista, a vara seria de cerca de dois mil porcos (Mc 5,13).
            Antes de Mais nada:  
Gerasa estava à 50 Km. do lago. Absurdo que os
porcos corressem até lá...
Onde foi? O caso deve ser localizado, como estamos fazendo desde o começo, em Gergesa, na região dos gergesenos, não em Gadara como se pensou; e muito menos em Gerasa como diziam muitas traduções. Gergesa está -isso sim- na região maior ou "país" dos gadarenos.
Evidentemente houve confusão na escolha dos textos originais: devem ser, ao contrário do que publica a maior parte dos críticos textuais, "região dos gergesenos", no texto de Mateus; e "região dos gadarenos" (em vez de "região dos gerasenos", Gerasa, que não tem cabimento) nos textos de Marcos e Lucas. Aos gadarenos pertencia a cidadezinha de Gergesa.
Gerasa está a 50Km ao sudeste do mar de Genesaré. Longe demais para que os porcos pudessem ter-se precipitado e afogado no lago. Também está longe demais Gadara. A 12 quilômetros, e além do mais, separada por um profundo vale onde corre um rio turbulento, o Hieromax dos antigos. Não poderiam os porcos correr tantos quilômetros, atravessar o rio, subir a outra encosta e precipitar-se no mar.
Mas o episódio foi, estamos afirmando com plena certeza, em Gergesa. Exatamente como precisa o Evangelho: "do outro lado do mar" (Mc 5,1 e Mt 8,28), "do lado contrário da Galiléia" (Lc 8,26), precisamente em frente de Magdala. Na boca do wadi es-samak existem hoje as ruínas da antiga Gergesa (Ghersa, Kersa ou hoje chamada Kursi). Muito perto de lá, ao sul, aconteceu o episódio dos porcos. Em Moka-Edlo. Há aí uma pendente muito pronunciada e de 44m de altura. Uma projeção deste promontório fica a 30m do lago.  
Encontrou-se o cemitério onde vivia o "endemoniado" de Gergesa. Está na cripta da igreja bizantina daquela cidade, hoje Kursi
Foi histórico? FOI. Alguns teólogos preferem considerar lenda, metáfora, não histórico, se não todo o conjunto do "endemoninhado" gergeseno, ao menos o episódio dos porcos.
O ataque à historicidade parece nitidamente uma fuga da dificuldade de explicação dos fatos. Se, lamentavelmente, não sabem nem o mínimo de parapsicologia, mantenham-se no seu campo de teólogos...
Estou com o excelente teólogo Taylor quando escreve à luz dos fatos, parapsicologia: "A dificuldade maior está no relato dos porcos. Mas a grande quantidade de detalhes ingênuos, a imagem do homem que despedaça seus grilhões e se corta com pedras, o diálogo, a expulsão, a descrição do homem sentado, vestido e no seu são juízo, a atitude dos espectadores, o tipo de mensagem que o homem proclama na Decápole são detalhes tomados da vida mesma. Possuímos boas razões para classificar a narração como originada em Pedro (testemunha presencial, em quem se fundamenta o Evangelho de Marcos, o mais completo para este episódio; Mt e Lc se apoiam em Mc). De que formas devemos interpretar o que se conta, é outra questão".  
Igualmente parecem fugir da historicidade por não saberem explicar, os que insistem na metáfora: "Os gentios preferem os porcos ao seu Salvador". "Os porcos representam o império romano", etc.
---Estes e outros sentidos metafóricos também , é o que interessa aos teólogos, mas a teologia não pode ficar no ar, deve apoiar-se na realidade histórica, científica! Em todo caso, se o fato não tivesse sido histórico, não pode ser invocado por ninguém em favor da ação demoníaca!, que é o tema que aqui estamos estudando.
"E ele o permitiu" (Lc 8,32). Por quê? Esta dificuldade não pode incriminar o valor histórico do fato. Nem incrimina a sua explicação científica. O fato é independente da intenção dos protagonistas.
Certamente não tem sentido afirmar que os demônios, decididamente maus, quiseram causar dano aos porcos, a seus donos e ainda revoltar a população contra Jesus quando lhe pediram que os deixasse ir aos porcos.
Também não se pode afirmar que os demônios teriam sido tão ingênuos a ponto de serem enganados por Jesus, e que Jesus pretendeu enganá-los ao conceder-lhes a permissão, pois sabia que haveriam de perecer.
--- Puras disquisições de teólogos, plenamente vazios de técnicas científicas no estudo dos fenômenos misteriosos, de parapsicologia.
E não são muito menores disquisições as dos que afirmam que Jesus permitiu a morte dos porcos, para anunciar ao doente e às testemunhas que a cura estava realizada. Poderia tê-lo permitido para ensinar, no plano religioso, que o pecado pode acabar em catástrofe. Jesus poderia tê-lo permitido para facilitar e firmar a cura, por transferência sugestiva, na psicologia do doente: O trauma da sua antiga doença ficará definitivamente sanado pela lembrança da morte dos porcos. E muitas outras disquisições, mais ou menos ridículas...
2.000 porcos em estouro. "Os demônios então saíram do homem, entraram nos porcos, e a manada se arrojou pelo precipício, dentro do lago, e se afogou"     (Lc 8,33).
Como explicar o fato? Por que os porcos se precipitaram no mar? A mais inadmissível das explicações é a admitida por Cortés na sua tese doutoral em Teologia: "Foi a vontade de Jesus a que produziu o estouro dos porcos".
-- Não: Cristo não causaria diretamente esse prejuízo, nem para manifestar sua glória. O fim não justifica os meios. Permitir é uma coisa, causar é outra.
O que agora interessa. Não tem cabimento a explicação demonológica:
1.- Em primeiro lugar, não encaixa no conceito de demônios que estes precisem de uma casa. É que se molham quando chove? É que passam frio no inverno? Quando temem serem expulsos do doente, por que solicitariam ir aos porcos? "Os demônios lhe imploravam dizendo: 'Se nos expulsas, manda-nos para a manada de porcos'" (Mt 8,31).
 Mas enquadra-se perfeitamente à mentalidade primitiva, que concebia -e ainda concebe-  as potestades, fadas, deuses, daímones ou demônios... dotados de corpo, mais ou menos tênue, e até com instintos carnais, machos e fêmeas. Hoje se propaga que os exús e orixás querem farofa, e pinga, fumam charuto, etc. Era lógico que o doente, acreditando que falava em nome dos daímones reclamasse justiça comutativa: Se nos tiras nossa casa, dá-nos outra. Vendo a vara de porcos, é lógico que lhe ocorresse pedir precisamente a "casa" que tinha diante dos olhos.
2.- Se fossem os demônios que queriam uma "casa", cuidariam dos porcos. Não jogariam os porcos ao mar. Ao contrario, cuidariam dos porcos! Como eles iam querer perder a "casa" que acabavam de solicitar? E seria contraditório dizer que os quase "onipotentes" demônios -como, os pintam- não conseguiram dominar o pânico da vara.
3.- Não caberia invocar o feitiço. Não se pode considerar os porcos como animais domésticos. 2.000 porcos não podem ser considerados muito ligados ao homem, que captem seu estado de espírito, que obedeçam até o suicídio! Não concordo do ponto de vista científico, com os ocultistas, espíritas, e auto-se-dizentes parapsicólogos que deram esta explicação. Embora evidentemente esta explicação seria, em último termo, preferível ou menos contra-indicada que a demonológica.
A explicação é outra. em lógica. Evidente. Tem vários aspectos:
1.- É típico que, no momento da crise da cura, o doente apresente uma última e mais violenta demonstração. Gritos, gestos, convulsões assustadoras... Os Evangelhos não contam os detalhes da cura do "possesso". É possível que houvesse uma crise paroxística.
