Inimigos eternos
O peso dos 80 anos de idade e os sintomas do mal de Parkinson não impediram o papa João Paulo II de enfrentar seu maior inimigo: Satanás, um anjo tão degradado que desafia Deus e tenta desviar a humanidade para o pecado e a infelicidade, segundo a tradição católica. Aconteceu na tarde de 6 de setembro. O pontífice recebeu na Santa Sé uma italiana de 19 anos que apresentava sinais de possessão demoníaca. Ela urrava palavras estranhas e sentia-se agredida por símbolos cristãos, como a cruz. A batalha de orações durou 30 minutos. João Paulo II abraçou-a e rezou para livrá-la da influência maligna. Não chegou a cumprir os longos rituais do exorcismo, que incluem a leitura de textos bíblicos e até um interrogatório ao diabo. Fez o que a Igreja chama de exorcismo menor. Concedeu a bênção, e a garota se acalmou. Horas depois, ela mergulhou em nova crise. Não estava curada.
A
identidade da jovem foi mantida
em segredo. Sabe-se
que ela vive na região da Úmbria, no norte da Itália, e tem surtos
desde os 12 anos. Médicos e psiquiatras tentaram, em vão, curá-la.
Antes de recorrer ao papa, a garota foi atendida pelo padre Gabriele
Amorth, exorcista-chefe de Roma (leia entrevista na pág. 132), mas não
reagiu aos rituais. Então, levaram-na à Praça São Pedro, para assistir
à audiência semanal de João Paulo II. Surpreendentemente, ele decidiu
recebê-la. Foi a terceira vez, em 20 anos de pontificado, que o papa
assumiu pessoalmente a missão de exorcizar.
Sabe-se
pouco sobre o primeiro ritual, ocorrido no final dos anos 70. O segundo
combate contra Satanás foi registrado nas memórias do cardeal francês
Jacques Martin, morto há oito anos. No dia 4 de abril de 1982, João
Paulo II cumpriu as regras canônicas do exorcismo com uma mulher italiana
identificada como Francesca F. O cardeal deixou o seguinte relato: “Ela
rolava pelo chão, berrando. O papa começou a rezar, pronunciando em vão
vários exorcismos, e disse à mulher: ‘Amanhã rezarei uma missa por
ti’. Repentinamente, Francesca voltou ao normal e pediu desculpas ao
pontífice. Um ano depois, perfeitamente curada, compareceu com o marido a
outra audiência com o papa”.
A
participação de um pontífice em rituais de exorcismo é carregada de
simbolismo. João Paulo II quis reafirmar que o mal existe e os católicos
devem combatê-lo. Na Idade Média, quando a medicina era incapaz de
diagnosticar doenças psiquiátricas, crises histéricas eram
interpretadas como possessão demoníaca e os exorcistas convocados a
resolver o problema. Os avanços da ciência moldaram um novo pensamento
da Igreja, que relegou o exorcismo a uma atividade quase supersticiosa. O
Concílio Vaticano II, em meados dos anos 60, estabeleceu que apenas
sacerdotes autorizados pela hierarquia católica poderiam exorcizar. Tais
permissões foram extraordinárias. Em 27 anos à frente da Arquidiocese
de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns não deu chancela oficial a nenhum
exorcismo. “Os casos de possessão são raríssimos”, diz o teólogo
beneditino dom Estevão Bittencourt, da Arquidiocese do Rio de Janeiro. O
padre jesuíta Oscar Quevedo, especialista em parapsicologia, é mais
radical. “Exorcismo não existe”, diz. “Nunca vi um caso que não
pudesse ser explicado pela psicologia e pela parapsicologia.”clandestina, em missas rezadas por padres que crêem
em possessões. Na Igreja
de Santana, no Centro do Rio, o pároco Nelson Rabelo, de 80 anos, realiza
exorcismos que atraem 400 pessoas por semana. Ele pratica um ritual de bênçãos
e orações que dura duas horas e meia. Depois de uma longa preleção
sobre as armadilhas de Satanás, borrifa os fiéis com água benta. Alguns
deles tremem, reviram os olhos e têm convulsões. “Foge daqui Satanás,
inventor e mestre de todos os enganos. Retrocede diante de Cristo”,
brada. Padre Nelson saboreou o episódio do exorcismo papal como uma vitória
pessoal, em entrevista, na terça-feira passada, ao jornal Extra.
No
dia seguinte, procurado por ÉPOCA, preferiu não dar declarações.“Fui
repreendido por meus superiores por causa da entrevista”, disse. No ano
passado, a Santa Sé lançou um manual de exorcismo para substituir o que
vigorava desde 1614. O inferno passou a ser interpretado não como um
lugar, mas um estado de espírito.
O
demônio também deixou de ser comparado a figuras de animais, como o
bode. Converteu-se num ente espiritual. Escrito em latim, o livro De
Exorcismis et Supplicationibus Quibusdam recomenda que os supostos
casos de possessão sejam submetidos a psiquiatras antes que se recorra a
um padre-exorcista. No lançamento da obra, o Vaticano fez questão de
alardear o que considera ser um desvio de comportamento entre o clero e os
fiéis. “Há católicos que não foram educados de forma adequada para a
fé e duvidam da existência do diabo”, disse o cardeal Jorge Arturo
Medina Estévez, prefeito da Congregação para o Culto Divino. “O
maligno está em toda parte: na crença de que o dinheiro traz felicidade
e de que a liberdade individual pode sobrepor-se à vontade divina.”
A
Igreja Católica perdeu fiéis no período em que relegou o exorcismo,
enquanto as igrejas evangélicas pentecostais arrebanhavam multidões com
rituais espetaculares. Neles, o diabo é supostamente escorraçado do
corpo dos possuídos. “As religiões pentecostais atribuem ao diabo o
desemprego, a doença, a traição”, diz o teólogo João Décio Passos,
da PUC de São Paulo. Margarida Oliva, autora de O Diabo no Reino de Deus,
acrescenta: “A consciência humana não evoluiu o bastante e precisa de
um demônio para apaziguar culpas e evitar responsabilidades”. Não por
acaso, a Renovação Carismática, braço pentecostal da Igreja Católica,
reintroduziu nos cultos o temor a Satanás. Os padres carismáticos
raramente praticam exorcismo, mas celebram missas para “cura e libertação”,
que se propõem, entre outras coisas, a afastar o demônio.Cura na Igreja da Piedade. Cerca de 1.300 pessoas comparecem. Em
duas ocasiões, diz ter visto mulheres tomadas por forças do mal. “Uma
senhora de 55 anos revirava os olhos”, relembra. “Rezei com toda a força
e pedi a Jesus que a curasse.” Teve êxito. O padre Cleodon Amaral de
Lima, de 34 anos, viveu experiência semelhante. “Há muitos casos de
histeria, mas já atendi a possessões”, diz. Pároco da Igreja do
Sagrado Coração de Jesus em Franco da Rocha, na região metropolitana de
São Paulo, é conhecido na área pela habilidade em identificar o capeta
e libertar os fiéis. “Expulso o demônio em nome do Salvador”, diz
padre Cleodon. “Não há diabo que resista a Jesus, o filho de Deus.”
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