2.- É possível que inclusive houvesse um início de pânico nos apóstolos, nos cuidadores dos porcos, em outras pessoas presentes. Já a própria presença do famoso e perigoso energúmeno -um ou dois- logicamente deixava tensos e apreensivos todos os espectadores. Pouca coisa bastaria para provocar uma reação desproporcionada.  
3.- Por outro lado, todo mundo sabe que o pânico em certos animais que vivem em manadas, se espraia por contágio num instante. O estouro da boiada, a revoada do pombal, a fuga de todo o cardume, etc. Se um ou dois porcos entraram em pânico, toda a vara, em crescente contágio, estourou em pânico.
            Vários padres parapsicólogos se têm inclinado à explicação pelo pânico nos porcos causado pelos gestos e gritos do "possesso" e dos espectadores. Pensaram unicamente no entusiasmo e manifestação de alegria pela cura. Eu, dando importância ao "show" e pânico precisamente no paroxismo da crise, aceito com gosto também o entusiasmo pela cura, seguindo nisto a Goodspeed, Hunter, Mackinnon, Miklem, Taylor, Van der Loos etc.
            Mas, precisamente como parapsicólogo, aceno a um outro fator muito mais importante neste caso, e freqüentemente comprovado na parapsicologia. O início do estouro da vara de porcos foi o influxo telérgico, que causaria uma reação exagerada em algum porco, precisamente por tê-lo sentido em meio ao pânico e ao conseqüente alvoroço das pessoas lá presentes.
            Dirão alguns: A telergia (transformação e exteriorização das energias corporais, responsável por todos os fenômenos parapsicológicos de efeitos físicos)  não influi sobre animais grandes (nem sobre pessoas). É repelida. Nas casas "mal-assombradas", as pedras não batem sobre animais grandes. (Se batem no homem -muito raro- é sobre o mesmo homem que causa a "assombração"). Quer auto-destruir-se. Os animais não pretendem diretamente se auto-destruir. Se as pedras batem em outro homem ou em animais grandes, é só por ricochete. (Ou é truque: alguém fraudulentamente está jogando essas pedras...)
            Os espíritas dizem que as casas são "mal-assombradas" por  espíritos vingativos. Teria havido lá um crime e o espírito da vítima vem vingar-se. Vendo, porém, que as pedras não batem, os espíritas dizem então que se trata de espíritos brincalhões. Pelo mesmo fato tantas vezes constatado, os russos têm uma palavra (prokashik) que significa brincalhão para designar o demônio "assombrador". Igual em alemão: poltergeist.
          --- Em que ficamos? São vingativos ou são brincalhões? É contraditório. É evidente que nada tem a ver com espíritos nem com demônios.
Mas insisto. Parte da explicação está na telergia. A telergia pode, por inércia, quando não se consegue repeli-la plenamente, causar um pequeno toque. Diversas projeções da telergia podem causar ventos frios. Insistentemente. Toques e ventos frios misteriosos... Em um ou dois porcos. E surgiu o pânico.
Crise, reação, efeitos telérgicos... difunde-se o pânico progressivamente crescente... Os porcos caem pelo íngreme pendente. Mais pânico. Empurrados pelos que vêm detrás, caem no lago. E se afogaram. Todos ou uma parte. Os porcos são excelentes nadadores. Mas caindo no precipício, os que não se mataram ficaram feridos. Assim muitos deles puderam de fato terminar morrendo afogados.
E pronto. Nada de demônios. 
Casos análogos. O caso dos porcos em Gergesa não é um caso isolado. É muito sabido em parapsicologia que os animais entram em pânico perante a telergia que eles vêem (invisível ao homem mas não a alguns animais) quando causa fenômenos para-físicos. O cavalo se empina e sai a todo galope. O cachorro pula até de um oitavo andar. O pânico de animais -inclusive não muito ligados ao homem- perante efeitos telérgicos e ectoplasmáticos tem-se constatado inúmeras vezes em parapsicologia. Em todos os ambientes.
 Pode ser que o olho humano não chegue a ver nada do que assuste ao animal. Por exemplo, uma das jovens acusadas de bruxaria no famoso processo de Salem, foi Sarah Good. Foi acusada de ter "enfeitiçado" até a morte 27 ovelhas e porcos de Benjamin Abbot. Martha Carrier também foi convicta e executada. Etc., etc.  
O endemoninhado do Monte Tabor  
O "endemoniado" do Monte Tabor,
que os Apóstolos não conseguiram
curar, Quadro do grande pintor
espanhol Murillo (1618-1682).
Outro "endemoninhado" de que se trazem dados bastante definidos para o diagnóstico é o menino que os discípulos não conseguiram curar (Mc 9,14-29par). Evidentemente, trata-se de um epiléptico. Seleciono alguns sintomas da doença que correspondem exatamente à descrição evangélica.
            Na fase tônica do "grande mal":
    1) Ha perda de conhecimento e o paciente desmorona. Escrevem os evangelistas: "Quando ele o toma, atira-o pelo chão" (Mc 9,18), "o demônio o jogou por terra" (Lc 9,42), "caindo por terra" (Mc 9,20).
     2) Pode ferir-se, ao cair. Escrevem os evangelistas: "Deixando-o dilacerado" (Lc 9,39), "muitas vezes cai no fogo e outras muitas na água" (Mt 17,15), "muitas vezes o atira ao fogo e água para fazê-lo morrer" (Mc 9,22).
     3) O ar, contraindo-se o peito e a barriga às vezes ao mesmo tempo, é expulso com força, e quase sem espaço de saída é expelido violentamente provocando o peculiar "grito do epiléptico". Escrevem os evangelistas: "Subitamente grita" (Lc 9,39). "Gritando...saiu. E o menino ficou como se estivesse morto" (Mc 9,26).
            Na fase crônica, convulsiva ou espasmódica:
     1) Dão-se contrações musculares intermitentes e violentas -quando também podem repetir-se os gritos do epiléptico, e pode também assim ficar "dilacerado". Escrevem os evangelistas: "Sacode-o com violência", "agitou-o com violência" (Lc 9,39-42), "o espírito... agitou com violência... rolava", "agitando-o violentamente saiu" (Mc 9,20 e 26).
     2) Como efeito do violento abrir e fechar da boca, misturam-se o ar e a saliva, originando a típica "baba do epiléptico" -nestas contrações pode morder e até cortar a língua. Está escrito: "E ele espuma, range os dentes e fica ressequido", "rolava espumando" (Mc 9,18 e 20).
            Na fase pós-convulsiva, de coma ou confusa, o paciente fica num sono anormal e profundo. A natureza se recupera da terrível tensão anterior. E que os daímones também precisam descanso? 
            Do menino curado por Cristo os Evangelhos constatam: "O menino ficou como se estivesse morto, de modo que muitos diziam que ele tinha morrido" (Mc 9,26).
            Parece lícito identificar o desmaio na fase tônica e o coma na fase pós-convulsiva com a mudez e surdez que também se atribuem a este epiléptico do Monte Tabor: "Meu filho que tem um espírito mudo", "espírito mudo e surdo" (Mc 9,17-25).
            O psiquiatra e excelente parapsicólogo Dr. Jean Lhermitte admirou-se da capacidade de observação dos Evangelhos: "É difícil ser mais explícito e mais exato na descrição do mal epiléptico criptogenético (isto é, "por causa interna" na expressão que estou usando). Não falta nenhum caráter essencial da enfermidade".
            É significativo que o evangelista Mateus transmita o diagnóstico exato e expresso que o pai sabia da doença do menino: "Senhor, tem compaixão de meu filho, porque é lunático" (Mt 17,15).  Existia naquele tempo a crendice de que os epilépticos eram influenciados pelas fases e a luz da deusa ou daímon Lua, erro que inclusive compartirá Galeno, o grande médico do século II. Lunático, nome "técnico" de então para designar o que hoje chamamos epilepsia. Expressamente.
            Regra sem exceções. Com "causas" externas nenhum doente era considerado endemoninhado.
            Não constitui exceção a "mulher possuída há dezoito anos por um espírito que a tornava enferma; estava inteiramente recurvada e não podia de modo algum levantar a cabeça... Esta filha de Abraão, que Satanás prendeu há dezoito anos" (Lc 13,11-16).
            --- Fosse seu corpo perfeito poderia ser considerada endemoninhada: o manter-se curvada poderia equiparar-se a um distúrbio de conduta, e portanto ser considerada como possuída por um daímon. Mas dificilmente se poderá admitir que não houvesse no corpo da mulher mais sinal externo que o próprio estar curvada. Sem dúvida havia alguma "causa" externa. Qual? Estaria ela deformada?  Corcunda? Teria um manifesto desvio da coluna (escoliose)? Raquitismo? Nesse caso de nenhum jeito poderia ser considerada endemoninhada... 
            E de fato nada obriga no texto a aceitar que então interpretavam este caso como de possessão demoníaca. Tudo o contrário. "Um espírito que a tornava enferma", ou como outras versões preferem "um espírito de doença" (v. 11) é eqüivalente a doença simplesmente. É eqüivalente à expressão que pouco depois (v.12) se emprega quando Jesus diz: "Estás livre de tua doença", doença, agora sem ser precedida pela palavra espírito.
            Em outros muitos textos do Novo Testamento emprega-se a expressão "espírito de..." para designar exclusivamente o modo de proceder que vem após a palavra espírito. É o genitivo de qualidade, expressão também usada nas línguas vernáculas, mas especialmente freqüente entre os hebreus: "Espírito de escravos" (Rm 8,15), "espírito de filhos adotivos" (ibidem), "espírito do medo", "espírito de força, de amor e de sobriedade" (2Tm 1,7), "espírito da graça" (Hb 10,29), "espírito de Deus...; espírito do Anti-Cristo" (1Jo 4,1-3), "espírito de sabedoria e de revelação" (Ef 1,17) etc. Portanto, "espírito de doença" de nenhum modo é sinônimo de demônio; é sinônimo de doença.
            Cristo ter dito que Satanás a tinha presa só confirma o que antes dizíamos: as doenças eram consideradas como estando sob o domínio de Satã, simplesmente personificação do mal, mas não no sentido de possessão.
            O gago. E também não constitui exceção o caso do surdo-mudo a quem Jesus curou com saliva e um "Ephphata" = abre-te. Todos os mudos e surdos são apresentados como possessos. É doença sem "causa" externa. Como é que a este surdo-mudo não o consideraram endemoninhado?
            É Marcos quem narra a cura (Mc 731-37). Diz que era "mogilalon" (em neutro). A palavra grega pode significar perfeitamente, e no sentido primário e etimológico, gago (mogis = com dificuldade, laleo = falar). Em vez de mogilalon, poderia haver sido originário o neutro moggilalon = que fala com voz rouca (ou mogolalon = ...com esforço; ou migalon =... confusamente;  ou megalon = ...com voz forte).
            Contra a tradução da Vulgata e demais traduções antiquadas ("surdo-mudo"), aquele homem falava, embora gaguejando, ou rouco,  ou com dificuldade... O termo gago é o empregado nas traduções modernas. A Bíblia de Jerusalém em vez de surdo-mudo traduz "um surdo que gaguejava" (Mc 7,32). Tem valor a expressão do evangelista: após a cura, aquele homem "falava corretamente" (Mc 7,35). Não diz que conseguiu falar, mas que conseguiu falar corretamente. Antes dissera que "se soltou a trava de sua língua", ou (na tradução da Bíblia de Jerusalém) "a língua se lhe desprendeu", o que alude à dificuldade anterior melhor que à mudez.
            Não sendo mudo, não era surdo de nascença, pois aprendeu a falar. Portanto, teria ficado surdo e gago em conseqüência de alguma doença ou acidente. Tendo sido acidente, até possivelmente ficassem cicatrizes. Por acidente ou por uma doença externa, se compreende que não o chamassem endemoninhado.

HISTORICIDADE DOS FATOS
     A vida e obras de Jesus é o fato histórico melhor constatado da história antiga da humanidade. Em outra oportunidade apresento os numerosos argumentos em favor da historicidade, até aos mínimos detalhes, dos Evangelhos. Argumentos numerosos, fortíssimos, absolutamente irrefutáveis...
    E plenamente científicos. Também provo em outra oportunidade que corresponde à ciência estudar todos os fatos, como fatos do nosso mundo, relacionados ou não com religião. À religião, à Bíblia, à Igreja corresponde unicamente a doutrina sobrenatural, inobservável, revelada. Na doutrina sobrenatural a ciência não pode afirmar nem negar. A inversa também é verdadeira: a Bíblia, a Igreja, não tem autoridade em fatos. Fé e ciência. Mutuo interesse no homem, mas sem misturar!
Os fatos realmente aconteceram...
    Concretamente são históricas, como fatos, as chamadas "expulsões de demônios" realizadas por Jesus.
    1.- Não se acusaria a Jesus de fazê-lo pelo poder de Beelzebul (Mc 3,22-30p), se os adversários estivessem só perante um ou poucos casos. Sob o peso de repetidos e quase contínuos fenômenos dessa espécie, refletiam sem encontrar escapatórias: O poder de Jesus é superior aos poderes dos curandeiros. Daí o recurso ao "príncipe dos demônios". A "magia" de Jesus não poderia provir de uma potestade ou demônio subalterno. No desespero, acentuaram a injúria ao máximo. E tal injúria a Cristo não poderia ser interpolação dos primeiros cristãos, como afirmam preconceitosamente os negadores da historicidade dos Evangelhos.
    2.- Por outro lado, o curandeiro estranho não usaria o nome de Jesus se Jesus  não houvesse adquirido fama, por freqüentes expulsões de "demônios", de ser o melhor entre "os vossos filhos" que os expulsam também (Mt 12,27). E os primeiros cristãos não podiam haver inventado e interpolado este episódio que não favorece os apóstolos, pois em contraste com Jesus, parecem intolerantes: "Mestre, vimos alguém que não nos segue, expulsando demônios em teu nome, e o impedimos... Jesus, porém, disse: 'Não o impeçais...'" (Mc 9,38p).
    3.- Também não são poupados os discípulos quando fracassam na tentativa de curar o "endemoninhado" no Monte Tabor perante grande multidão e os escribas discutindo com eles (Mc 9,14-29). Os apóstolos se queixavam a Jesus por aquela humilhação pública. Tais passagens não pode haver sido acrescentadas pelos cristãos. Nem os apóstolos se lançariam a expulsar "demônios" se não o tivessem feito outras vezes e se Jesus não o fizesse freqüentemente.
    4.- Jesus discutiu várias vezes -talvez muitas- com os escribas e fariseus sobre o trabalho que se podia fazer no Sábado, dia religioso de descanso. Para os judeus essa polêmica supõe muitos milagres realizados também aos sábados. Também estas passagens não podem ser atribuídas a invenção e interpolação posterior, em outro ambiente. Pois bem, a polêmica teve início precisamente pelo "trabalho" (como diriam os feiticeiros hoje) de expulsar o "demônio" que na sinagoga de Cafarnaum proclamava que Jesus era o "santo de Deus" (Mc 1,21-28).
    5.- Descrevendo o dia das contas, Jesus disse: "Muitos me dirão naquele dia: 'Senhor, Senhor, não foi... em teu nome que expulsamos demônios...?' Então, sem rodeios, Eu lhes direi: 'Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade'" (Mt 7,22s). Em outra oportunidade Cristo aconselhava aos apóstolos: "Não vos alegreis porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, porque vossos nomes estão inscritos nos céus" (Lc 10,20). E, mais uma vez, estes e outros textos semelhantes não podem ser originários dos primeiros cristãos. "Popularizam" o poder de expulsar "demônios" ou "espíritos imundos", em que a Igreja das origens se apoiava nas discussões com os pagãos. Não é exclusivo de Jesus. Nem Cristo falaria assim se não tivessem outras pessoas esse poder de curar certos "endemoninhados".
    6.- Quando Jesus enviou os 72 discípulos dois a dois a pregar o Evangelho, "deu-lhes autoridade sobre os espíritos imundos" (Mc 6,7). "Quando voltaram com alegria dizendo: 'Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome'", Jesus os felicita com aquelas palavras: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago! Eis que vos dei o poder de pisar... todo o poder do Inimigo" (Lc 10,17-19). São fenômenos constatados em muitas partes. O poder de curar até os piores casos, os "endemoninhados", implicava que os discípulos estavam inundados pelo Espírito Santo, transmitido por Cristo, pois "é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios" (Lc 11,20). E tal poder dos discípulos não pode ser invenção da Igreja primitiva, pois então se acreditava que só após o dia de Pentecostes o Espírito se comunicou.
    Numa palavra: os Evangelhos estão inundados de expulsões de "demônios". Suprimir esses fatos seria suprimir quase tudo nos Evangelhos. Ora, os "endemoninhados" formam um núcleo certamente radicado nas próprias testemunhas e proclamado para as testemunhas. Esta dupla constatação dá rigoroso valor histórico aos Evangelhos em geral.
    A verdade histórica das expulsões de "demônios" -e outros milagres- realizados por Jesus e por seus discípulos não podia ser negada pelos seus próprios adversários. Por isso se refugiavam na acusação de magia. Além das fontes cristãs canônicas, temos confirmação nos Evangelhos apócrifos, cheios de lendas, mas que pressupõem a realidade dos milagres de Jesus. Temos ainda a  confirmação pelo Talmude dos judeus da Babilônia, e pelo historiador judeu Flávio Josefo. Etc.  

OS EVANGELHOS CONTRA O MITO DE POSSESSÃO DEMONÍACA
"Daimonia". A intenção desmitificante dos evangelistas parece evidente. Os Evangelhos distinguem entre daimonion e daímon. Aparecem os 'endemoninhados" como sendo pessoas que têm daimonion, 11 vezes em Mateus, 14 em Marcos, 23 em Lucas e 6 em João. A palavra daímon (daímones, em plural) aparece uma única vez nos Evangelhos.
Os povos primitivos, como também os judeus na
época de Cristo, donde passou ap Cristianismo
"popular", acreditavam no erro de que demônios
perversos atormentavam a humanidade.
Parece importante o fato. Daimónion é forma neutra. É fácil ver nas expressões evangélicas que daimónion não se concebe como ser pessoal, mas como coisa, algo impessoal. Sublinhou há tempo Trench: "Dáimon ou daimónion... não são eqüivalentes". A mesma tese defendem Hafner, e Smit, Foerster etc.
            No único caso em que os Evangelhos (Mt 8,31) usam o termo daímones, é porque os demônios tinham sido identificados com os homens "possessos" como se formassem uma só coisa com eles. Eram os dois "possessos" - demônios e homens numa unidade -  que gritavam:  "Que tens a ver conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar?" Eram os "possessos" - uma unidade visível como humana - os que "eram tão furiosos que pessoa alguma ousava passar por ali". Evidentemente que eram os homens - "possessos", sim, mas homens - os que atacavam os transeuntes. Eram eles os que viviam no cemitério... Por isso aqui se emprega o termo pessoal daimones.
            Em vez de "possuídos por demônios", as traduções deveriam dizer "afligidos por forças nocivas" ou "vexados por transtornos malignos", ou outras expressões eqüivalentes. Termos imprecisos, meio misteriosos..., designam com mais precisão o que na época se entendia por daimonion. Não levam o leitor moderno a pensar erradamente em anjos rebeldes, demônios, divindades, espíritos..., atormentando os doentes.
              Curar e sarar. Considerar o termo "endemoninhado" como designando uma doença especial enquadra-se perfeitamente com outro termo - também muito desmitificante - que freqüentemente o acompanha: o "possesso" é curado, curare em latim, therapeúein em grego; o "endemoninhado", sara, sanare em latim, iásthai em grego.
            "Traziam todos os que eram acometidos por doenças diversas e atormentados por enfermidades, bem como endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E ele os curava" (Mt 4,24); "Trouxeram-lhe um endemoninhado cego e mudo. E ele o curou" (Mt 12,22); "'A minha filha está horrivelmente endemoninhada'... E a partir daquele momento sua filha ficou curada" (Mt 15,22,28); "Eu o trouxe aos teus discípulos, mas eles não foram capazes de curá-lo... Jesus o exconjurou e o demônio saiu dele. E o menino ficou são (curado) a partir desse momento" (Mt 17,16-18); "Os atormentados por espíritos impuros também eram curados" (Lc 6,18); "Curou a muitos de doenças, de enfermidades, de espíritos malignos" (Lc 7,21); "Os Doze o acompanhavam, assim como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças" (Lc 8,1-2); "As testemunhas então contaram-lhe como fora salvo (como tinha sarado) o endemoninhado" (Lc 8,36); "Jesus, porém, conjurou severamente o espírito impuro, curou a criança e a devolveu ao pai" (Lc 9,42); "Trazendo doentes e atormentados de espíritos impuros, e todos eram curados" (At 5,16).
            Saram e se curam doentes. Expulsam-se, portanto (ou saem, vão embora, abandonam, deixam os corpos - expressões também bíblicas), as doenças.
            Diagnóstico expresso. Mais ainda. Freqüentemente os Evangelhos junto ao termo "endemoninhado" apresentam também expressamente o nome concreto da doença de que se trata.
            A respeito do "endemoninhado" curado "pelo poder de Beelzebul" (2Lc 11,14) diz que "Jesus expulsava um demônio que era mudo. Ora, quando o demônio saiu, o mudo falou". As palavras de Mateus são quase idênticas em um caso (Mt 9,32s.); e em outro caso diz: "Então trouxeram-lhe um endemoninhado cego e mudo. E ele o curou..." (Mt 12,22). Do menino para quem seu pai pedia piedade "porque é lunático" (Mt 19,14), o pai diz também: "Meu filho tem um espírito mudo". E Cristo íntima ao "espírito mudo e surdo" (Mc 9.17-25). Talvez devamos acrescentar o caso do "endemoninhado" gergeseno: dizer que ficou "no seu juízo" (Mc 5,15 e Lc 8,35) é quase expressamente dizer que antes tinha algum tipo de loucura.
            Em outras ocasiões, pela descrição dos sintomas, é possível diagnosticar a doença concreta, como fiz no caso do "endemoninhado" na sinagoga de Cafarnaum. Quando não se pode deduzir qual é a doença que sofre o "endemoninhado" é só porque os evangelistas nenhum dado, nenhum sintoma apresentam.
            Ora se nomeia expressamente, ora se deduz a doença que sofrem os "endemoninhados". Havendo uma possível explicação natural, deve-se excluir qualquer interpretação demoníaca.
              Falsa objeção. Não se pode objetar que os Evangelhos distinguem entre doenças e "possessões".
            Balducci, apresenta como supremo argumento que "Jesus e os evangelistas de modo explícito entre cura dos doentes e expulsão dos demônios... Deve-se especialmente sublinhar (a passagem) na qual Jesus dá aos seus discípulos o poder de expulsar os demônios distinguindo-o claramente daquele de curar os doentes".
            Nove textos neotestamentários poderiam ser citados. Em todos eles é cabível a distinção entre doenças internas e externas, perceptíveis e imperceptíveis.
            É o que basta em três textos de Marcos:
            1) "Ao entardecer quando o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os que estavam enfermos e endemoninhados... E ele curou muitos doentes de diversas enfermidades e expulsou muitos demônios" (Mc 1,32,34).
            2) "Expulsavam muitos demônios, e curavam muitos enfermos, ungindo-os com óleo" (Mc 6,13).
            3) "Estes são os sinais que acompanharão aos que tiverem crido, em meu nome expulsarão demônios..., imporão as mãos sobre os enfermos, e estes ficarão curados" (Mc 16,17s.).
            Explicação sob rótulo amplo. Em relação aos outros seis textos, só encaixa perfeitamente a distinção entre doenças perceptíveis e imperceptíveis. Não cabe distinção entre doenças e endemoninhados.
Todas as doenças internas
(loucura, depressão, etc.) eram
atribuidas aos demônios.
            4) O texto de Mateus (8,16) de acordo com o original é: "Ao entardecer, trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele com sua palavra expulsou os espíritos e curou a todos os que estavam mal".
            Não se está falando de outros tipos de doentes, mas unicamente dos chamados endemoninhados. "trouxeram-lhe muitos endemoninhados", não se diz que lhe trouxeram também doentes (outra classe de doentes). A frase a seguir pode ser uma explicação da cura destes endemoninhados, só deles se fala: "Ele expulsou os espíritos e curou a todos que estavam mal"; poderia interpretar-se no sentido de que entre os "endemoninhados" alguns se encontravam então mal, por exemplo tendo convulsões; outros endemoninhados estavam então tranqüilos. O sentido seria: "Ao entardecer trouxeram-lhe muitos doentes desses que se chamam possessos. Com sua palavra ele curou a todos, mesmo os que estavam em crise".  

            Em todo caso, se a exegese que proponho fosse forçada, o texto admitiria a distinção entre doenças internas e externas.
            5) Exata inversão da ordem entre os sinônimos fazem os Atos dos Apóstolos: sob o rótulo de enfermos arrolam-se também os "endemoninhados": "Deus operava pelas mãos de Paulo milagres extraordinários, a tal ponto que bastava que se aplicassem sobre os doentes lenços e aventais que tivessem tocado seu corpo; então, as doenças os deixavam e os espíritos maus se retiravam" (At 19,11s.).
            Isto poderia significar o seguinte: "Paulo curava, até pelo contato de suas roupas, todo tipo de doentes: tanto as doenças externas como as internas". Os chamados possessos, repetimos, são incluídos sob o rótulo geral de doentes.
            Estilo reiterativo. É estilo coloquial, enfatizante:
            6) "Deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda a sorte de males e enfermidades" (Mt 10,1). Não se quer contrapor "todos os males" (outra tradução seria: "todas as doenças") a "todas as enfermidades".
            7) "Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios"(Mt 10,8). Os "leprosos" não são doentes ou enfermos? Enfermidade e doença não são sinônimos? Assim também os "possessos" são um tipo a mais de enfermidade.
            Poderíamos traduzir livremente esses dois textos de Mateus assim: "Conferiu-lhes poder de curar todo tipo de doentes ou enfermos, inclusive leprosos e esses outros mais graves ou misteriosos chamados possessos, até sobre a última e mais grave doença, a própria morte".
            8) este estilo reiterativo, de acumulação, enfático que não implica contraposição exclusiva entre doenças e possessões, é manifesto em outro texto do Evangelho de Mateus (4,24): "Traziam todos os que eram acometidos por doenças diversas e atormentados por enfermidades, bem como endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E eles os curava".
            9) Idêntica consideração para os Atos dos Apóstolos: "De muitos possessos, efetivamente, saíam os espíritos impuros, dando grandes gritos. Numerosos paralíticos e aleijados foram igualmente curados" (At  8,7s.). Os paralíticos são doentes. Os aleijados também. Também os possessos.
            "Isto é". A exegese por explicitação sob rótulo mais amplo é proposta pela maioria dos autores que rejeitam a interpretação demonológica. Está de acordo com o grego bíblico. Se bem se observa, explicitação e estilo reiterativo não se excluem, antes se identificam às vezes. "Muitos deles diziam: Ele tem um demônio! Está louco!" (Jo 10,20). No original grego há um Kai. A tradução literal seria por meio da conjunção "e". Mas seu sentido, segundo os puristas gregos, muito provavelmente seria epixegético ou explicativo (e às vezes reiterativo).
            Deveria ser traduzido, se não fosse dissonante nas línguas vernáculas, por "isto é", "e portanto", 'quer dizer", "ou", "ou seja" etc.: "Ele tem um demônio, isto é, está louco". Esta tradução se confirma com a que deveria Ter em outros textos: "Pois de sua plenitude todos nós recebemos, quer dizer, graça" (jo 1,16). "Se conhecesses o Dom de Deus, ou seja, quem é que te diz 'dá-me de beber!" (Jo 4,10). "Dizei à filha de Sião: 'Eis que o teu rei vem a ti, manso, e portanto, montado em um jumento, ou em um jumentinho filho de uma jumenta'" (Mt 21,5).
            Nesse sentido explicativo e reiterativo, além do texto demonológico antes citado, poder-se-iam traduzir cinco outros textos excluindo-se neles qualquer distinção entre doentes e possessos. Inclusive só se falaria de "possessos", reiterando a expressão. Interessaria ao evangelista destacar para seus leitores este aspecto, dada a quantidade de curandeiros exorcistas que pululavam, que curavam sempre por meio de exorcismos. Exorcizar seria eqüivalente a curar.
            1) "Ao entardecer, quando o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os que estavam enfermos, isto é, endemoninhados... E ele curou muitos doentes de diversas enfermidades (inclusive internas), isto é, expulsou muitos demônios. Não consentia, porém, que os demônios falassem, pois eles o conheciam" (Mc 1,32-34).
            2) Também no texto paralelo de Mateus (8,16-17). "Ao entardecer, trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele com uma palavra, expulsou os espíritos, ou seja, curou todos os que estavam enfermos (inclusive de doenças internas), a fim de se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías: Levou as nossas enfermidades, quer dizer, carregou nossas doenças" (Mt 8,16-17)
            3) "Chamou os doze discípulos e deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos, isto é, de curar toda sorte de males ou enfermidades"(Mt 10,1).
            4) Também no texto paralelo de Lucas: "Convocando aos Doze, deu-lhes poder, isto é autoridade sobre todos os demônios, isto é, para curar (inclusive este tipo de) doenças" (Lc 9,1), todas as doenças.
            5) "Ide dizer a esta raposa: 'Eis que eu expulso demônios, quer dizer, realizo (toda sorte de) curas hoje e amanhã e no terceiro dia vou terminar!" (Lc 13,23).
            "Vi Satanás..." Quando os grupos dos 72 discípulos enviados dois a dois iam voltando, todos satisfeitos porque expulsaram demônios, Jesus lhes confirmou que se tratava mesmo de demônios? "Senhor, até os demônios se nos submeteram no teu nome!" Jesus os felicitou dizendo: "Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago"(Lc 10,17s.).
            Parece que esta frase de Jesus não se refere nada à expulsão de demônios. Era impossível que os discípulos a entendessem como se referindo à expulsão de demônios, porque "em primeiro lugar nunca se estabeleceu, nem na etapa posterior (do judaísmo), conexão estável entre Satanás e os espíritos impuros ou demônios causadores de doenças", afirmam os eminentes teólogos do Dicionário Teológico de Kittel. Por exemplo, no apócrifo Testamento dos Doze Patriarcas e nos manuscritos de Qumran, Deus é que se identifica com os demônios causadores de doenças (Test Rub I, 7-9; Test Sim II, 12; Test Gad V, 9-11; IQ Gn Apoc - Qmran Gênesis Apócrifo - XX, 16-29), nunca estes demônios são vinculados a Satã. Os "maus espíritos", que nos testamentos de Rúben, de Simeão e de Issacar e nas regras qumranianas da Comunidade e da Guerra estão submetidos a Satã ou Belial, são os tentadores, os que induzem ao pecado (Test Rub II e III; Test Sim II, 7 e III; Test Is IV, 4; IQS IV, 9-11; IQM XIII, 11s.). Para os discípulos, satanás e os demônios eram coisas completamente diferentes.
            A frase ou visão de Cristo tem um significado religioso, profético, da vitória do cristianismo sobre o mal.
           Outra falsa objeção. Os "demonófilos" objetam: trata-se de verdadeiros demônios; "Jesus o confirma com o modo de comportar-se com os obsessos, porque, em tais casos, com suas palavras demonstrou que se estava enfrentando não com uma doença, mas com entidade diferente da do doente, impondo-lhe energicamente que abandonasse aquele paciente".
Podem-se invocar três textos: 1) Cristo, ao pé do monte Tabor, para curar o epiléptico "conjurou severamente o espírito impuro dizendo-lhe: 'Espírito mudo e surdo, eu te ordeno, deixa-o e nunca mais entre nele'" (Mc 9,25). 2) Para curar o louco da sinagoga de Cafarnaum, "Jesus, porém, o conjurou severamente: 'Cala-te e sai dele'" (Mc 1,25 e Lc 4,35). 3) Para libertar um louco furioso - ou dois - e com fenômenos histeroparapsicológicos na terra dos gergesenos, "Jesus lhe dizia: 'sai deste homem, espírito impuro'" 9mc 5,8).
            Em primeiro lugar é excelente tática psicológica acomodar-se à mentalidade do doente para, uma vez estabelecido o rapport, arrancá-lo do se auto-hipnotismo. Jesus poderia saber disto por experiência.
            Alguns exegetas argumentam que increnpar (epitimáô, no original grego) não teria sentido se Jesus se dirigisse a uma doença e não a um demônio. Epitimáô é imposição forte, repreensão ou ordem severa. Igualmente, quando manda calar o "demônio" usa-se no grego o verbo phimóô, que significa amordaçar.
            Na realidade mesmo supondo que Cristo quisesse entrar em ciência (capítulo II)..., o mesmo verbo epitimáô que ele usa com o "demônio", o usa quando se dirige aos ventos (Mt 8,26), ao mar (Mt 8,26), às ondas (Lc 8,24), à febre (Lc 4,39). E o mesmo verbo phimóô, Cristo o usa também quando se dirige ao mar e aos ventos (Mt 8,26).
            Manda, prescreve, epitássó aos "demônios" (Mc 1,27; Lc 4,36: 8,31; Mc 9,25), mas a mesma palavra é empregada contra o vento e as ondas (Lc 8,25).
          Idêntica comparação de textos vale para a expressão freqüente nos Evangelhos: os demônios saíam dos possessos (por exemplo. Lc 4,41). É similar a expressões como "a febre a deixou" (Mc 1,31 e Jo 4,52), "e logo a lepra o deixou" (Mc 1,42; Lc 5,13). Os evangelhos não chamam de endemoninhado alguém com febre ou um leproso (é uma doença manifesta e visível externamente). Mas dizem que a lepra e a febre o abandonam. A mesma figura que se aplica ao espírito imundo que sai...
            Com tais expressões bíblicas não se afirma que o vento, as ondas, a tempestade, a febre e a lepra são demônios.
           Diferença de atitude. Muitos objetam que Jesus não tocava ou não se deixava tocar pelos "possessos" e sim pelos doentes. A mesma diferença de atitude se encontraria nos apóstolos. Não quereriam contaminar-se com os demônios.
            Simplesmente, é provável que não seja verdade essa distinção. O evangelista diz: "Ao pôr-do-sol, todos os que tinham doentes: atingidos de males diversos (de qualquer enfermidade), traziam-nos, e ele impondo as mãos sobre cada um, curava-os. De um grande número também saíam demônios gritando...' (Lc 4,40s.). Os atormentados por espíritos impuros também eram curados. E toda a multidão procurava tocá-lo, porque dele saía uma força que a todos curava" (Lc 6,16s.). expressões semelhantes podem se encontrar em Marcos: "havia curado muita gente. E todos os que sofriam de alguma enfermidade lançavam-se sobre ele para tocá-lo. E os espíritos impuros, assim que o viam, caíam a seus pés e gritavam..." (Mc 3,10s.).
            "Caíam a seus pés", "prostavam-se diante dele": o costume era abraçar as pernas e beijar os pés.
            Nos Atos dos Apóstolos: "A ponto de serem os doentes transportados para as praças e depostos lá em leitos e catres, a fim de que, ao passar Pedro, ao menos sua sobra cobrisse alguns deles. A multidão acorria mesmo das cidades vizinhas de Jerusalém, trazendo doentes e atormentados de espíritos impuros, e todos eram curados"(At 5,15s.). 
Ainda há supersticiosos que
acreditam que a feiticeira (ao
alto, à esquerda) com suas
"mandingas" conseguiria
dominar os demônios para
maltratar seu inimigo, inclusive
até a morte. Quadro de
Heirônimo Bosch (1450 - 1516).
Jesus à vezes não tocava os doentes comuns. Por exemplo: "Eu te ordeno - disse ele ao paralítico -, levanta-te, toma teu leito, e vai para tua casa" (Mc 2,11). Tudo está a indicar que sem tocá-lo. Curava doentes e ressuscitava mortos inclusive à distância. Como o filho - não "possesso" - do oficial real (Jo 4,43-54) e o servo - não "possesso" - do centurião (Mt 8,5-13;  Lc 7,1-10). Igual que a filha "possessa" da cananéia ou siro-fenícia:
            Eis que uma mulher cananéia... veio gritando: "Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente endemoninhada"... Jesus lhe disse: "Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres". E a partir daquele momento sua filha ficou curada (Mt 15,22-28).
            Uma mulher cuja filha tinha um espírito impuro..., lhe rogou que expulsasse o demônio de sua filha... E ele respondeu: "Pelo que disseste (pela tua fé), vai: o demônio já saiu da tua filha". Ela voltou para casa e encontrou a criança atirada sobre o leito. E o demônio tinha ido embora (Mc 7,25-30).
            Jesus curava "endemoninhados" exatamente com o mesmo procedimento com que curava doentes comuns, e vice-versa. Com sua palavra: "Com uma palavra expulsou os espíritos e curou todos os que estavam enfermos" (Mt 8,6).
            Não é válida, portanto, a afirmação de que Jesus tocava os doentes e esquivasse os "endemoninhados"
            E mesmo que houvesse tal diferença de atitude, ao menos em alguns casos, poderia responder simplesmente ao receio em Cristo e nos apóstolos de serem agredidos pelos "endemoninhados", convulsivos, histéricos e inclusive furiosos.

EXORCISMOS NO EVANGELHO?
            Costumes dos exorcismos. Outra objeção dos "demonófilos": Jesus deu aos discípulos um duplo poder: curar e exorcizar. Ele mesmo empregava um ritual para expulsar demônios, diferente do usado em doentes comuns.
            Os exorcistas da época tinham seus ritos peculiares. Na mitologia dos caldeus, quando uma pessoa "comete uma falta - voluntariamente ou não - o deus irritado abandona seu cliente, seu deus irritado sai do seu corpo... e este, sem defesa, é vítima dos demônios-doenças". O tratamento responde logicamente às diversas indicações que decorrem da natureza da doença: 1º) Enternecer o deus irritado e reconciliar o enfermo com ele; 2º) Expulsar o demônio que tomou posse do corpo do enfermo. O perdão do deus se obtém pela oração acompanhada da oferenda de um sacrifício; o exorcismo do demônio, por encantamento e por purificações às vezes, mais raramente por um sacrifício" de animais (mas mesmo de pessoas).
            Como as palavras e os ritos tinham para o babilônio um poder concreto, todas as cerimônias eram acompanhadas por práticas e gestos, fixados pela tradição, que constituem ritos imutáveis. Entre as práticas utilizadas, encontra-se a "substituição": o cordeiro é o substituto da humanidade... O animal sacrificado tinha tomado sobre si o pecado do doente; o deus deveria mostrar-se satisfeito.
            Esta mentalidade mágica e a prática de exorcismos na terra de Canaã, os hebreus a tinham estampada na própria Bíblia que continuamente liam. Por exemplo:
            Quando entrares na terra que Javé, teu Deus, te dará, não aprendas a imitar as abominações daqueles povos. Que em teu meio não se encontre alguém que queime seu filho ou sua filha nem que faça presságio, oráculo, adivinhação ou magia, ou que pratique encantamentos, que interrogue espíritos ou adivinhos, ou ainda que invoque os mortos, pois quem pratica essas coisas é abominável a Javé e é por causa dessas abominações... (Dt 18,9-12). Aos antigos habitantes de tua terra santa, tu os aborreceste por causa de suas práticas detestáveis, ritos execráveis, atos de magia esses cruéis infamticídios, banquetes canibalescos de vísceras e sangue humano, esses iniciados membros de confraria (mistérios orgíacos) e pais assassinos de vida sem defesa, decidiste eliminá-los (Sb 12,3-5).
            Estes sacrifícios humanos com finalidade mágica e de exorcismo
            Muitos israelitas acreditavam e temiam as práticas mágicas. Precisamente porque acreditavam e praticavam a magia e espiritismo, a Bíblia o proíbe tão enérgica e freqüentemente.
            É significativo o episódio do rei Moab: ante o ataque dos israelitas, imolou seu próprio filho primogênito em holocausto sobre o muro da cidade, e os israelitas - bem provavelmente aterrados pelos poderes demoníacos que pensavam que este sacrifício desencadearia - levantaram o cerco da cidade e fugiram (2Rs 3,26-27).
                No Novo Testamento. A Igreja Primitiva não teria feito exorcismos ou conjuros se não tivesse observado essa prática entre os judeus como entre os gentios com que convivia. Em vez de condenar, como no Antigo Testamento, essas "práticas detestáveis, abomináveis, execráveis", preferiu purificar e santificar o costume.
            Foi do ambiente, não de Cristo nem dos apóstolos, que a Igreja  herdou os exorcismos. Nem Jesus nem os apóstolos foram exorcistas. Eles curavam. Só.
            Exorcismo vem do verbo grego exorkizo, que significa conjurar, fazer jurar. (Em nome de Deus, no Novo Testamento).
            Os exorcismos eram prática corrente entre os judeus contemporâneos de Jesus.
            Paulo reflete o ambiente:
            Se o sangue de bodes e de novilhos e se a cinza da novilha, espalhada sobre os seres ritualmente impuros, os santifica, purificando os seus corpos... Segundo a lei, quase todas as coisas se purificam com sangue, e sem efusão de sangue não há remissão (Hb 9,13,22).
            Os discípulos queixaram-se: "Mestre, vimos alguém que não nos segue, expulsando demônios em teu nome, e o impedimos (Mc 9,38par.). É possível que os discípulos pensassem que expulsar demônios - curar doenças internas - só com a palavra, sem ritual e sem sangue, era uma novidade, uma originalidade de Jesus, portanto queriam a "patente". Na realidade, existiam conjuros - exorcismos - simplificados.  
Na Idade Média acreditavam que as
bruxas com poderes demoníacos faziam
"mal olhado" às crianças, guiariam os
homens de negócios e causariam toda
classe de doenças.
            Se os exorcistas - na realidade curandeiros - não fossem comuns, se não fossem um hábito necessário para a mentalidade mágica dos judeus, Jesus não poderia Ter perguntado: "Se eu expulso os demônios por Beelzebul, por quem expulsam os vossos filhos? (Mt 12,27par.).
            Jesus, um exorcista? O problema é saber se Jesus se acomodava à prática da maioria com mentalidade mágico-exorcista, ou se pertencia à reação culta introduzida pelos médicos gregos.
            Na realidade, Jesus Cristo nem foi exorcista nem conferiu aos seus discípulos o poder de exorcizar. Estamos nos referindo ao emprego de algumas fórmulas ou ritos especiais. 
Cristo simplesmente curou e deu poder de curar todas as doenças internas e externas.
O Pe. Cortés S.J. parece que é o primeiro a se insurgir contra a opinião de que Jesus praticara exorcismos.
            Jesus curava os "possessos" (isto é, os pacientes de doenças internas), exatamente da mesma maneira que curava os outros pacientes de doenças externas. Com sua palavra, pela imposição das mãos, com sua presença, pela sua autoridade. Sem exorcismos.
            Em poucos casos Jesus usou certo "ritual":
            Levando-o só para longe da multidão, colocou os dedos nas orelhas dele e, com saliva, tocou-lhe a língua. Depois, levantando os olhos para o céu, gemeu, e disse: Ephphatha (Mc 7,33s.). Tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia, e, cuspindo-lhe nos olhos e impondo-lhe as Mãos... (Mc 8,23). Cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-as sobre os olhos do cego e lhe disse: "vai lavar-te na piscina de Siloé" (Jo 9,6s.).
            Mas precisamente nestes casos trata-se de doenças externas, não de "endemoninhados"!
            Nem se trata de verdadeiro ritual. Jesus tocava os olhos para entrar em comunicação com o cego. Tocava os ouvidos para entrar em comunicação com o surdo. Olhava para o céu para orar e para induzir o surdo à oração.
            Nos casos de cura de "endemoninhados" não encontramos qualquer coisa semelhante a rituais fórmulas, esconjuros... Os pacientes de doenças internas ("endemoninhados") curam-se simplesmente pela vontade de Jesus.
            Jesus nunca usou o termo exorkizo. Precisamente as duas únicas vezes que nos Evangelhos aparece é contra Jesus: "Conjuro-te - exorkizo - por Deus, que não me atormentes!" (Mc 5,7) diziam os "demônios" no país dos gergesenos. E Caifás: "Eu te conjuro - exorkizo - pelo Deus vivo que nos declares se tu és o Messias!" (Mt 26,63). Os judeus, como os babilônios, exorcizavam, mas não Jesus. Nem seus discípulos.
            Poder-se-ia interpretar como esconjuro, exorcismo, o modo autoritário que alguma vez utilizaram os apóstolos para curar as doenças internas então atriuídas aos demônios? Por exemplo no caso da escrava "que tinha um espírito de Pitão". Frisemos que não se trata de demônios cristãos, senão de um daimon ou deus pagão, a serpente Pitão do oráculo de Delfos.
            Ia fazendo apostolado.
Clamando: "estes homens são servos de Deus Altíssimo, que vos anunciam o caminho da salvação". Fê-lo por vários dias. Por fim, Paulo, aborrecido, voltou-se e disse ao espírito: "Eu te ordeno em nome de Jesus Cristo: sai desta mulher". E o espírito saiu no mesmo instante (At 16,16-18).
            Exorcismo? Então todas as curas, mesmo quando se trata de doenças externas e todos milagres, inclusive sobre os seres inanimados, teriam que ser considerados exorcismos! Melhor é inverter o argumento. Os aparentes exorcismos não o são, trata-se simplesmente de curas, porque é a mesma fórmula empregada para doença externas e outros milagres. Por exemplo:
            Vinha então, carregado, um aleijado de nascença (além de aleijado, sendo paralítico de nascença  tinha que ter atrofia muscular, e, portanto, percebia-se externamente a "causa" da paralisia; nada de demônios)... Pedro o encarou, como também João, e disse: "Olha para nós... Em nome de Jesus Cristo Nazareno, anda!"... De um salto ficou em pé e começou a andar (At 3, 2, 4, 8).  
            Nos Atos dos Apóstolos é possível que se esteja condenado a prática dos exorcismos. Condena-se a atitude de uns judeus expressamente chamados de exorcistas (exorkistoi: "Alguns judeus exorcistas percorriam vários lugares..." Eles dirigiam-se aos "endemoninhados" com a fórmula: "Conjuro-os - exorkizo - por Jesus, que Paulo prega". E o autor sagrado faz questão de frisar que o resultado de tal ato foi catastrófico para os sete filhos do sacerdote judeu Cevas, pois o "endemoninhado" os atacou com grande violência e tiveram de fugir nus e feridos. Destaca que após essa lição, os praticantes de exorcismos e outras magias levaram seus livros e os queimaram diante de todos (At 19,13-20).
            Jesus não deu aos apóstolos um duplo poder, de curar e de exorcizar. Deu-lhes o poder de curar. Um único poder. "Convocando os Doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, isto é (Kai) para curar doenças" (Lc 9,1). Marcos fala só em demônios: "Chamou a si os Doze... E deu-lhe autoridade sobre os espíritos imundos"(Mc 6,7). Mateus, explicita mais: "Chamou os doze discípulos e deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda a sorte de males e enfermidades" (Mt 10,1). Uma tradução do sentido dos três textos eqüivaleria a: "Conferiu-lhes o poder de curar toda classe de doenças". Ou, explicitando: "Deu-lhes poder sobre todas as doenças, inclusive as mais graves e misteriosas (as internas)".
Jesus em luta com Satã? Lembro-me com saudade dos anos em que era estudante de Teologia no querido "Colégio Máximo Cristo Rei", de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Lembro com carinho as aulas de exegese do sábio e esforçado Pe. Balduíno Kipper, S.J. Algumas de minhas teses parapsicológicas lhe pareciam heréticas...
Cristo não teria triunfado.
Satanás que dominaria todo o
mundo, desde à serpente do
Paraíso até hoje.
            Surpresa agridoce para mim, dedicou-me uma aula inteira a tentar convencer-me de que na Bíblia se impunha a existência da possessão demoníaca:
            São João mostra a última razão pela qual foram tão freqüentes as possessões no período evangélico. Os demônios sabem que, com a chegada de Cristo chegou a hora fatal para eles e, portanto, tentam com toda força destruir os homens e assim perder a Jesus, para ver se é possível superar tal crise... [O texto de João a que o Pe. Kipper fazia referência é: "Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade... É mentiroso e pai da mentira. Mas porque digo a verdade não credes em mim... Se vis, porque não sois de Deus"(Jo 8,44-47)]. Estabeleceu-se a definitiva luta entre Cristo, que é da verdade, e o pai da mentira, concluía Kipper.
            O argumento já fora muito freqüentemente usado. "Havia uma razão especial de conveniência para que a Divina Providência" desse liberdade aos demônios nos tempos de Cristo, afirmou Smit. O Pe. Balducci explicita:
            De fato Jesus, que viera "para destruir as obras do demônio" (1Jo 3,8), porque com Jesus "o príncipe deste mundo será lançado fora" (Jo 12,31), devia com exemplos concretos mostrar seu poder sobre o império de Satanás, e sinais muito claros eram precisamente as expulsões de espíritos malignos...: porque, para que aparecesse a divindade de Jesus, era muito oportuna a presença de numerosos casos de possessão.
            Smit insiste: "Mormente Marcos prova a divindade de Jesus por estes sinais: porque Jesus, expulsando os espíritos imundos, se mostrava mais forte do que eles".
            "Por outra parte - continua Balducci -, era natural que Satanás... vendo-se agora obstaculizado por um inimigo tão forte e pressagiando um porvir pior, procura esforçar-se ao máximo no seu poder maléfico, de forma mais estrepitosa".
            Estas explicações supõem e explicam o que deveriam demonstrar.
            Cristo não veio a destruir as obras do demônio e a expulsar fora o príncipe deste mundo. Só em sentido metafórico. "Jesus não entendeu sua atividade como uma luta contra Satã. A Jesus só interessava a salvação dos homens e sua libertação do pecado, que nos conceitos do judaísmo daquela época estavam relacionados com Satã", personificação do pecado, mera cultura extrínseca à mensagem cristã.
            Havia muitos "endemoninhados" na época não porque Satã estivesse aproveitando todas suas forças, senão porque, como sempre, havia muitos doentes e, então (não antes na Bíblia) se atribuíam certas doenças aos demônios.
            Se a exegese de Kripper, Smit, Balducci e tantos outros fosse verdade, Cristo teria sido derrotado plenamente pelos demônios! Pois os "demônios" haveriam de continuar por séculos se "apoderando" dos homens. Por isso Cristo concedeu aos apóstolos o poder de expulsar "demônios" (Mt 10,1-8; Mc 3,14s.; 6,7; Lc 9,1; 10,17-30). Por isso fez a promessa aos que nele cressem, de expulsar os "demônios" no seu nome (Mc 16,17).
            Houve muitas "possessões" depois de Cristo, na época apostólica, como se testemunha nos Atos dos Apóstolos (At 5,14-16;  8,5-8; 16,16-18; 19,11-16). Houve também muitas "possessões" na época patrística, como testemunha, por exemplo, S. Justino:
            Porque a muitos agitados por demônios em todo o orbe e na vossa cidade, muitos dos nossos cristãos, tendo-os adjurado em nome de Jesus Cristo crucificado sob Pôncio Pilatos, os curaram apesar de não tê-los sanado nenhum outro adjutório, encantamento ou remédio. E ainda continuam a curar, quebrando e expulsando os demônios que se apoderavam dos homens.
É a absurda superstição de que doenças e negócios
dependem do demônio, hoje é explorada por pastores
de diversas seitas. Verdadeira fábrica de loucos.
Na época da bruxaria houve mais "possessões demoníacas" do que em qualquer outra época. Ë que o demônio continuou livrado a grande batalha contra Cristo? Continuou havendo razões especiais para dar mais liberdade aos demônios?
            Seria completamente falsa a afirmação ou o grito de vitória de Jesus: "Agora o príncipe deste mundo será lançado fora" (Jo 12,31). "O príncipe deste mundo está julgado" (Jo 16,11).
            "Para isto é que o filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do demônio" (1Jo 3,8). Se fosse no sentido dos "demonófilos" que deve entender-se essa afirmação, Cristo teria perdido completamente a batalha com o Diabo.
            Não seria um dos grandes frutos que cabe esperar do cristianismo, a libertação dessa opressão doentia da ação dos demônios, exus, espíritos opressores? Com Cristo começou a era da saúde espiritual moral, da paz e da oração dirigida ao "abba", pai.
            Com Cristo irrompeu a "Basiléia" ou Reino de Deus, porque Cristo venceu o Satã, o mal moral. "Tudo concorre para o bem daqueles que amem a Deus", para o bem espiritual (Rm 8,28 segundo a variante da Vulgata); inclusive as doenças internas.

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